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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Município socialista na Espanha resiste à crise

 

Desde que conseguiu a desapropriação de terras improdutivas a partir da pressão dos moradores, Marinaleda implementou um modelo cooperativista de produção que envolve rodízio na lavoura e na indústria e hoje sustenta índices de emprego mais elevados do que os da Espanha. Segundo a prefeitura, o desemprego não passa de 4%, enquanto a oposição diz que chega a 14%. Seja como for, são números muito inferiores aos 25% do país.



Marinaleda - Quando em 2008 a crise do sistema financeiro dos Estados Unidos chegou à Europa, causando também recessão nos países do Velho Mundo, cerca de 200 jovens migraram a Marinaleda, um pequeno povoado espanhol no coração da Andaluzia.

Parte deles voltava para casa depois de ter perdido o trabalho na construção civil, que era então o grande setor em expansão no país ibérico e cuja bolha explodiu com a falta de crédito na economia a partir da quebra de bancos norte-americanos. Outros vinham em busca do El Dorado espanhol: a festejada terra do pleno emprego propagandeada pela administração municipal.

A fama da cidade, entretanto, não tem nada de milagroso ou mítico. É fruto de três décadas de uma briga comprada por toda a população e liderada pelo líder sindical Juan Manuel Sánchez Gordillo: a reforma agrária.

Marinaleda perdeu a metade de seus habitantes durante a ditadura do general Francisco Franco. A pobreza a que estavam condicionados os que ficaram fez com que se gestasse no íntimo dessa sociedade um desejo de mudança que não foi saciado com o retorno da democracia no final dos anos 70.

Organizados em torno do Sindicato de Obreros del Campo, criado em 1977, os trabalhadores rurais iniciaram uma sistemática ocupação de terras improdutivas nos arredores da cidade, exigindo que fossem repartidas para que todos pudessem trabalhar. A luta mais conhecida de todas é a origem da boa reputação de Marinaleda: a fazenda de El Humoso.

“Todas as manhãs caminhávamos 8 quilômetros entre o centro urbano e a estância. Logo que nos instalávamos, vinha a guarda civil nos correr de lá. Em alguns casos eram bem violentos; chegaram a cortar as árvores para que não tivéssemos sombra para descansar”, lembra o agricultor Joaquin Juan Diaz, hoje um dos sócios de uma das cooperativas responsáveis pela produção em El Humoso.

“Mas não nos assuntavam: na manhã seguinte, marchávamos até lá novamente e a polícia nos mandava embora, mas voltávamos no dia seguinte, e no outro, e no outro, e no outro”, recorda, admirando o horizonte de oliveiras que hoje é (também) sua propriedade.

El Humoso pertencia ao Duque do Infantado, que assim como essa, possuía outras tantas terras no sul da Espanha. A maior parte delas improdutiva. “Era muito comum durante a guerra da Reconquista, no século XV, que os reis dessem terras como pagamento aos que lutavam por eles contra os mouros, no sul”, explica o deputado e porta-voz do grupo parlamentário da Esquerda Unida da Andaluzia, José Antonio Castro.

As caminhadas diárias – e os confrontos contra a guarda civil – duraram seis anos até que a Junta da Andaluzia decidiu desapropriar parte da terra e deixar que os moradores a explorassem. O primeiro que fizeram foi pintar no muro externo da propriedade a frase que retocam ano a ano com denodo. “Essa fazenda é para os trabalhadores desempregados de Marinaleda”.

Em seguida dividiram-se em oito cooperativas e com os subsídios estatais compraram máquinas, ferramentas e sementes para a produção. Oito anos depois deram um novo passo e fundaram a primeira agroindústria de propriedade coletiva na cidade, a Humar Alimentos, cujo nome foi criado a partir das iniciais de Humoso e Marinaleda.

“É fundamental colocar os meios de produção nas mãos do agricultor e do operário: assim eles recebem o que é justo pelo seu trabalho e o consumidor paga menos pelo alimento”, costuma discursar Sánchez Gordillo.

Jornada igual para todos
As duas iniciativas associativistas de Marinaleda são o que garantem que em 2012 o município sustente taxas de desemprego bastante menores que os nacionais. Segundo a prefeitura, os parados na cidade não passam de 4%, enquanto a oposição defende que chegam a 14%.

De uma maneira ou outra, são números muito inferiores aos 25% da população espanhola que não consegue trabalho em plena crise. “O campo se caracteriza por não ter índices estáveis de ocupação. É verdade que há meses em que o desemprego é nulo na cidade. Mas há épocas de menor atividade tanto na fazenda como na agroindústria”, pondera Joaquin Diaz.

Entre 70 e 120 cooperativados trabalham de maneira fixa o ano todo na lavoura e na agroindústria. Em períodos de entressafra, eles aproveitam para fazer a manutenção de equipamentos, limpeza dos campos, a contabilidade.

Por este serviço recebem 1.200 euros mensais, o mesmo salário dos funcionários públicos e do próprio Sánchez Gordillo, eleito nove vezes prefeito entre 1979 e 2011 – ele nunca recebeu pelo cargo eletivo municipal, era remunerado como professor de História e nos últimos anos como deputado da Andaluzia.

Quando há carga extra, se contrata por jornada homens e mulheres na cidade. O cenário laboral de Marinaleda se complicou a partir de 2008 não apenas pela retração da economia, que reduz os preços pagos pelos grandes distribuidores – as multinacionais, que são o alvo do momento dos protestos na cidade – e a demanda dos consumidores. Com o retorno dos jovens que haviam ido para a cidade e a chegada de migrantes de outras regiões, há mais competição na hora de conseguir um trabalho.

O que não significa que haverá mais desempregados, senão que cada um trabalhará menos horas, conforme explica a vice-prefeita de Marinaleda, Esperanza Saavedra Martín: “Se há necessidade de 100 agricultores para 20 dias de trabalho e são 100 candidatos, cada um vai trabalhar 20 dias. Mas se 200 pessoas se apresentarem, cada uma vai ir para o campo durante 10 dias”.

Outra diferença com relação aos plantios tradicionais é que tanto El Humoso como a Humar Alimentos pagam uma diária única para todos os seus trabalhadores: 47 euros por jornada, sem fazer distinção entre a função e até mesmo a produtividade de cada um.

É folclórica, aliás, uma fala de Sánchez Gordillo durante uma assembleia na qual queixavam-se alguns trabalhadores da falta de comprometimento e de efetividade de outros colegas. “Se há quem trabalha menos, os que podem produzir mais devem fazer o dobro de esforço a que estão costumados para ajudar a estes companheiros”.

O trabalho se reparte através de sorteios nas assembleias públicas do município. Embora o vereador Hipólito Aires, do Partido Socialista Espanhol (PSOE) – que em Marinaleda faz oposição à sigla no poder, a Esquerda Unida – acrescente que só são incluídos na loteria laboral aqueles que participam das marchas e protestos convocados pelo prefeito. “Cada tipo de atividade política conta um número específico de pontos e só pode apresentar-se para uma vaga aqueles que atingem um mínimo”, denuncia.

Exportação para Venezuela começou neste ano
A aposta das cooperativas para que haja ocupação plena durante a maior parte do ano é diversificar a produção. Setembro é o mês da colheita dos pimentões – há três variedades cultivadas em El Humoso, que em seguida são beneficiadas na Humar Alimentos –, e a previsão de Esperanza era que se incorporassem ao contingente fixo das cooperativas entre 300 e 500 trabalhadores durante dois meses. Em seguida será o turno das beterrabas, dos girassóis, do trigo, da alcachofra.

Três vezes ao ano eles recolhem azeitonas do plantio de oliveiras. “Em 2011 colhemos 3,8 milhões de quilos: 3 milhões para a fabricação de azeite e o restante de azeitonas de mesa”, contabiliza Manuel Martín Fernández, que em um domingo se dedicava a limpar os tanques de estocagem do líquido, que em breve receberia a parte da produção de setembro.

A colheita, entretanto, ficou pequena com o início das relações comerciais com a Venezuela, depois que o presidente Hugo Chávez conheceu a história de Marinaleda e de seu prefeito através de uma reportagem na TeleSur. Em 2012 pela primeira vez El Humoso entregou ao país cerca de 70 milhões de litros de azeite, um volume 20 vezes superior ao que a fazenda produz.

A saída foi se associar com cooperativas de municípios vizinhos que seguissem parâmetros de produção e de trabalho semelhantes aos de Marinaleda. “Tem que pagar bem o agricultor que recolhe azeitona e o empregado da fábrica, e possuir uma qualidade como a nossa, pois não misturamos 'orujo' no nosso azeite”, completa Joaquin Díaz.

“É muito importante que haja solidariedade prática entre os países, entre as cooperativas, entre os distintos grupos. Ainda mais num momento difícil como esse”, reflete Gordillo, referindo-se ao momento de crise. Ele planeja estabelecer relações semelhantes com Nigarágua, Equador e Bolívia. “Seria uma boa ideia que o projeto Alba se estendesse pelo sul da Europa”, conclui.

Apesar da ajuda bem-vinda de Chávez, o prefeito defende um modelo misto de sustentabilidade da produção, em que o mercado interno também seja atendido, numa relação direta entre produtor, pequeno comércio e consumidor.
Carta Maior

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