Maio de 68
Maio de 68
Uma análise crítica toca em uma ferida aberta: em quais campos a esquerda se saiu vitoriosa? Onde ela perdeu suas principais batalhas? O que resta dela no momento atual? 

Por Renato Janine Ribeiro, no Conteúdo Livre

A esquerda venceu? A esquerda perdeu? Um balanço das últimas décadas permite argumentar numa direção e noutra. Vou propor uma distinção, para sugerir que a esquerda política perdeu, enquanto a esquerda que chamarei de comportamental venceu.
As mudanças na vida pessoal – o que hoje é denominado “comportamento”, termo que uso aqui por simples comodidade – foram enormes no último meio século. Na década de 1960, homossexuais eram mal vistos em quase todo o Ocidente, mulheres eram cidadãs de segunda classe, negros muitas vezes não eram sequer respeitados como cidadãos e, para resumir, quem adotasse uma postura não convencional em face da vida enfrentava dificuldades que podiam ser grandes. Os 50 anos transcorridos desde então conheceram uma mudança nas atitudes das pessoas sem precedentes na história do mundo.
Boa parte dessas bandeiras foi desfraldada pela esquerda. Ela foi radical contra o racismo. É verdade que não foi unânime em favor das mulheres nem dos homossexuais, mas seguramente a maior parte da esquerda apoiou as causas delas e deles; e certamente a proporção de direitistas que defenderam a emancipação feminina e o respeito à orientação homossexual foi bem inferior à proporção de esquerdistas assumindo tais valores. Sem dúvida, havia pessoas à esquerda que achavam que homossexualismo era vadiagem, mas eram menos numerosas do que os direitistas que o condenavam como pecado. Sem dúvida havia gente à esquerda que considerava a defesa dos direitos das mulheres como um desvio em relação ao conflito principal, que seria a luta entre capital e trabalho – mas isso porque esperava que a vitória do socialismo traria, automaticamente, a solução dos problemas das mulheres. Isso, claro que em linhas gerais.
Hoje, essas causas venceram, não totalmente mas em larga medida. Continua havendo crimes de ódio contra homossexuais. O machismo está presente em nossa sociedade e em outras. Fora do Ocidente expandido, a situação é sem dúvida pior, mas pelo menos nesta parte do mundo a esquerda que chamei de comportamental conseguiu emplacar várias de suas causas. Mas ela venceu justamente porque essas questões deixaram de ser de esquerda e se tornaram universais.
Talvez seja por isso que no Brasil, enquanto a sociedade politizada se cindiu de maneira talvez irremediável entre PT e PSDB, esses dois agrupamentos coincidem o mais das vezes na defesa dos direitos humanos. Alguns colunistas de jornal que atacam com veemência o governo petista estão mais perto dele na defesa do meio ambiente, dos direitos das mulheres e dos homossexuais. Essas causas nasceram na esquerda, mas se expandiram. É verdade que os agrupamentos políticos de base religiosa não seguem esse caminho, e que – sobretudo nos Estados Unidos – eles obtêm uma votação preocupante. Também é verdade que em nosso país o segundo turno de 2010 foi sequestrado por uma discussão arcaica sobre o aborto, o que o converteu na disputa de ideias mais rasa de nossa história recente. Mas na postura política mais civilizada temos a vitória de ideais que, aliás, foram de esquerda mais no sentido de uma sensibilidade ampla do que no de pertencerem a um partido ou outro. Porque os temas que enumerei nunca foram propriamente partidários. O único partido minimamente importante que já se organizou em torno de uma dessas causas foi o Verde, que só chefiou um governo nacional uma vez – dez meses na Letônia.
Quantos lembram como começou Maio de 1968, na França? O ministro da Juventude do general De Gaulle foi inaugurar uma piscina em Nanterre, em 8 de janeiro daquele ano. Um estudante alemão, Daniel Cohn-Bendit, interpelou-o. Disse que fazer piscinas era uma aposta nazista para reprimir sexualmente os estudantes. Tudo começou aí. Cohn-Bendit não estava errado, mas o próprio fato de que essa frase chocará ou fará rir nove em dez leitores mostra que hoje as aulas de educação física já não são cogitadas para esgotar a energia de natureza sexual dos jovens. Hoje, ter uma vida sexual ativa não é mais uma causa rebelde ou revolucionária.
Para a esquerda política, porém, as coisas são bem diferentes. É verdade que em toda a América Latina é mais fácil ser de esquerda hoje do que nunca no passado. Os governos importantes da América do Sul, salvo Chile e Colômbia, são de esquerda. Políticas de conteúdo social se tornaram irrenunciáveis. Sindicatos e movimentos sociais não são mais reprimidos a bala, pelo menos não como praxe. Todos esses são avanços da esquerda, mas por outro lado ninguém hoje disputa seriamente o poder propondo o fim da propriedade privada dos meios de produção.
O projeto de uma sociedade socialista sumiu ou pelo menos recuou. Em 2008, quando o mundo da utopia neoliberal faliu, acarretando um desastre econômico e social, não havia proposta alternativa pela esquerda. Não tinha havido uma crítica em regra da teoria marxista, que levasse a um novo projeto passível de empolgar as massas. Não tinha havido uma atualização das propostas radicais, que, com frequência, são apenas as mais antigas. Para os pobres traz resultados mais imediatos a política de cooptação de seus movimentos pelo capitalismo, iniciada por Lula, do que os ideais puros e duros de um PSOL. Quando os grandes partidos do centro para a esquerda, como o socialista francês ou o PT, aceitam princípios do neoliberalismo, então a esquerda política vive um momento de eclipse. Para sair dele, precisará propor uma nova sociedade, em escala macro, mas como fazer isso? Ela avançou no microssocial, mas hoje não se sabe como retomar seus sonhos para a sociedade como um todo.
*Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

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