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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O novo modelo cubano continua sendo socialista



Atualização do modelo econômico suscita críticas e controvérsias. Sem renunciar a seu modelo, a ilha preserva suas conquistas

Com as reformas recentes, Cuba está abandonando o socialismo?

NÃO
Por  Salim Lamrani no Opera Mundi


Desde 2011, Cuba está pondo em marcha a “atualização de seu modelo econômico”. O projeto inicial, elaborado em novembro de 2010, foi submetido a um amplo debate popular (com 8 milhões de participantes) que durou cerca de cinco meses até abril de 2011 e foi adotado durante o VI Congresso do Partido Comunista de Cuba.
Alguns acreditam que se trate de uma volta ao capitalismo, por causa da introdução de alguns mecanismos de mercado na economia nacional. Na realidade, o objetivo dos cubanos é aperfeiçoar seu sistema para preservar suas conquistas sociais, únicas na América Latina e no Terceiro Mundo. Para isso, devem superar dois grandes desafios: os recursos naturais, muito limitados, e as sanções que os Estados Unidos impõem desde 1960, que constituem o principal obstáculo ao desenvolvimento nacional. A isso convém somar as falhas próprias do sistema, como a burocracia ou a corrupção. O presidente Raúl Castro foi claro a esse respeito: “A batalha econômica constitui hoje, mais que nunca, a principal tarefa e o centro do trabalho ideológico dos quadros, porque dela depende a sustentabilidade e a preservação do nosso sistema social”.

O novo modelo econômico introduz mecanismos de mercado, mas segue baseado na “planificação socialista” em todos os níveis e na “empresa estatal socialista como forma principal da economia nacional”. Não obstante, o país se abre aos investimentos estrangeiros — para atrair os capitais indispensáveis para o desenvolvimento da nação —, mediante empresas mistas, nas quais o Estado cubano sempre dispõe de uma maioria de ao menos 51%. Este modelo atualizado de gestão econômica promove também as cooperativas, as pequenas propriedades agrícolas, os usufrutuários e os trabalhadores independentes em todos os setores produtivos, com a finalidade de reduzir o papel do Estado nos campos estratégicos.

O objetivo destas reformas é conseguir uma melhor eficiência na gestão das atividades econômicas, com um sistema de autonomia e descentralização que responsabiliza diretamente os dirigentes das empresas pelos resultados. Os laços entre as estruturas econômicas são regidos agora exclusivamente por contratos.

As empresas estatais ou as cooperativas estruturalmente deficitárias e não viáveis serão liquidadas ou poderão ser transformadas e adotar uma forma jurídica não estatal. Da mesma maneira, o Estado não vai subvencionar as perdas. Em troca, as empresas beneficiárias poderão investir seus lucros para se desenvolver, aumentar os salários dos trabalhadores nos limites que estabelece a legislação, ou contratar novos trabalhadores. Dispõe, assim, de uma liberdade total no que se refere à gestão dos recursos humanos.

O auge das cooperativas ilustra a vontade cubana de aprofundar o desenvolvimento socialista da economia em todos os setores, com uma propriedade coletiva. Elas dispõem de autonomia completa em todos os níveis. Entretanto, para evitar toda a concentração de riqueza, não podem ser vendidas ou entregues a outra entidade que não seja o Estado.

Na agricultura, a prioridade nacional é a produção de alimentos para reduzir a dependência do exterior em um país que importa mais de 80% do seu consumo. Entrega-se a terra para usufruto dos camponeses, que se transformam em produtores independentes, remunerados por seu próprio trabalho, mas a terra segue sendo propriedade do Estado.

A nova política monetária permite outorgar créditos às empresas e aos cidadãos com o objetivo de favorecer a produção de bens e serviços para a população. Um dos grandes desafios da sociedade é a unificação monetária. De fato, a dualidade monetária vigente em Cuba é fonte de sérias desigualdades. Para isso, devem ser realizados importantes esforços em termos de produtividade e de redistribuição da riqueza de acordo com a lei de redistribuição socialista “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo sua necessidade”.

Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos.

Em homenagem à visita a Cuba, Madureira lança uniforme no Fut7



Tricolor Suburbano relembra encontro com Che Guevara, que aconteceu em 1963 

Do FutRio
A equipe de Futebol de 7 do Madureira lançou, nesta sexta-feira (27), seu novo uniforme para a sequência da temporada. O time usará uma camisa que relembra a visita da equipe de futebol de campo a Cuba, nos anos 60. Na excursão, ficou famoso o célebre encontro com o argentino Che Guevara, que liderou a Revolução Cubana naquele país, em 1959.

A camisa titular é grená, com números em amarelo, com a imagem do guerrilheiro como uma marca d’água, no canto esquerdo da camisa. Mas a camisa de goleiro é a mais chamativa. Predominantemente azul, ela reproduz a bandeira cubana, também com um desenho de Che como marca d’água. Ainda há na camisa a inscrição “Hasta la victoria, siempre”, frase famosa dita pelo líder revolucionário argentino, em 1965, numa carta de despedida endereçada a Fidel Castro, seu companheiro de revolução. Che Guevara morreu dois anos depois.

A apresentação desta sexta foi na Arena Akxe, na Barra da Tijuca, local em que o Madura manda seus jogos do time de Fut7. A ideia da camisa foi do presidente do Madureira Arena Akxe de Fut7, Carlos Gandola, que teve o apoio do FutRio.net e da WA Sports na sua concepção e confecção. Aliás, a inspiração para a iniciativa partiu de uma matéria do FutRio, sobre os 50 anos da excursão do Madureira a Cuba.

Em 2014, o Madureira Esporte Clube completa 100 anos e está prevista uma camisa comemorativa, mas diferente da apresentada pelo Fut7 e que deve ser usada pela equipe de futebol de campo.

Partido Comunista Português vira 3ª força política do país


Agremiação reconquistou cidades-chave como Évora, Loures e Beja, e outras emblemáticas, como Grândola e Cuba


O Partido Comunista Português (PCP), em aliança com os “verdes”, saiu das urnas após as eleições deste domingo (29/09) com os melhores resultados em 15 anos, como o favorito de 11% dos eleitores e a terceira força política do país. O sucesso obtido em trinta e quatro cidades (com vitória absoluta em 29 delas) coloca o partido à frente de cerca de um milhão de habitantes –aproximadamente 10% da população de Portugal.
Wikimedia Commons

Os eleitores penalizaram o Partido Social Democrata (centro-direita) do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que perdeu sete pontos percentuais em relação a 2009. O fôlego a candidatos independentes, como Rui Moreira na cidade do Porto – tradicional bastião dos social-democratas –, o índice recorde de abstenções (47%) e a fatia de 36% dos votos conquistada pelos socialistas podem ser lidos, junto com a vitória dos comunistas, como uma clara rejeição popular às medidas de austeridade implementadas pelo governo central desde o resgate financeiro ao país, em 2011.

[Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP]

Por outro lado, o Bloco de Esquerda teve uma redução no número de representantes eleitos nos municípios portugueses, principalmente nas freguesias - de onde caiu de 235 eleitos em 2009 para 138 agora.
Esse resultado vem duas semanas depois de o partido “A Esquerda” (Die Linke), na Alemanha, ter se tornado a terceira força do Bundestag, o parlamento do país. O Linke é o partido resultante do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha), que governou a antiga Alemanha Oriental até pouco depois da queda do Muro de Berlim, em 1989.
Oposição mais forte
Em discurso na capital, o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, comemorou a vitória dos vermelhos com uma crítica ao governo central. “O governo tem os dias contados, é um governo derrotado e isolado dos portugueses”. O ex-operário de 66 anos reforçou “a necessidade, possibilidade e urgência” da demissão do atual primeiro-ministro.   

Os comunistas reconquistaram cidades-chave como Évora, Loures e Beja, e outras emblemáticas, como Grândola (que dá nome à canção usada na Revolução dos Cravos) e Cuba, consideradas feudos vermelhos e que estavam nas mãos dos socialistas. Além disso, conseguiram manter os quadros na maioria dos municípios onde governavam, perdendo o poder em apenas quatro.
Os resultados coloriram de vermelho o mapa do sul do país. Tradicionalmente, os comunistas sempre foram populares nas zonas rurais do Alentejo e nas industriais dos distritos de Setúbal e Lisboa. Na cidade de Loures, Bernardino Soares derrotou João Nunes (PS) após iniciar a campanha com uma desvantagem de 25% dos votos em relação ao então favorito. A vitória afastou da cidade os socialistas, no poder há 12 anos.

O PCP faz hoje uma oposição radical ao governo de Passos Coelho e à troika, grupo de credores internacional. Fundado em 1921, o partido teve grande participação na Revolução dos Cravos de 1974, que pôs fim a 41 anos de ditadura do Estado Novo. Enquanto os esquerdistas na Europa rumaram ao socialismo e à social-democracia, ele manteve-se fiel aos dogmas comunistas. No programa do partido, que se define como marxista e leninista, um dos objetivos é construir “uma sociedade liberta da opressão e da exploração capitalistas”.

Fonte: operamundi

"Mensalão", a toga e o palco


Os telejornais abusaram de repetir, na semana que se foi, lamentável diálogo entre dois ministros do STF, um antigo juiz, useiro e vezeiro em conceder liminares discutíveis (e mal recebidas pela ‘opinião pública’ que agora corteja, como, por exemplo, a que libertou Cacciola), com um ministro novo, chamado pelo antigo, de forma depreciativa, de ‘novato’.


Por Roberto Amaral, na Carta Capital


O juiz benjamin (nem por isso menos experiente e sabidamente mais culto) era criticado por haver posto em dúvida a juridicidade de certas decisões dos ‘antigos’. Ora essa hierarquia – velhos e novos – jamais medrou na Corte constitucional, onde, em compensação, tampouco é regimental a distinção entre competentes e incompetentes, embora uns e outros sejam assaz conhecidos.

A boa norma dos tribunais, a começar pelos superiores, aqueles cujas decisões são irrecorríveis, é a busca daquilo que se configura como a melhor interpretação da lei, a identificação de seu espírito, de sua índole, de sua finalidade, a saber, fazer justiça. Seja mediante a decisão solitária do juiz no julgamento monocrático, seja mediante o voto que irá compor a decisão coletiva. Não deve importar ao julgador se a sentença lavrada é popular ou não. Pergunta-se apenas se foi limpa, se procurou a Justiça. E a resposta só encontrará em sua própria consciência.

A decisão – o parecer, o relatório, o acórdão – a despeito de sua vestimenta técnica (da qual não pode despir-se) –, é construída no diálogo íntimo do juiz com sua própria consciência, apartado de quaisquer influências extra-autos, sejam os pleitos da amizade, sejam os pleitos do poder econômico, sejam os pleitos do poder político, sejam mesmo os pleitos da opinião açulada pela imprensa, seja aquela que condenou o capitão Dreyfus, para vergonha da França, seja a que condenou, sem direito a recurso, a família proprietária da Escola Base, em São Paulo. A Justiça, para ser isenta, e a isenção é naturalmente difícil na sociedade de classes, tem de estar de olhos vendados para todos os lobbies e pressões.

O juiz não pode temer nem a impopularidade nem a incompreensão de seu voto (como não temeram, em papéis distintos Lewandowski e Celso de Mello), nem o clamor da opinião publicada, principalmente quando lhe cabe decidir da liberdade de um réu previamente condenado pela imprensa. Os princípios de deontologia da magistratura se impõem sobre a glória fugaz do aplauso.

Ao tempo da presidência Ayres de Brito, assistimos a um populismo extemporâneo denominado de ‘neopositivismo’, o jeito de torcer a lei para interpretá-la contra seu próprio espírito. Na verdade, tratava-se de o STF legislar ao arrepio da ordem constitucional, invadindo a competência privativa de um Legislativo que, genuflexo, carecia de força moral para reagir, embora tivesse o dever de cumprir o artigo 49, inciso 11, da Constituição Federal, que o manda “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.

E só por isso assim agia o STF.

No ano Barbosa, o STF se julgou no papel de representante do que a imprensa lhe dizia ser a opinião da sociedade, e para atender ao clamor da imprensa – vale dizer, a opinião do oligopólio empresarial que domina os meios de comunicação de massa, formando consciências e sentimentos – importou a jamais aplicada teoria do domínio do fato, que, para a condenação do réu, dispensa a Polícia e o Ministério Público de produzirem a prova. Fica mais fácil a condenação do réu, é verdade, mas não só a dos culpados, como também a dos inocentes – e isso é o que deveria nos preocupar a todos.

É a mesma Corte que cedo se amoldou às conveniências militares e agora se diz zelosa da democracia.

A transmissão direta das sessões do STF, como das duas casas do Congresso, tem contribuído, e muito, para a transparência que se quer do exercício do poder público, qualquer que seja a instância. Mas, no que se aplica ao Supremo, contribui também para o surgimento dessa figura já ridícula do ministro pop star, o juiz-ator, o juiz-espetáculo, beirando a falta do decoro que de nossos magistrados mais se exige do que dos parlamentares.

No lamentável diálogo referido acima, o ministro Marco Aurélio Mello insurgia-se contra o reino da liberdade de consciência para o julgamento isento, que o ministro Barroso, o ‘novato’, arguia como fundamento da magistratura. A essa responsabilidade pessoalíssima, o ministro antigo opunha, como imperador, o que chama de ‘clamor das ruas’, a nova soberania, supraconstitucional. Dirigindo-se de forma quase pândega ao ministro Celso de Mello – antes louvado pela mídia pelos votos severos na Ação penal 470 – dizia-lhe, o mesmo Marco Aurélio Mello, estar o STF a um voto da sua consagração ou de seu descrédito, tudo a depender do voto do decano.

(No mesmo dia em que o ministro Celso de Mello dita seu voto-aula – de direito e de ética –, o ministro Gilmar Mendes, notório boquirroto, procura a mídia para desnudar-se ideológica e culturalmente. Na entrevista a que se ofereceu, declarou ao Portal UOL: “Daqui a pouco nós conspurcamos o Tribunal, corrompemos o Tribunal, transformamos ele (sic) num Tribunal de Caracas, de La Paz (cidade que ele supõe ser a capital da Bolívia, e sede de seu Supremo, em vez de Sucre...), num Tribunal bolivariano”.

Sobre o trono no qual se senta Joaquim Barbosa, e bem visível por todos os ministros, estava, e está, apesar de nossa opção laica e republicana, a imagem do Cristo crucificado, a exata mensagem do que significa o julgamento ditado pelas turbas e a pusilanimidade do julgador.

Seria, talvez, querer muito pedir a alguns de nossos ministros a leitura de Rui Barbosa, autor crescentemente fora de moda em nossas Cortes. Em homenagem ao ministro Lewandowski reproduzo trecho da famosa carta de Rui a Evaristo de Morais, pai, texto que se transformaria na tábua dos deveres do advogado:

“Quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”.

Troque-se opinião por voto e eis uma lição a ser ouvida por juízes de primeira, segunda e última instâncias, audiência especialmente recomendada àqueles juízes-atores que julgam sob os holofotes da televisão.

Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.

Os testemunhos das mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar


A Comissão Nacional da Verdade, criada para elucidar crimes cometidos durante o período acaba de completar um ano. Antes de seu encerramento em 2014, tem como uma de suas principais missões contar o que sofreram as mulheres que foram contra o regime. São brasileiras hoje na faixa do 60 anos, como as ouvidas por Marie Claire: vítimas de estupros, choques nos mamilos, ameaças aos filhos, abortos...

Em pé sobre uma cadeira, nua, encapuzada e enrolada em fios, Ana Mércia Silva Roberts, então com 24 anos, esforçava-se para manter os braços abertos, sustentando uma folha de papel presa entre os dedos de cada mão. Ela estava naquela posição havia horas. A cada vez que o cansaço lhe fazia baixar minimamente os braços, um choque elétrico percorria todo seu corpo. E as gargalhadas preenchiam a pequena sala. Eram vários homens, talvez oito, talvez dez. Cada um com um rosto, uma história, uma vida. “Um dos meus torturadores poderia ser meu avô, um senhor de gravata-borboleta para quem eu daria lugar no ônibus; o outro era um loiro com chapéu de caubói. Havia um homem com jeito de pai compreensivo que chegou a me dar um chocolate, e um jovem bonito com longos cabelos escuros, que andava de peito nu, ostentando um crucifixo, de codinome Jesus Cristo”, afirma.
O rosto desses algozes, integrantes da repressão militar, e as cenas do dia em que teve de ser estátua viva perante eles são parte das lembranças que Ana Mércia, hoje 66, guarda de quase três meses de prisão no DOI-Codi e no Dops, dois centros paulistanos de tortura e prisão de oposicionistas ao regime militar, instaurado sete anos antes. Integrante do Partido Operário Comunista, ela esteve nos porões da ditadura em 1971, mesma época em que o País vivia a prosperidade do “milagre econômico” e o ufanismo alimentado pela conquista da Copa de 70 e por slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Nos meses em que ficou encarcerada, seu corpo e mente foram massacrados de diversas formas. Mas não é ao descrevê-las que seus olhos ficam marejados. “Estranhamente, eu não me lembro de quase nada daquelas semanas, meses. Fiz terapia, mas não consigo recuperar esses trechos da minha vida. O que mais me dói é isso. Vários pedaços de mim e da minha existência não me pertencem, ficaram com eles (os militares)”. Ana Mércia é uma mulher com pouca memória das torturas daqueles porões. E é também uma metáfora do próprio Brasil, que segue desmemoriado das histórias do regime militar (1964 a 1985) quase 30 anos depois do fim da ditadura. A diferença entre Ana Mércia e o Brasil é que ao País foi dada a chance de recuperar e registrar os detalhes de sua história. É essa a missão da Comissão Nacional da Verdade, criada pela presidenta Dilma Rousseff (ela mesma vítima de torturas do Estado) e que tornou acessíveis uma série de papéis até então secretos. Desde maio de 2012, 19 milhões de páginas de documentos foram retirados de seus arquivos e estão em análise, e cerca de 350 pessoas foram ouvidas. É um movimento delicado e, para muitos, atrasado. Até então, o Brasil já havia debatido por anos como lidar com a violência da época.
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (Foto: Gonçaves (CPDOCJB))
A Ordem dos Advogados do Brasil chegou a pedir, em 2008, a revisão da Lei da Anistia, que perdoava todos os “crimes políticos” e beneficiava também torturadores, mas teve o pedido negado pela Justiça. Da sua parte, grupos militares se opunham à quebra de sigilo e à própria Comissão por temer uma caça às bruxas. Foi depois de muito diálogo que se chegou à fórmula de um grupo de trabalho com ênfase na transparência: a Comissão da Verdade pode acessar qualquer documento que considerar importante e tem o poder de convocar pessoas para depor, mas não de julgá-las. Do primeiro ano de trabalho, emergiram as conclusões de que a tortura começou em 1964, pouco depois do golpe, e ocorreu em pelo menos sete estados diferentes. Nesse pouco tempo, o Estado brasileiro admitiu que os assassinatos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog foram obra de seus agentes, e descortinou o recrutamento e o extermínio de tribos indígenas da Amazônia pelos militares.
Tudo isso dá contornos mais nítidos à história recente do País, mas o grupo ainda tem muito a contar até dezembro de 2014, quando os trabalhos serão encerrados. Uma das principais incumbências da Comissão é esclarecer a participação das mulheres na resistência à ditadura e as torturas a que foram submetidas. “Acreditamos que as mulheres sofreram violências específicas, sexuais, motivadas também por machismo, que buscavam destruir a feminilidade e a maternidade delas”, afirma Glenda Mezarobba, uma das coordenadoras do grupo Ditadura e Gênero, que investiga o assunto na Comissão da Verdade. Os trabalhos ainda não possuem conclusões definitivas, mas há fortes indícios do que pode ter acontecido às brasileiras durante as duas décadas de regime militar. “Hoje, trabalhamos com um número de 500 mortos pela ditadura, 50 deles seriam mulheres. Mas sabemos que os dois números estão subestimados”, afirma Glenda, empenhada em refazer a estatística.
CENA COMUM EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO (Foto: Acervo Memorial da Resistência de São Paulo)
A quantidade de processos reclamando anistia sugere que esse número é muito maior. Desde 2001, o Ministério da Justiça recebe pedidos de indenização de brasileiros que, de alguma maneira, tiveram a vida marcada pelo regime militar. São parentes e vítimas de violência ou pessoas que, por motivo exclusivamente político, ficaram impedidas de trabalhar. Hoje, o órgão contabiliza mais de 73 mil pedidos. Mais de 40 mil já foram aceitos. As mulheres foram fundamentais no combate ao regime em todas as suas fases. Seu engajamento nos movimentos pela anistia dos presos políticos, que muitas vezes culminaram com passeatas exclusivamente femininas, são a parte mais conhecida dessa militância. Mas, nas organizações de esquerda Ditadura, elas também foram importantes. Guardavam armas e abrigavam militantes (aliás eram preferidas para essa função, pois levantavam menos suspeitas), traduziam jornais comunistas estrangeiros, participavam das aulas de doutrinas ideológicas, da elaboração dos planos de assaltos e sequestros, tinham aulas de tiro e muitas foram a Cuba fazer curso de guerrilha. Nas organizações clandestinas, chegaram a dirigentes.
“Era preciso que houvesse uma mulher em cada esconderijo, para manter a aparência de uma casa normal”, afirma Glenda. Elas também agregavam uma faceta afetiva e familiar às organizações, muitas foram mães na clandestinidade ou na cadeia. Na descrição feita pela psicóloga argentina, naturalizada brasileira, Maria Cristina Ocariz, a mulher militante parece a expressão viva da frase do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. “Elas tinham a mesma garra que os homens. Perdiam companheiros, assassinados pelo regime, e ainda assim seguiam na luta, não por frieza, mas por convicção ideológica de poder construir um mundo melhor para seus filhos.” Cristina, que hoje coordena a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, um serviço que oferece espaço para reparação psicológica aos afetados por ditaduras, fez parte da resistência aos militares argentinos antes de se exilar no Brasil. Na juventude, na década de 70, ela deixava seu bebê de 1 mês nos braços da mãe, em Buenos Aires, ia a manifestações e corria para casa a tempo de amamentar seu filho. Quando eram presas, as mulheres tinham pela frente não apenas a tortura, mas também o sexismo e a violência sexual. “É claro que ser mulher fazia diferença. Porque ainda que os homens torturados também tivessem de ficar nus, eles tiravam as roupas na frente de outros homens. A mulher ficava nua diante dos olhos cobiçosos e jocosos daqueles homens, essa era a primeira violência”, afirmaTatiana Merlino, organizadora do livro "Luta, Substantivo Feminino", publicado em 2010 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que descreve o assassinato de 45 mulheres militantes.
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (Foto: Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
NUDEZ E TORTURA
“A primeira coisa que eles fizeram quando entrei na sala de depoimento foi me mandar tirar a roupa, eu já fiquei apavorada”, afirma Ana Maria Aratangy, de 66 anos. “Eu não esperava por aquilo. Eu mesma fui tirando a roupa, achei que era melhor do que deixá-los arrancar. Acho que foi pior do que as torturas que vieram depois”. Ana Maria era membro do Partido Operário Comunista quando foi presa, aos 24 anos, e estava grávida de algumas semanas, mas não sabia. Estudante do sexto ano de medicina, ela afirma que sua militância era tímida: guardava duas armas em casa e tinha leituras consideradas
subversivas.
Nem sequer conhecia os líderes do POC. Até por isso, não teve muito a dizer quando vieram os choques nos mamilos e os tapas no rosto. Tampouco pôde conter os gritos. Enquanto gritava, sua mãe, que havia sido presa junto com ela, ouvia da sala ao lado. Ana Maria só saiu da prisão aos cinco meses de gestação. Sua filha, hoje, tem 41 anos.
“Depois de nos colocarem nuas, eles comentavam a gordura ou a magreza dos nossos corpos. Zombavam da menstruação e do leite materno. Diziam ‘você é puta mesmo, vagabunda’”, afirma Ana Mércia. As violências que seguiam incluíam, em geral, choques nas genitálias, palmatórias no rosto, sessões de espancamento no pau de arara, afogamentos ou torturas na cadeira do dragão, cujo assento era uma placa de metal que dava descargas elétricas no corpo amarrado do prisioneiro. Mas com as mulheres era diferente. “Havia uma voracidade do torturador sobre o corpo da torturada”, afirma a psicóloga Maria Auxiliadora Arantes, cuja tese de doutorado sobre tortura no Brasil será publicada este ano. “O corpo nu da mulher desencadeia reações no torturador, que quer fazer desse corpo um objeto de prazer.”
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA, NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (Foto: Almir Veiga (CPDOCJB))
Foi exatamente o que viveu Ieda Seixas, de 65 anos. Aos 23, ela foi presa por causa da militância do pai, operário. Demorou muito tempo para ser capaz de relatar o que passou. E, quase 40 anos depois, não consegue conter as lágrimas ao descrever: “Levaram-me para um banheiro durante a noite, no DOI-Codi, eram uns dez homens. Fiquei sentada em um banco com dois deles me comprimindo, um de cada lado. Na minha frente, em uma cadeira, sentou um cara que chamavam de Bucéfalo. Ele me dava muito tapa na cara, a minha cabeça virava de um lado para o outro, mas eu nem sentia, porque um dos homens que estava sentado ao meu lado não parava de passar a mão em mim, colocou os dedos em todos os meus orifícios. Era tão terrível que eu pedia: ‘Coloquem-me no pau de arara’. Mas aquele homem dizia: ‘Não, gente. Não precisa levar essa aqui para o pau de arara. Comigo ela vai gozar e vai falar’.
Todos riam. Naquela noite, se eu tivesse tido meios, teria tentado me matar.” O suicídio pode ter sido o destino de outras mulheres que não conseguiram suportaram a violência sexual. Segundo Luci Buff, da Comissão da Verdade, começam a aparecer informações de que até mesmo freiras teriam sido estupradas por militares. Amélia Teles, de 68 anos, relata que não foi capaz de conter o vômito ao ver que o torturador ejaculava sobre seu corpo nu e ferido, depois de masturbar-se olhando para a vítima, amarrada na cadeira do dragão. Militante do Partido Comunista, ela tinha dois filhos, de 5 e 4 anos, quando foi presa, em 1972. O assédio sexual do torturador não foi a pior parte. Em um dos dias na prisão, depois de ser exaustivamente torturada Amélia viu a porta da sala se abrir e seus dois filhos entrarem. “Foi a pior coisa do mundo. Eu, amarrada (nua) na cadeira do dragão, sem nem poder abraçá-los. A minha filha me perguntou: ‘Mãe, por que você está azul?’. Eram as marcas dos hematomas, do sangue pisado, espalhados pelo meu corpo”, afirma Amélia. “Eles foram claros comigo: para manter meus filhos vivos, eu teria que colaborar com eles.” Os dois filhos hoje são adultos. Passaram por terapia e guardam apenas fragmentos de memória de sua visita ao DOI-Codi. Nenhum quis ter filhos. Amélia credita esse fato ao trauma na infância.
Agredir crianças para atingir a mãe não era um recurso excepcional. Nem sequer as mulheres grávidas eram poupadas. Em 1974, com uma barriga de seis meses de gestação, a militante do grupo revolucionário MR-8 Nádia Nascimento foi presa, junto com o seu companheiro, em São Paulo. “Já foram logo me dizendo que filho  de comunista não merecia nascer. Arrancaram minha roupa na frente do meu companheiro, que já estava muito machucado pela tortura, e perguntavam se ele queria que me torturassem, diziam que dependia dele. Ameaçaram me estuprar na frente dele, mesmo grávida. Até que,em um dado momento, me colocaram na cadeira do dragão. Ali, comecei a sangrar por causa dos choques e perdi meu filho”, conta Nádia, que teve uma série de complicações médicas decorrentes do aborto provocado e da falta de cuidados hospitalares. A criança se chamaria Lucas e hoje teria 39 anos de idade.
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA. MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (Foto: Jesus Carlos (Imagem Global))
Também presa aos seis meses de gestação, Criméia de Almeida, de 67 anos, conseguiu manter seu filho na barriga, a despeito das torturas. Quando a bolsa estourou, na cela solitária que ela ocupava em uma carceragem do exército em Brasília, dezenas de baratas que habitavam o lugar começaram a subir por suas pernas, alvoroçadas por se alimentar do líquido amniótico. Embora pedisse ajuda, teve de esperar horas até ser transferida a um hospital. Lá, a ex-guerrilheira do Araguaia, que havia trabalhado como parteira na Amazônia, teve as pernas e os braços amarrados. “Quando o bebê nasceu, já o levaram para longe de mim. E o médico me costurou sem anestesia, eu gritava de dor. Daí passaram a usar meu filho para me torturar. Passavam dois dias sem trazê-lo para mamar. Quando ele vinha, estava com soluço, magro, morto de fome. Ele nasceu com quase 3,2 kg. Mas com um mês de vida pesava apenas 2,7 kg. Na infância, ele tinha muitos pesadelos, chegou a ter convulsões. É claro que ficaram traumas em todos nós. Quando eu estava presa e ouvia o tilintar de chaves na carceragem, que significava que alguém seria torturado, o bebê começava a soluçar dentro do útero. Hoje, aos 40 anos, João Carlos ainda soluça toda vez que fica estressado”, afirma Criméia.
Ele não conheceu o pai, André Grabois, que até hoje é considerado desaparecido político. Criméia não teve a chance de enterrar seu companheiro. É provável que André tenha sido assassinado pelos militares durante a guerrilha do Araguaia – movimento comunista na região amazônica combatido pelo governo entre 1972 e 1974, no qual acredita-se que os militares tenham lançado bombas de Napalm, o mesmo químico usado no Vietnã, de acordo com mais uma revelação recente da Comissão da Verdade. Sorridente até ali, em um evento sobre educação internacional para mulheres, a ministra das mulheres, Eleonora Menicucci, ganhou um semblante pesado ao ser indagada por Marie Claire sobre sua história na ditadura. Quando foi presa, em 1971, tinha apenas 22 anos e uma filha de 1 ano e 10 meses. Para forçála a dar informações de sua atividade política, os militares colocaram a menina, Maria,  apenas de fralda, no frio. A criança chorava e os torturadores ameaçavam dar choques nela. Ieda Seixas, que foi aprisionada na mesma cela que a atual ministra logo depois dessa sessão de tortura, afirma: “A Eleonora andava como um animal enjaulado, de um lado para o outro, e dizia ‘minha filha, minha filha’. Tinha os olhos esbugalhados, passava a mão pelos cabelos com desespero, parecia que ia explodir. Era mais do que estar transtornada, ela estava em estado de choque”.
Sobre a experiência, a ministra diz: “A Maria superou tudo e hoje é uma vencedora. Eu também superei. Tive outro filho que me deu a certeza de que o que fiz foi correto e me mostrou que eu ainda era capaz de ser mãe mesmo depois de todas as torturas que sofri. Mas, ainda assim, relembrar isso é muito sofrido. Acho que cada um resolve à sua maneira. A Maria aprendeu a lidar com isso com mais liberdade e menos sofrimento. Eu, tudo o que tinha de falar, eu falei. Porque o pior não é a tortura física, mas a psicológica, a ameaça. As ameaças que faziam comigo de torturar a Maria na minha frente eram tão pesadas que talvez fossem mais fortes do que a própria tortura em si”.
AS GRADES DO DOPS (Foto:  Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
O FUTURO
É com essa mesma memória que o Brasil tenta aos poucos lidar. A abertura dos arquivos e os depoimentos, que pode resultar em processos contra os torturadores, não são as únicas manifestações. No cinema, "Hoje", filme da diretora Tata Amaral, mostra o quão atual é nossa dívida com a história. A protagonista do longa, vivida pela atriz Denise Fraga, é uma ex-militante de esquerda cujo marido foi morto pelos militares. Ela recebe uma indenização pela morte dele e compra um apartamento, mas, no dia da mudança, o desaparecido ressurge. A figura do retorno mostra como é difícil seguir em frente sem resolver o passado. É assim no filme e na vida de Criméia, Amélia, Ieda, Ana Mércia e Ana Maria. “Ao fazer "Hoje", me deparo com uma sociedade que permite que sua memória seja roubada. E que aceita que, neste momento, alguém esteja sendo torturado numa prisão brasileira. Será que em algum momento a gente vai dizer: ‘Chega!’?”


sábado, 28 de setembro de 2013

Mohammad Ali Ghanezadeh Ezabadi: A história se repete: o racional vencerá?



Mohammad Ali Ghanezadeh Ezabadi*

As primeiras sanções contra o Irã na época contemporânea foi o embargo dos britânicos, em resposta à eleição do Dr. Mohammad Mossadegh, quem realizou a naciolalização da indústria do petróleo.
Com a vitória do Mossadegh, o governo britânico iniciou uma série de operações de intimidações e ameaças, bem como a colocação dos seus navios de guerra para as proximidades das costeiras iranianas.
O passo seguinte foi o bloqueio das reservas iranianas na Inglaterra. Simultaneamente, foram desencadeados dentro do país atos prejudiciais à economia e contra o movimento de nacionalização do petróleo, com a ajuda dos seus apoiadores. No exterior, começaram as publicidades com a finalidade de denegrir a imagem do país junto a comunidade internacional e outros Estados.
Os ingleses para se mostrarem injustiçados no processo de nacionalização, recorreram as intâncias internacionais como o Tribunal Internacional de Justiça e ao Conselho de Segurança.
Em 1951, foi apresentado ao Conselho de Segurança, com o apoio dos americanos e franceses, uma proposta de resolução cujo motivo era a ameaça à paz e a segurança internacional.
Naturalmente surgem questionamentos, “Será que a nacionalização da indústria de petróleo do Irã era um risco contra a paz e a segurança do mundo? Ou é um ato contra interesses dos países poderosos? Arriscar os interesses coloniais de um país, é um assunto a ser tratado no Conselho de Segurança?
Em 1952, o Tribunal de Haia sentenciou a favor do Irã no processo de nacionalização da indústria de petróleo.
Esse processo foi um golpe fatal às políticas do governo britânico. Temendo o alastramento do modelo iraniano para outros países petroleiros, foi decidido impor outras medidas, como criar problemas econômicos e inflacionários, o aumento de preços para provocar a insatisfação popular e debilitar o país economicamente.
A Inglaterra, advertiu todos os compradores do petróleo bruto a não negociarem com o Irã. O Dr. Mossadegh como primeiro-ministro naquela época, tomou a política de venda preferencial do petróleo para neutralizar a conspiração britânica. Mesmo com o preço do petróleo mais baixo, a sua política gerou um rendimento dobrado do que o país ganhava com a companhia de petróleo inglesa. Paralelamente, ele implementou uma política bem sucedida de austeridade econômica para amenizar o boicote britânico que se baseava contra a dependência da economia ao petróleo.
O Reino Unido e os Estados Unidos se aliaram contra o governo do Dr. Mohammad Mossadegh. Os americanos, com a desculpa de combate ao comunismo planejaram a derrubada de Mossadegh e o seu partido “o povo”, e o retorno de Xa Pavlavi. O Golpe de 19 de agosto de 1953 e o colapso de Mossadegh, primeiro-ministro do Irã, foi a primeira experiência da CIA para derrubar um governo.
O Golpe de estado não podia se camuflar pela carta da ONU ou por outras desculpas diplomáticas. Eles não conseguiram calar o clamor do povo pela independêcia da indústria petrolífera. O país se tornou pioneiro de um movimento no mundo em desenvolvimento que defendia a sua soberania sobre as suas riquezas.
A aplicação de novas sanções dos países ocidentais no atual momento, lembra os episódios da década de 50, com o tema diferente mas com o mesmo objetivo.
Mais uma vez, a padronização do modelo iraniano se tornou uma preocupação para os países ocidentais.
É inquestionável as conquistas iranianas no campo de tecnologias nucleares para fins pacíficos. O país se disponibiliza mostrar total transparência, enfatizando no seu direito de possuir esta tecnologia, e a não utilização para fins militares.
Agora, qual é a solução?
A realização de recente eleição presidencial na República Islâmica do Irã e a vitória do Dr. Hassan Rohani, como o novo Presidente, a sua abordagem e o modo moderado, coloca uma oportunidade para o Ocidente na mudança da seu atitude e substituir o confronto pelo modelo de engajamento construtivo. Será que o Ocidente mudará o seu comportamento?
Espero que sim.
*Mohammad Ali Ghanezadeh Ezabadi é Embaixador do Irã no Brasil

Fonte: PÁTRIA LATINA

A transmutação do fascismo: a matriz mediática



Caracas (Prensa Latina) O fascismo possui várias facetas e muda conforme as épocas para novas formas de dominação como a referente aos meios de comunicação em massa, presentes nas mais recentes tentativas de desestabilização promovidas pela direita contra governos progressistas na América Latina.
Participantes do I Encontro Internacional Antifascista, convocado em Caracas a 40 anos do Golpe de Estado no Chile, puseram a descoberto este processo de transmutação experimentado pelo fascismo desde sua criação nas primeiras décadas do século XX: uma de suas caras mais relevantes na atualidade deriva de sua matriz mediática.

De acordo com o jornalista e catedrático espanhol Ignacio Ramonet, o papel dos meios de comunicação nos golpes de Estado executados na América Latina, evidenciam a manipulação como uma das especialidades do fascismo, bem como a fascinação pelo controle dos meios.

Ao fazer uma contagem histórica desta manifestação política, Ramonet recordou a vinculação desde cedo entre fascismo e imprensa: assim, por exemplo, o ditador italiano Benito Mussolini -criador desta vertente ideológica- utilizava seu jornal para mobilizar massas e criar massas antiprogressistas, precisou.

Mais tarde, os nazistas na Alemanha -com Adolph Hitler, grande admirador de Mussolini- desenvolveram um sistema mediático, onde se destacou a propaganda com um ministro como Joseph Goebbels que utilizava os meios para manipular às massas.

Sobre esse ponto, o catedrático espanhol recordou que desde suas origens "a comunicação e a manipulação da mesma constituiu uma das especialidades do fascismo".

Não obstante, a diferença da Europa onde -segundo Ramonet- os meios eram impulsionados historicamente pelo Estado, na América Latina por tradição estadunidense estes se desenvolveram a partir de iniciativas e capital privado.

Por isso, esse caráter privado será característico da guerra mediática à que assistimos há 40 anos, que começou com o golpe de Estado contra o presidente chileno Salvador Allende e não terminou, disse o jornalista.

Como demonstração mais recente de seus argumentos citou a campanha mediática que contribuiu em 2009 à derrubada do mandatário hondurenho, Manuel Zelaya, ou o caso do Paraguai e o golpe parlamentar contra o presidente Fernando Lugo, em 2012.

Em todo este período a imprensa deveio expressão das oligarquias que já dominavam estes países, com todos seus recursos como a terra, o comércio, a banca e até o mesmo poder, explicou o catedrático ao recordar a posse dos meios de comunicação de massas por tais classes como elemento de propaganda de suas próprias ambições.

Daí que vemos -especificou- uma América Latina onde os meios de grupos de comunicação privados se jactam de ter feito e desfeito governos, posto e deposto presidentes, e que fazem parte do poder tradicional, das oligarquias e burguesias que se consideram donas naturais do país.

Assim, pareceria normal que a burguesia governe porque o país sob esta visão lhes pertence, e por isso quando a maioria pobre e explorada acede democraticamente ou chega por qualquer circunstância ao poder e aspira à redistribuição da riqueza mal repartida para acertar a dívida social, então não se aceita este tipo de partilha.

Desde esse momento põe-se em marcha o mecanismo do golpe: na América Latina nenhum governo com vontade de mudança social -exceto Cuba desde 1959- conseguiu manter-se no poder antes do triunfo do presidente Hugo Chávez na Venezuela, explicou Ramonet, ao denotar a significação da Revolução Cubana e Bolivariana para o acordar do continente.

Por sua vez, o vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, manifestou que o fascismo tem tido muitas caras: a princípios do século XX era um fascismo expansionista que invadia, na década de 1960 e 1970 era um fascismo golpista-militarista, dimensionou.

Hoje não há nem o rosto do invasor nem o rosto da ditadura militar, hoje há outro rosto: além da conspiração econômica, financeira, existe a mediática: É fascismo, mas sob novas formas, detalhou.

Conhecedora da cara mediática do fascismo, a ex-chanceler hondurenha, Patricia Rodas, expressou que esta vertente política "se transforma em expressões específicas que se transladam do ultramar para nosso continente com a intenção de esmagar todos os processos de transição e transformação democrática em curso".

Para tal fim, o fascismo então começa a mudar e a procurar novos mecanismos de dominação e de extravio mental que correspondam a essas novas formas de manifestação social que vão aparecendo, asseverou em declarações Prensa Latina.

Nesse sentido, a ex-ministra de Relações Exteriores do derrocado governo de Zelaya fez notar também a evolução dos métodos do fascismo desde os clássicos golpes militares para outras vias desestabilizadoras na atualidade como a guerra econômica e sobretudo na esfera mediática.

Tal estratégia é explicável se se entende que com a chegada dos novos tempos e das transformações sociais as armas de agressão fascistas evoluem e se transformam enquanto evoluem e se transformam os setores que pretendem agredir, precisou.

Desse modo, quando vimos a queda das ditaduras militares isso não quis dizer que desapareceram a repressão e os mecanismos de perseguição, mas que esta se transformou em outras formas como a manipulação mediática, denunciou.

É do modo que começamos a receber notícias e realidades deformadas e começou-se a injetar preconceitos a cidadãos de uma mesma sociedade que padecemos os mesmos males e se aprofundou na estigmatização do que é diferente ou de propostas inovadoras, agregou.

Inclusive a política de difamação, mentira e engano converte-se em uma cultura de ódio, tudo isso através dos meios de comunicação com seus respectivos mecanismos de formação de consciência para manter sob seu domínio do terror a setores importantes da população, expressou Rodas.

Acrescentou que a estratégia do terrorismo mediático pretende a divisão e desintegração social mediante o ódio: "com isso se aspira destruir esse tecido que fundamentou os Estados-Nação e a necessidade de nos integrar não só como sociedade como um com o outro, e de reconhecer as lutas de um continente e de nossos próceres".

Não obstante, contra esse mal atualmente luta-se pela integração de nossas pátrias latino-americanas, para conseguir uma forma de associação continental que não seja excludente e permita a eliminação do preconceito e do temor como base fundadora das grandes contradições que ameaçam o século XXI, afirmou.

A este respeito, considerou vital a solidariedade continental entre os povos pois só assim poderá ser enfrentado com sucesso o fascismo em qualquer lado que este se encontre, dimensionou.

*Corresponsável da Prensa Latina na Venezuela jha/mem/cc

Programas político, espacial e nuclear indianos são alvo da NSA



Interesses comercias estratégicos do país podem ter sido seriamente comprometidos. De acordo com um documento secreto revelado pelo ex-consultor da NSA, Edward Snowden, ao qual o jornal The Hindu teve acesso, o programa PRISM foi empregado pela agência norte-americana para colher informações vitais da Índia diretamente dos servidores de empresas gigantes de tecnologia que prestam serviços como e-mail, compartilhamento de vídeo, chamadas por IP, chats, transferências de arquivos e redes sociais.



As alegações públicas feitas por membros do governo dos EUA e da Índia de que a National Security Agency (NSA) não tirou nenhum tipo de conteúdo da rede de telefonia e de internet indiana e que o programa de vigilância estadunidense procurou apenas “padrões de comunicação” como medida contra o terrorismo estão longe da verdade, ou podem ser até mesmo completamente enganosas.

De acordo com um documento top-secret revelado por Edward Snowden ao qual o The Hindu teve acesso, o programa PRISM foi empregado pela agência norteamericana para colher informações vitais da Índia diretamente dos servidores de gigantes de tecnologia que prestam serviços como email, compartilhamento de vídeo, chamadas por IP, chats, transferências de arquivos e redes sociais.

E, de acordo com o documento sobre o PRISM visto pelo The Hindu, grande parte da comunicação que foi alvo da NSA não tem nada a ver com terrorismo, ao contrário do que dizem autoridades indianas e estadunidenses.
Pelo contrário, muito do que foi espionado tem a ver com a política interna indiana e os interesses estratégicos e comerciais do país.

Essa é a primeira vez que é revelado que o PRISM, que facilita minuciosa vigilância em comunicações ao vivo e em dados armazenados, foi usado pela maior organização de vigilância do mundo, para interceptar e colher conteúdo relacionado a pelo menos três pontos de interesse geopolítico e econômico para a Índia. São eles: nuclear, espacial e político.

O documento altamente secreto da NSA, que tem o selo de “Special Source Operation”, chama “Uma semana na vida do PRISM”, e mostra “amostras de tópicos de 2 a 8 de fevereiro de 2013”. Com uma etiqueta verde em que se lê “589 relatórios finais”, o documento traz os logotipos de companhias como Gmail, Facebook, MSN, Hotmail, Yahoo!, Google, Apple, Skype, YouTube, paltalk.com e AOL no topo da página.

“Relatórios finais” são relatórios oficiais produzidos a partir de informação bruta.

Numa seção intitulada “Índia”, o documento indica claramente várias matérias sobre que tipo de conteúdo foi colhido de vários servidores na internet no intervalo de apenas uma semana.

Esse documento é prova contundente de que a vigilância da NSA na Índia não se restringia a registrar telefonemas, mensagens de texto e logs de emails com o Boundless Informant, uma ferramenta da NSA usada massivamente na Índia. “Como política, espaço e nuclear são mencionados como ‘produtos finais’ nesse documento, isso quer dizer que telefones, emails e mensagens de texto de pessoas importantes relacionadas a esses assuntos foram constantemente monitorados e foi recolhida inteligência deles, e então a NSA preparou relatórios mais refinados com base nessa informação bruta. Isso quer dizer que eles ouvem ao vivo o que nossos líderes políticos, burocratas e cientistas estão conversando entre si” , disse um membro de uma agência de inteligência indiana ao The Hindu, falando sob a condição de se manter anônimo.

Mas ministros e membros do alto escalão do governo insistem em negar.
Depois que o Guardian publicou, em 7 de junho, que o programa PRISM permitiu que a NSA “obtivesse comunicação específica sem requisitar aos servidores de internet e sem precisar de ordens judiciais para cada caso”, membros tanto do governo dos EUA quanto da Índia disseram que nenhum tipo de conteúdo foi extraído das redes do país e que o programa visava “combater o terrorismo”.

O disfarce de Kerry
Durante sua visita a Nova Delhi, em 24 de junho, para participar do India-U.S. Strategic Dialogue, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, negou que programas de agências de seu país acessassem conteúdo online. “Ele não vê o conteúdo de emails. Ele não ouve conversas telefônicas das pessoas. É uma pesquisa aleatória feita por computador nos telefones de qualquer pessoa, pelos números e não pelo nome... Ele pega números aleatórios e verifica se esses números estão ligados a outros números, que ele sabe, por conta da inteligência, estejam ligados a terroristas, em lugares onde esses terroristas operam”, disse o sr. Kerry, enfatizando que apenas quando há um “vínculo relevante” as autoridades pedem uma ordem judicial para recolher mais dados.

Até os membros do governo indiano têm repetido tudo isso desde que as atividades da NSA no país foram reveladas. Em resposta a uma pergunta feita em Rajya Sabha, em 26 de agosto, o ministro das Comunicações e Tecnologia da Informação, Kapil Sibal, disse que as agências americanas só rastreiam qual “a origem e o destino dos dados, mas nunca tentam acessar o conteúdo, o que precisaria de uma ordem judicial”. “O governo ficaria muito preocupado se dados coletados ilegalmente fossem usados contra cidadãos indianos ou contra a infraestrutura do governo. O governo repassou essas preocupações muito claramente para o governo dos EUA”, disse o ministro, acrescentando que a violação de qualquer lei indiana sobre a privacidade das informações de qualquer cidadão indiano por programas de vigilância seria “inaceitável”.

O limite do “inaceitável” pode ter sido extrapolado pela NSA milhões de vezes com o programa PRISM, já que, de acordo com documentos revelados pelo sr. Snowden, ele é capaz de alcançar diretamente os servidores das companhias de tecnologia que fazem parte do programa, assim como coletar dados em tempo real de alvos específicos. “A National Secutiry Agency obteve acesso direto aos sistemas de Google, Facebook, Apple e outras gigantes da internet”, publicou o Guardian em 7 de junho, a partir de uma apresentação com 41 lâminas em PowerPoint que aparentemente foi usada para treinar agentes de inteligência com o programa.

Com os estrangeiros tudo bem
As companhias de tecnologia negam que permitam o acesso direto da NSA. Com duras palavras de rechaço à participação em programas de vigilância, eles alegam permitir o acesso a dados apenas nos termos previstos em lei.
Aqui está o pulo do gato. Ao contrário das negativas das empresas de tecnologia e das alegações do ministro das Comunicações indiano de que a agência norteamericana precisa de um “mandado judicial” para ver conteúdo online, a NSA usou as mudanças nas leis estadunidenses sobre vigilância que permitem que qualquer usuário dos serviços das empresas participantes “que more fora dos EUA ou os americanos que se comuniquem com pessoas fora dos EUA” seja alvo. Essa lei, conhecida como FISA Amendment Act ou FAA, foi introduzida pelo presidente George W. Bush e renovada pelo presidente Barack Obama em dezembro de 2012, e permite espionagem eletrônica em qualquer pessoa que pareça estar fora dos EUA.

Nenhum cidadão indiano, departamento de governo ou organização tem qualquer tipo de proteção legal contra a espionagem da NSA. Em uma declaração conjunta do Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional e da National Security Agency, em 21 de agosto de 2013, foi dito que “FISA existe para permitir que os EUA tenham dados de inteligência fora do país enquanto protege as liberdades civis e a privacidade dos americanos”.

Então a NSA não tinha nenhum empecilho – técnico ou legal – para usar o PRISM contra a Índia e contra os cidadãos indianos. Armada com a FAA e com a cooperação ativa das maiores marcas de internet, a NSA conseguiu pegar inteligência muito específica da Índia sobre assuntos de enorme interesse estratégico e com muitas implicações para a Índia. Enquanto os programas “espacial” e “nuclear” indianos têm claro valor comercial para empresas dos EUA, a vigilância de “política” tem enormes implicações para as políticas a serem adotadas na região.

“Se os americanos estão ouvindo nossos políticos e grampeando os telefones ou lendo emails de pessoas que cuidam dos programas espacial e nuclear, eles têm enormes vantagens sobre nós em todas as negociações e relações diplomáticas. Mesmo antes de sentarmos à mesa, eles sabem o que vamos fazer. Não é só uma violação da nossa soberania, é uma intrusão completa nos nossos processos decisórios”, disse um membro de alto escalão do Ministério de Assuntos Internos, que admitiu em off que os relatórios sobre a vigilância da NSA “chacoalharam” o governo.

O documento da NSA também tem os nomes de diversos países da Ásia, África e América Latina de onde a agência recolheu dados sobre assuntos que variam de petróleo à OMC a políticas governamentais, deixando claro que a espionagem da NSA estava focada em áreas comerciais e de negócios, e não no alegado campo da segurança nacional. “Se as agências de inteligência americanas e as grandes corporações estão caçando em par, nós vamos perder”, disse o membro do governo indiano.

Mais do que tudo, o fato de a NSA ter como alvo os programas espacial e político da Índia acabam com o mito de que há uma parceria estratégica entre Índia e EUA. O documento visto pelo The Hindu está povoado de países que são normalmente vistos como adversários dos EUA. Quando o programa PRISM foi revelado pela primeira vez, em junho, um membro do governo dos EUA disse que “as informações recolhidas por meio desse programa estão entre os mais valiosos dados de inteligência que já conseguimos, e são usados para proteger nossa nação de uma série de ameaças”.

Fonte: Carta Maior

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O tiro no pé das entidades médicas


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Jaru-RO: posto de saúde pichado em março, por moradores obrigados a percorrer 30 quilômetros até médico mais próximo
Rechaçar programa do governo, sem propor alternativas, evidenciou dilemas de profissão atordoada com tecnologia e massificação do atendimento

Por Lilian Terra
As entidades que em teoria representam a classe médica deram um tiro no pé. Ao se oporem ao programa “Mais Médicos”, tudo o que conseguiram foi fortalecer a imagem de elitistas e corporativistas que vem nutrindo ao longo das últimas décadas.
Nem sempre foi assim. Há não muito tempo atrás a medicina era vista como um dom, um sacerdócio. O médico era como o padre, sabia da vida das famílias que assistia – suas angústias, aflições. Era, além de cuidador, conselheiro. Mas o perfil do cuidado em saúde mudou. A tecnologia trouxe avanços de forma muito rápida e talvez o médico não tenha sabido conciliar os novos conhecimentos com a antiga e preciosa escuta do doente. Além disso, o acesso à saúde ampliou-se bem mais que a quantidade de médicos formados, de maneira que os que estavam no mercado precisaram captar os novos pacientes, em detrimento do tempo de atenção a cada um.
Hoje, temos muitas escolas médicas no país, com estudantes que buscam status e enriquecimento, mas também que buscam salvar vidas, cuidar de pessoas, independentemente de cor, credo ou classe social. Há ainda aqueles que buscam um sistema de saúde melhor e mais justo para o Brasil. Entram na faculdade entre seus 17 e 20 anos, vindos de famílias mais abastadas, de escolas particulares, tendo tido até então pouco ou nenhum contato com a pobreza, exceto aqueles provocados pela violência ou pelos funcionários mais pobres da família. A faculdade precisaria fazer com que estes futuros médicos abram seus olhos para esta nova realidade que se apresenta.
O fato é que existe muito preconceito dentro da classe médica com o trabalho na atenção básica. O “médico do postinho” é visto como alguém inferior, que não teve sucesso em escolher uma especialidade. As residências de Saúde Coletiva, Medicina Preventiva ou Saúde da Família são menos procuradas. Todos aspiram a ser Ivo Pitangui, quase ninguém a ser Osvaldo Cruz. Quando se fala em ir para o interior ou trabalhar nos Centros de Saúde da periferia, sempre dizem que não há estrutura e condições de trabalho – o que é bem verdade, mas talvez não seja o motivo real da recusa.
Tudo isso ficou muito claro no debate acerca do Programa Mais Médicos do governo federal. As entidades erraram, ao não mostrar à população que algumas alternativas já vinham sendo debatidas. Desde 2009, por exemplo, tramita no Legislativo a Proposta de Emenda Constitucional 454, cujo objetivo é instituir a Carreira de Estado para médicos. Quatro anos depois, a PEC segue sob análise de uma comissão especial. endo aprovada. A que aprovada, tramitará por tempo indefinido até apreciação do plenário das duas casas do Legislativo.
A exemplo do que ocorre no Poder Judiciário, não faltariam profissionais mesmo nos locais mais remotos do país – caso houvesse uma carreira. Porém, ao invés de chamar atenção para este aspecto, as entidades médicas focaram na recusa, não nas alternativas. Não mostraram à população o desejo real, de muitos médicos brasileiros, de ir para estas unidades de saúde; mas, sim, o o desejo de bloquear a vinda de estrangeiros. Demonstraram, em sua luta, mais medo de perder status e nível salarial do que de deixar a população desassistida, permitindo que o governo colocasse nos médicos a responsabilidade pela má qualidade da saúde pública.
Talvez as entidades médicas representaram bem a classe médica. Infelizmente, porém, existem profissionais que se viram abandonados pelos que deveriam representá-los – aqueles comprometidos com o SUS, que estão na luta por menos desigualdade social, por mais acesso aos serviços públicos, por mais qualidade destes serviços. Mais comprometidos que o próprio governo, que parece rejeitar a proposta de iniciativa popular que visa destinar 10% da receita bruta da União para a saúde. Ao se dirigir ao Congresso na última quarta-feira, 18/09/2013, a ministra Miriam Belchior afirmou não ser possível destinar essa fatia para o financiamento da saúde, ainda que especialistas tenham estudado previamente a proposta e que outros países destinem uma parte ainda maior de seu PIB.
Enquanto isso, as entidades médicas não tomam posição ao lado do governo ou ao lado da população. São uma terceira categoria, cada vez mais isolada. Como apontou a colunista Cláudia Colluci, em recente texto para a Folha de São Paulo, os médicos precisam se colocar “na pele de quem vive nos rincões sem assistência médica” e provavelmente este é um exercício muito difícil para jovens da classe média alta brasileira – certamente bem mais do que o das provas de vestibular.

Fonte: OUTRASPALAVRAS

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Friedrich Engels: Bruno Bauer e o Início do Cristianismo


Friedrich Engels


Em Berlim, em 13 de abril, morreu um homem que atuou como
filósofo e teólogo, mas, durante anos, dificilmente se ouvia falar dele, somente atraindo a atenção pública eventualmente como um "literato excêntrico". Teólogos oficiais, inclusive Renan, corresponderam-se com ele e, mesmo assim, mantiveram sobre ele um silêncio de morte. E ele valia mais do que todos eles e fez mais que todos eles em uma questão que também interessa a nós, Socialistas: a pergunta pela origem histórica do Cristianismo.
Por ocasião da sua morte, vamos fazer um breve relato da
situação atual da questão, e da contribuição de Bauer para a sua
solução.
A visão que dominou os livres-pensadores da Idade Média
incluindo os Iluministas do século XVIII, de que todas as religiões
eram obra de enganadores, e, portanto, o Cristianismo também, não
era mais suficiente depois que Hegel fixou para a filosofia a tarefa de
mostrar a evolução racional na história mundial.
É claro que se espontaneamente surgem religiões - como a
adoração de feitiços dos Negros ou a religião comunal dos arianos
primitivos — sem qualquer engodo inicial, entretanto, o engano,
através dos sacerdotes, logo se torna inevitável no seu
desenvolvimento subsequente. Apesar de toda fé sincera, religiões
artificiais não podem permanecer, desde a sua fundação, sem engano
e falsificação histórica. O Cristianismo, também, pode se gabar de
grandes realizações a este respeito desde o início, como Bauer
mostrou em sua crítica do Novo Testamento. Mas isto somente
confirma um fenómeno geral e não explica o caso particular em
questão.
A religião que subjugou o Império Romano e dominou sem dúvida
a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos, não pode ser
explicada apenas declarando ser ela uma tolice resultante de fraudes.
Não se pode elucidar esta questão e ter sucesso na explicação da sua
origem e do seu desenvolvimento sem partir das condições históricas
sob as quais surgiu e alcançou o domínio da situação. Isto se aplica
ao Cristianismo. A questão a ser solucionada, então, é: como
aconteceu que as massas populares no Império Romano preferiram
esta tolice — que era aceita, normalmente, pelos escravos e
oprimidos — a todas as outras religiões, e, finalmente porque o
ambicioso Constantino viu na adoção desta religião tola o melhor
meio de elevar a si mesmo ao posto de autocrata do mundo romano.
Bruno Bauer contribuiu mais para a solução desta questão que
qualquer outra pessoa. Não importa quanto os teólogos meio-crentes
do período da reação tenham lutado contra ele desde 1849, ele
irrefutavelmente demonstrou a ordem cronológica dos Evangelhos e
sua interdependência mútua, demonstrada por Wilke do ponto de
vista puramente linguístico, pelo próprio conteúdo dos Evangelhos.
Ele expôs a carência completa de espírito científico da vaga teoria de
mito de Strauss, de acordo com a qual se pode considerar como
histórico tudo quanto se gosta nas narrações do Evangelho. E, se
quase nada do conteúdo inteiro dos Evangelhos é historicamente
provável — de forma que até a existência histórica de Jesus Cristo
pode ser questionada — Bauer tem, assim, iluminado os fundamentos
para a solução da pergunta: qual é a origem das idéias e
pensamentos que foram tecidos como uma espécie de sistema no
Cristianismo, e como veio ele a dominar o mundo?
Bauer estudou esta pergunta até a sua morte. Sua investigação
alcançou seu ponto alto na conclusão que o judeu de Alexandria,
Filon, que ainda vivia por volta de 40 D.C., mas já era muito velho,
foi o pai verdadeiro do Cristianismo, e que o estóico romano Sêneca
era, por assim dizer, seu tio. A escrita numerosa atribuída a Filon que
nos alcançou tem origem realmente em uma fusão alegórica e
racionalisticamente concebida das tradições judaicas com as gregas,
particularmente a filosofia estóica. Esta conciliação de perspectivas
ocidentais e orientais já encerra todas as idéias essencialmente
Cristãs: o pecado inato do homem, o Logos, a Palavra, que está com
Deus e é Deus e que se torna o mediador entre Deus e homem: a
compensação, não por sacrifícios de animais, mas trazendo-se o
próprio coração a Deus, e finalmente a característica essencial que na
nova filosofia religiosa, invertendo a ordem mundial anterior, busca
seus discípulos entre os pobres, os miseráveis, os escravos, e os
rejeitados, e menospreza o rico, o poderoso e o privilegiado,
originando o preceito para menosprezar todo prazer mundano e
mortificar a carne.
Por outro lado, Augusto via em si mesmo não só o Deus-homem,
mas também a chamada concepção imaculada que se tornou fórmula
imposta oficialmente. Ele não só teve César e ele mesmo idolatrados
como deuses, mas também espalhou a noção que ele, Augustus
Caesar Divus, o Divino, não era filho de um pai humano, mas que sua
mãe o concebeu do deus Apolo. Mas não seria talvez o Apolo citado
na canção de Heinrich Heine? [Referência a Apollgott, de Heine.].
Como vemos, nós precisamos apenas da pedra fundamental e
teremos o conjunto do Cristianismo em suas características básicas:
a encarnação da Palavra se torna homem em uma pessoa definida e
seu sacrifício na cruz traz a redenção da humanidade pecadora.
As fontes mais confiáveis não nos dão certeza sobre quando esta
pedra fundamental foi introduzida nas doutrinas estóico-filônicas. Mas
uma coisa é certa: não foi introduzida por filósofos, nem discípulos de
Filon ou estóicos. As religiões são fundadas por pessoas que
experimentam uma necessidade própria de religião e têm uma
percepção das necessidades religiosas das massas. Como regra, este
não é o caso dos filósofos clássicos. Por outro lado, nós observamos
que em tempos de decadência geral, agora, por exemplo, a filosofia e
o dogmatismo religioso geralmente aparecem em sua forma vulgar e
superficial. Enquanto a filosofia grega clássica em suas últimas
formas — particularmente na escola Epicurista — leva ao
materialismo ateístico, a Filosofia grega vulgar leva à doutrina de um
Deus único e da imortalidade da alma humana. O Judaísmo também,
racionalmente vulgarizado em mistura e intercurso com estrangeiros
e meio-judeus, acaba negligenciando a cerimónia e transforma o
antigo deus judeu exclusivamente nacional, Jahveh, no único Deus
verdadeiro, o criador de céu e Terra, e adota a idéia da imortalidade
da alma, que era estranha ao Judaísmo inicial. Deste modo, a filosofia
vulgar monoteísta entrou em contacto com a religião vulgar, a qual
presenteou com o já elaborado Deus único. Assim, o caminho foi
preparado pela elaboração entre os judeus das também vulgarizadas
noções filônicas, e não dos próprios trabalhos de Filon, das quais o
Cristianismo procede, como está provada pelo quase total descuido
com que foi composta a maior parte do Novo Testamento,
particularmente a interpretação alegórica e filosófica das narrações
do Velho Testamento. Este é um aspecto ao qual Bauer não dedicou
atenção suficiente.
Pode-se ter uma idéia do que era o Cristianismo em sua forma
inicial lendo o chamado Livro do Apocalipse, de São João. Selvageria,
fanatismo confuso, dogmas incipientes, a moral Cristã é apenas a
mortificação da carne, mas há uma multidão de visões e profecias. O
desenvolvimento dos dogmas e doutrinas morais pertence a um
período posterior, no qual os Evangelhos e as chamadas Epístolas dos
Apóstolos foram escritos. Nestas últimas — pelo menos como
consideração moral — a filosofia dos estóicos, de Sêneca em
particular, foi copiada sem qualquer cerimónia. Bauer provou que as
Epístolas, frequentemente, copiam os antigos palavra-por-palavra; de
fato, qualquer fiel nota isto, mas mesmo assim eles mantêm que
Sêneca copiou o Novo Testamento, embora ele ainda não houvesse
sido escrito naquele tempo. O dogma foi desenvolvido, por um lado
com relação à lenda de Jesus que estava, então, se formando, e, por
outro lado, na luta entre cristãos de origem judaica e de origem
pagã.
Bauer também fornece dados valiosos sobre as causas que
ajudaram o Cristianismo a triunfar e atingir a dominação mundial.
Mas aqui o filósofo alemão é impedido por seu idealismo de ver
claramente e formular precisamente. As frases frequentemente
substituem a substância em pontos decisivos. Ao invés, então, de
entrar em detalhes sobre as visões de Bauer, daremos a nossa
própria concepção deste ponto, baseados em trabalhos de Bauer, e
também em nosso estudo pessoal.
A Conquista romana dissolveu em todos os países que dominou,
primeiro, diretamente, as condições políticas antigas, e depois,
indiretamente, também as condições sociais de vida.
Primeiramente, substituindo a antiga organização fundamentada
nas propriedades (escravidão à parte) pela distinção simples entre
cidadãos romanos e peregrinos ou vassalos.
Depois, e principalmente, pelo severo tributo em nome do Estado
romano. Se, debaixo do império, era fixado um limite ao interesse do
estado para conter a sede de riqueza dos governadores, aquela sede
foi substituída pela taxação mais efetiva e opressiva em benefício da
tesouraria oficial, cujo efeito era terrivelmente destrutivo.
Em terceiro lugar, a Lei romana era, em última instância,
administrada em toda parte por juizes romanos, enquanto o sistema
social nativo era anulado no caso de conflitos com as prescrições da
lei romana.
Estas três alavancas necessariamente desenvolveram um
tremendo nivelamento de poder, particularmente quando foram
aplicados por centenas de anos a populações — das quais as parcelas
mais vigorosas tinham sido ou eliminadas ou escravizadas nas
batalhas precedentes, acompanhando, e frequentemente seguindo, a
conquista. As relações sociais nas províncias ficaram cada vez mais
próximas do que dependia da capital e da Itália. A população se
tornou cada vez mais nitidamente dividida em três classes, ignorando
os mais variados elementos e nacionalidades: pessoas ricas, incluindo
alguns escravos emancipados (cf. Petrônio), grandes proprietários de
terras ou agiotas ou ambos de uma só vez, como Sêneca, o tio do
Cristianismo; pessoas livres despossuídas, que, em Roma, eram
alimentadas e divertidas pelo estado — mas nas províncias viviam
como podiam, sem ajuda — e, finalmente, a grande massa, os
escravos. Em face do Estado, isto é, do Imperador, as duas primeiras
classes tinham tão poucos direitos quanto os escravos em face aos
seus senhores. Do tempo de Tibério ao de Nero, em particular, era
uma prática condenar cidadãos romanos ricos à morte a fim de
confiscar sua propriedade. O suporte do governo era —
materialmente, o exército, que era mais um exército de soldados
estrangeiros contratados do que de velhos camponeses romanos, e
moralmente, a visão geral de que não poderia ser de outro modo;
que não era este ou aquele César, mas o império fundamentado na
dominação militar que era uma necessidade imutável. Aqui não é o
lugar para examinar os fatos materiais que justificam esta visão.
A perda geral de direitos e a falta de possibilidades de melhorar
de condição ocasionaram um correspondente afrouxamento e
desmoralização geral. Os poucos Romanos velhos, sobreviventes do
tipo patrício, ou eram removidos ou mortos; Tácito foi o último deles.
Os outros ficavam contentes quando podiam manter-se afastados da
vida pública; toda razão para viver era juntar e desfrutar da riqueza,
e praticar a fofoca e a intriga privada. Os cidadãos livres
despossuídos eram pensionistas em Roma, mas nas províncias sua
condição era infeliz. Tiveram que trabalhar e competir com o trabalho
escravo pelo salário. Mas eram confinados nas cidades. Além deles,
existiam também os camponeses das províncias, livres proprietários
de terras (ambos, provavelmente, com propriedades comunais) ou,
como na Gália, fiadores das dívidas dos grandes proprietários de
terras. Esta classe era a menos afetada pelo motim social; também
era a que resistia mais tempo ao motim religioso. [Nota de Engels:
Conforme Fallmereyer, os camponeses em Main, Peloponeso, ainda
ofereciam sacrifícios a Zeus no século IX.] Finalmente, existiam os
escravos, destituídos de direitos e de si próprios e da possibilidade de
libertação, como a derrota de Spartacus já provara; a maior parte
deles, porém, foram antes cidadãos livres, ou filhos de cidadãos
livres-nascidos. Deveria, então, haver ainda entre eles um ódio
generalizado e vigoroso, entretanto, externamente impotente, por
causa das suas condições de vida.
Devemos encontrar o tipo de ideólogo que correspondia à
situação daquele momento. Os filósofos eram ou professores que
ensinavam por dinheiro ou palhaços pagos para divertir os ricos.
Alguns eram até escravos. Um exemplo do que se tornaram eles sob
boas condições é fornecido por Sêneca. Este estóico, pastor da
virtude e da abstinência, era o primeiro intrigante da corte de Nero, o
que ele não poderia ser sem servilismo; ele assegurou para si
presentes em dinheiro, propriedades, jardins, e palácios — e
enquanto orava pelo pobre Lázaro do Evangelho, ele era, na
realidade, o homem rico da mesma parábola. Até que Nero o fez
solicitar ao imperador que aceitasse a devolução todos os seus
presentes, pois sua filosofia era o bastante para ele. Só os filósofos
completamente isolados, como Persius, tiveram a coragem de brandir
a sátira acima de seus contemporâneos degenerados. Um segundo
tipo de ideólogos, os juristas, eram entusiastas das novas condições
porque a abolição de todas as diferenças entre Estados permitiria a
eles largo escopo na elaboração de seu direito favorito, o privado, em
troca de que eles prepararam para o imperador o sistema oficial de
direito mais vil que já existira.
Assim como fez com as peculiaridades políticas e sociais dos
vários povos, o Império Romano também foi condenado a arruinar
suas religiões particulares. Todas as religiões de Antiguidade eram
espontâneas, tribais, e velhas religiões nacionais, que surgiram da
fusão das condições sociais e políticas dos respectivos povos. Uma
vez que estas bases se romperam, e suas tradicionais formas de
sociedade, suas instituições políticas herdadas e suas independências
nacionais foram destruídas, a religião correspondente a estas
também naturalmente desmoronou. Os deuses nacionais podiam
suportar outros deuses ao lado deles, como era a regra geral da
Antiguidade, mas não acima deles. O transplante de divindades
Orientais para Roma era prejudicial só para a religião romana, não se
verificava decadência das religiões Orientais. Assim que os deuses
nacionais ficaram incapazes de proteger a independência de sua
nação encontraram sua própria destruição. Este foi o caso em todos
lugares (exceto com camponeses, especialmente nas montanhas). O
que o iluminismo filosófico vulgar — eu quase disse Voltairianismo —
fez em Roma e na Grécia, foi feito nas províncias pela opressão
romana e pela substituição de homens orgulhosos de sua liberdade
por submissos desesperados e malandros egoístas.
Tal era a situação material e moral. O presente era insuportável,
a possibilidade do futuro tranquilo, ameaçada. E nada, além disso. Só
o desespero ou refúgio no prazer sensual comum, pelo menos para
aqueles que podiam dispor disto, e estes eram uma minoria
minúscula. Caso contrário, nada, além de esperar o inevitável. Mas,
em todas as classes existiam necessariamente as pessoas que,
desesperando da salvação material, buscavam em seu lugar uma
salvação espiritual, uma consolação em sua consciência para salvarse
do desespero absoluto. Esta consolação não podia ser fornecida
pelos estóicos ou pela escola Epicurista, pela razão de que estes
filósofos não eram voltados para consciência comum e,
secundariamente, porque a conduta de discípulos destas escolas
trouxe o descrédito em suas doutrinas. A consolação era um
substituto, não para a filosofia perdida, mas para a religião perdida;
teve que tomar uma forma religiosa, a mesma que de alguma
maneira, segurou as massas até o século XVII. Precisamos notar
apenas que a maioria daqueles que estavam sensíveis para tal
consolação de sua consciência, para este vôo do mundo externo para
o interno, estavam necessariamente entre os escravos. Foi no meio
desta decadência económica, política, intelectual e moral que o
Cristianismo apareceu. E entrou como uma antítese resoluta a todas
as religiões anteriores.
Em todas as religiões anteriores, a cerimónia era a coisa
principal. Só tomando parte nos sacrifícios e procissões, e, no
Oriente, observando a dieta mais detalhada e preceitos de limpeza,
podia alguém mostrar a que religião pertencia. Enquanto Roma e a
Grécia eram tolerantes a respeito disto, existia no Oriente uma
revolta contra as proibições religiosas que contribuíram muito para a
sua queda final. Pessoas de duas das religiões diferentes, (Egípcios
Persas, judeus, Caldeus) não podiam comer ou beber juntos,
apresentar-se e agir juntos, ou mesmo falar um com o outro. Era
certamente devido a esta segregação do homem pelo homem que o
Oriente desmoronava. O cristianismo não possuía nenhuma
formalidade distintiva, nem mesmo os sacrifícios e procissões do
mundo clássico. Deste modo, rejeitando todas as religiões nacionais e
suas formalidades comuns, e dirigindo-se diretamente a todas as
pessoas sem distinção, se tornou a primeira religião mundial possível.
O judaísmo também, com seu novo deus universal, fez um começo a
caminho de se tornar uma religião universal; mas os filhos de Israel
sempre permaneceram uma aristocracia separando os crentes e os
circuncidados, e o próprio Cristianismo teve que se livrar da noção da
superioridade dos cristãos judeus (ainda dominante no chamado
Apocalipse, de São João) antes de poder realmente se tornar uma
religião universal. O Islã, por outro lado, preservando a cerimónia
especificamente Oriental, limitou a área de sua propagação ao
Oriente e à África do Norte, conquistada e povoada novamente por
beduínos árabes; ali ele pode se tornar a religião dominante, mas não
no Oeste.
Secundariamente, o Cristianismo atingiu um tom que estava
destinado a ecoar em incontáveis corações. A todas as reclamações
sobre a maldade dos tempos e a angústia moral e material, a
consciência cristã do pecado responde: É assim e não pode ser de
outro modo; tu ardes em culpa, somos todos culpados pela corrupção
do mundo, por nossa própria corrupção interna! E onde estava o
homem que podia negar isto? Mea culpai A admissão da parte de
cada um na responsabilidade pela infelicidade geral era irrefutável e
era a pré-condição para a salvação espiritual que o Cristianismo ao
mesmo tempo anunciava. E esta salvação espiritual estava tão
instituída que podia ser facilmente compreendida por membros de
toda a comunidade religiosa antiga. A idéia do pagamento para
aplacar a deidade ofendida era conhecida em todas as religiões
antigas; como a idéia do auto-sacrifício do mediador pagando de uma
vez por todas os pecados da humanidade não podia ser facilmente
explicada assim? O cristianismo, então, expressou claramente o
sentimento universal de que os próprios homens são culpados da
corrupção geral através da consciência do pecado de cada um; ao
mesmo tempo, providenciou, no sacrifício da morte de seu juiz, uma
saída universalmente esperada — pela salvação interna do mundo
corrupto, a consolação de consciência; assim novamente o
cristianismo provou sua capacidade para se tornar uma religião
mundial e ser, realmente, uma religião adequada ao mundo como ele
era naquele tempo.
Assim aconteceu que, entre os milhares de profetas e pregadores
do deserto que enchiam aquele período de incontáveis inovações
religiosas, só os fundadores do Cristianismo tiveram sucesso. Não só
a Palestina, mas o Oriente inteiro fervilhou com tais fundadores das
religiões, e entre eles travou-se o que pode ser chamado uma luta
darwiniana pela existência ideológica. Usando principalmente os
elementos mencionados acima, o Cristianismo "ganhou o dia". Como
ele gradualmente desenvolveu seu caráter de religião mundial por
seleção natural na luta das seitas umas contra as outras e contra o
mundo pagão é explicado em detalhe pelos primeiros três séculos da
história da Igreja.

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11 de Maio de 1882
Primeira Edição: Sozialdemokrat, de 4-11 de maio de 1882.
Fonte: A tradução foi realizada a partir da versão inglesa constante do MIA.
Tradução: Wellington de Lucena Moura
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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