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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"Mensalão", a toga e o palco


Os telejornais abusaram de repetir, na semana que se foi, lamentável diálogo entre dois ministros do STF, um antigo juiz, useiro e vezeiro em conceder liminares discutíveis (e mal recebidas pela ‘opinião pública’ que agora corteja, como, por exemplo, a que libertou Cacciola), com um ministro novo, chamado pelo antigo, de forma depreciativa, de ‘novato’.


Por Roberto Amaral, na Carta Capital


O juiz benjamin (nem por isso menos experiente e sabidamente mais culto) era criticado por haver posto em dúvida a juridicidade de certas decisões dos ‘antigos’. Ora essa hierarquia – velhos e novos – jamais medrou na Corte constitucional, onde, em compensação, tampouco é regimental a distinção entre competentes e incompetentes, embora uns e outros sejam assaz conhecidos.

A boa norma dos tribunais, a começar pelos superiores, aqueles cujas decisões são irrecorríveis, é a busca daquilo que se configura como a melhor interpretação da lei, a identificação de seu espírito, de sua índole, de sua finalidade, a saber, fazer justiça. Seja mediante a decisão solitária do juiz no julgamento monocrático, seja mediante o voto que irá compor a decisão coletiva. Não deve importar ao julgador se a sentença lavrada é popular ou não. Pergunta-se apenas se foi limpa, se procurou a Justiça. E a resposta só encontrará em sua própria consciência.

A decisão – o parecer, o relatório, o acórdão – a despeito de sua vestimenta técnica (da qual não pode despir-se) –, é construída no diálogo íntimo do juiz com sua própria consciência, apartado de quaisquer influências extra-autos, sejam os pleitos da amizade, sejam os pleitos do poder econômico, sejam os pleitos do poder político, sejam mesmo os pleitos da opinião açulada pela imprensa, seja aquela que condenou o capitão Dreyfus, para vergonha da França, seja a que condenou, sem direito a recurso, a família proprietária da Escola Base, em São Paulo. A Justiça, para ser isenta, e a isenção é naturalmente difícil na sociedade de classes, tem de estar de olhos vendados para todos os lobbies e pressões.

O juiz não pode temer nem a impopularidade nem a incompreensão de seu voto (como não temeram, em papéis distintos Lewandowski e Celso de Mello), nem o clamor da opinião publicada, principalmente quando lhe cabe decidir da liberdade de um réu previamente condenado pela imprensa. Os princípios de deontologia da magistratura se impõem sobre a glória fugaz do aplauso.

Ao tempo da presidência Ayres de Brito, assistimos a um populismo extemporâneo denominado de ‘neopositivismo’, o jeito de torcer a lei para interpretá-la contra seu próprio espírito. Na verdade, tratava-se de o STF legislar ao arrepio da ordem constitucional, invadindo a competência privativa de um Legislativo que, genuflexo, carecia de força moral para reagir, embora tivesse o dever de cumprir o artigo 49, inciso 11, da Constituição Federal, que o manda “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.

E só por isso assim agia o STF.

No ano Barbosa, o STF se julgou no papel de representante do que a imprensa lhe dizia ser a opinião da sociedade, e para atender ao clamor da imprensa – vale dizer, a opinião do oligopólio empresarial que domina os meios de comunicação de massa, formando consciências e sentimentos – importou a jamais aplicada teoria do domínio do fato, que, para a condenação do réu, dispensa a Polícia e o Ministério Público de produzirem a prova. Fica mais fácil a condenação do réu, é verdade, mas não só a dos culpados, como também a dos inocentes – e isso é o que deveria nos preocupar a todos.

É a mesma Corte que cedo se amoldou às conveniências militares e agora se diz zelosa da democracia.

A transmissão direta das sessões do STF, como das duas casas do Congresso, tem contribuído, e muito, para a transparência que se quer do exercício do poder público, qualquer que seja a instância. Mas, no que se aplica ao Supremo, contribui também para o surgimento dessa figura já ridícula do ministro pop star, o juiz-ator, o juiz-espetáculo, beirando a falta do decoro que de nossos magistrados mais se exige do que dos parlamentares.

No lamentável diálogo referido acima, o ministro Marco Aurélio Mello insurgia-se contra o reino da liberdade de consciência para o julgamento isento, que o ministro Barroso, o ‘novato’, arguia como fundamento da magistratura. A essa responsabilidade pessoalíssima, o ministro antigo opunha, como imperador, o que chama de ‘clamor das ruas’, a nova soberania, supraconstitucional. Dirigindo-se de forma quase pândega ao ministro Celso de Mello – antes louvado pela mídia pelos votos severos na Ação penal 470 – dizia-lhe, o mesmo Marco Aurélio Mello, estar o STF a um voto da sua consagração ou de seu descrédito, tudo a depender do voto do decano.

(No mesmo dia em que o ministro Celso de Mello dita seu voto-aula – de direito e de ética –, o ministro Gilmar Mendes, notório boquirroto, procura a mídia para desnudar-se ideológica e culturalmente. Na entrevista a que se ofereceu, declarou ao Portal UOL: “Daqui a pouco nós conspurcamos o Tribunal, corrompemos o Tribunal, transformamos ele (sic) num Tribunal de Caracas, de La Paz (cidade que ele supõe ser a capital da Bolívia, e sede de seu Supremo, em vez de Sucre...), num Tribunal bolivariano”.

Sobre o trono no qual se senta Joaquim Barbosa, e bem visível por todos os ministros, estava, e está, apesar de nossa opção laica e republicana, a imagem do Cristo crucificado, a exata mensagem do que significa o julgamento ditado pelas turbas e a pusilanimidade do julgador.

Seria, talvez, querer muito pedir a alguns de nossos ministros a leitura de Rui Barbosa, autor crescentemente fora de moda em nossas Cortes. Em homenagem ao ministro Lewandowski reproduzo trecho da famosa carta de Rui a Evaristo de Morais, pai, texto que se transformaria na tábua dos deveres do advogado:

“Quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”.

Troque-se opinião por voto e eis uma lição a ser ouvida por juízes de primeira, segunda e última instâncias, audiência especialmente recomendada àqueles juízes-atores que julgam sob os holofotes da televisão.

Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.

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