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sábado, 26 de maio de 2012

Regulamentação de mídia e princípios constitucionais

                     

Ao se posicionar intransigentemente contrária à regulamentação, a grande imprensa se coloca em patamar privilegiado, em uma espécie de território livre de regras e normas, diferentemente do que ocorre com as demais atividades humanas


      
José Dirceu

A regulamentação dos meios de comunicação no Brasil tem sido alvo de uma verdadeira histeria por parte da grande mídia, que tenta convencer o público de que o que está em questão é o cerceamento de sua atividade. Falam em censura e fogem do debate, desqualificando assim o verdadeiro objetivo de se criar um marco regulatório para a atividade de imprensa: garantir o acesso à informação de qualidade, promover a diversidade e a pluralidade de conhecimentos/opiniões e, principalmente, evitar a concentração do setor de mídia, o que, de fato, contraria os princípios democráticos estabelecidos na Constituição de 1988.
Curiosamente, essa mesma mídia pratica uma espécie de censura ao tema, ignorando, inclusive, que a nossa Carta Magna determina a aprovação de lei federal para regulamentação do setor, como, aliás, acontece em boa parte dos países apontados como modelo de democracia. O artigo 220 diz que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição". Também veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística; proíbe o monopólio e o oligopólio nas comunicações e determina que o Estado estabeleça os meios legais para garantir a defesa de programas ou propagandas nocivas à saúde e ao meio ambiente. O Artigo 221 define as finalidades da programação de rádio e TV – educativas, artísticas, culturais e informativas – e prescreve a promoção da cultura nacional e regional.
Ao se posicionar intransigentemente contrária à regulamentação, a grande imprensa se coloca em patamar privilegiado, em uma espécie de território livre de regras e normas, diferentemente do que ocorre com as demais atividades humanas. Agem, evidentemente, em favor dos próprios interesses, pois não lhes convêm discutir uma disciplina sobre propriedade dos meios de comunicação, que é o tema central desta questão.
A título de exemplificação, nos EUA uma empresa não pode ser proprietária de uma emissora de rádio ou TV e de um jornal na mesma cidade. Na França, é vedada a propriedade de mais do que duas empresas de TV com 4 milhões de telespectadores, ou de duas emissoras de rádio com audiência potencial acima de 30 milhões de ouvintes, ou ainda de jornais com mais de 20% de participação no mercado.
Na União Europeia, uma das mais importantes regras regulatórias impõe um limite de 12 minutos ou 20% de publicidade para cada hora de transmissão, com sérias restrições à publicidade da indústria do álcool e banimento de publicidade da indústria do tabaco e farmacêutica.
Em Portugal, o setor de comunicação conta com duas agências. Uma delas voltada para cuidar especificamente da qualidade do conteúdo, a Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC), e outra para distribuir o espectro de rádio entre as emissoras de radiodifusão e as empresas de telecomunicações, a Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom).
No Brasil, nosso parâmetro mais recente é a lei que regulamenta o setor de TV a cabo, aprovada no ano passado pelo Congresso. A lei impede que uma mesma empresa controle todas as etapas do processo, da produção à exibição, favorecendo a pluralidade e a concorrência na criação de uma cadeia associada ao setor de televisão. Além disso, determina uma cota de três horas e meia de conteúdo nacional por semana nos canais por assinatura. Evidentemente, trata-se de uma cota simbólica, e que deve ser aumentada gradualmente, para que possamos valorizar nossa cultura e estimular o desenvolvimento da indústria nacional associada às comunicações.
A recentemente aprovada lei de mídia argentina, mais branda do que muitas daquelas impostas na Europa e EUA, foi demonizada pela imprensa brasileira, que não perde a oportunidade de distorcer os princípios da regulamentação e de omitir a real função e abrangência desse tipo de controle.
A regulamentação do setor de comunicação precisa ser debatida pelo conjunto da sociedade para que fique claro, de uma vez por todas, que o grande problema está em não coibir os excessos da concentração de poderes em determinados grupos. A cartelização da mídia promove os interesses privados daqueles que detêm os meios e está em total desarmonia com a democracia, uma vez que limita a diversidade e a pluralidade de vozes e pontos de vista, descumprindo assim as finalidades colocadas pela Constituição.
A liberdade de imprensa e a regulamentação dos meios de comunicação não se contrapõem como quer dar a entender a grande mídia. Ao contrário, andam juntas e estão no mesmo nível de importância, garantidas pela nossa Constituição. O que não podemos é nos furtar adiscutir as responsabilidades inerentes ao exercício dessa atividade, como ocorre com outras tantas profissões.
A regulamentação do setor de mídia é, portanto, iniciativa positiva, que fortalece nossos princípios constitucionais e o ambiente democrático. Por isso, omitir e distorcer essas questões de interesse da sociedade é adotar estratégia de interdição ao debate. Em um momento em que o Brasil demonstra haver vontade política e anseio da sociedade por democratizar nossas instituições, fica ainda mais evidente que esse comportamento de preferir não debater é caminhar na contramão da história.

José Dirceu, 66, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT

Brasil 247

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