Translate

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O MATERIALISMO DIALÉTICO E AS IDEOLOGIAS




Aplicação do método dialético às ideologias


I. — Qual é a importância das ideologias para o marxismo?
II. — O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos.)
III. — Estrutura econômica e estrutura ideológica.
IV. — Consciência verdadeira e consciência falsa.
V. — Ação e reação dos fatores ideológicos.
VI. — Método de análise dialética.
VII. — Necessidade da luta ideológica.
VII— Conclusão.

I. — Qual é a importância das ideologias para o marxismo?
Costuma ouvir-se dizer que o marxismo é uma filosofia materialista que nega o papel das ideias na história, o papel do fator ideológico, e apenas quer considerar as influências econômicas.
Isso é falso. O marxismo não nega o papel importante que o espírito, a arte, as ideias têm na vida. Bem pelo contrário, dá uma importância particular a essas formas ideológicas, e vamos terminar este estudo dos princípios elementares do marxismo, examinando como o método do materialismo dialético se aplica às ideologias; vamos ver qual é o papel das ideologias na história, a ação do fator ideológico e o que é a forma ideológica.
Esta parte do marxismo que vamos estudar é a mais desconhecida de tal filosofia. A razão é que, durante muito tempo, tratou-se e difundiu-se, sobretudo, a parte do marxismo que estuda a economia política.
Procedendo assim, separava-se arbitrariamente esta matéria, não só do grande «todo» que forma o marxismo, mas também das suas bases; porque o que permitiu fazer da economia política uma verdadeira ciência foi o materialismo histórico, que é, como vimos, uma aplicação do materialismo dialético.
Pode assinalar-se, de passagem, que esta maneira de proceder provém, na verdade, do espírito metafísico, que conhecemos e de que temos tanto mal para nos corrigirmos. É, repetimo-lo, na medida em que isolamos as coisas, em que as estudamos de uma maneira unilateral, que cometemos erros.
As más interpretações do marxismo provêm, pois, de não se ter insistido suficientemente no papel das ideologias na história e na vida. Separamos-la do marxismo, e, fazendo-o, separamos o marxismo do materialismo dialético, isto é, dele próprio!
É com prazer que vemos que, desde há alguns anos, graças, em parte, ao trabalho da Universidade Operária de Paris, à qual muitos milhares de alunos devem o conhecimento do marxismo, graças, também, ao trabalho dos nossos camaradas intelectuais que contribuíram com os seus trabalhos e livros, o marxismo reconquistou
o seu rosto verdadeiro e o lugar a que tem direito.

II. — O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos.)
Vamos abordar este capítulo, consagrado ao papel das ideologias, por algumas definições.
A que chamamos uma ideologia? Quem diz ideologia, diz, antes de mais, ideia. A ideologia é um conjunto de ideias que forma um todo, uma teoria, um sistema ou mesmo, por vezes, simplesmente um estado de espírito.
O marxismo é uma ideologia que forma um todo e oferece um método de resolução de todos os problemas.
Uma ideologia republicana é um conjunto de ideias que encontramos no espírito de um republicano. Mas, uma ideologia não é só um conjunto de ideias puras, que se suporiam separadas de todo o sentimento (esta seria uma concepção metafísica); uma ideologia comporta necessariamente sentimentos, simpatias, antipatias, esperanças, crenças, etc. Na ideologia proletária, encontramos os elementos ideais da luta de
classes, mas, também, sentimentos de solidariedade para com os explorados do regime capitalista, os «aprisionados», sentimentos de revolta, de entusiasmo, etc... Ê tudo isso que faz uma ideologia.
Vejamos, agora, aquilo a que se chama fator ideológico: é a ideologia considerada como uma causa ou uma
força que age, que é capaz de influenciar, e é por isso que se fala da ação do fator ideológico. As religiões, por exemplo, são um fator ideológico que devemos ter em conta; têm uma força moral que age de maneira importante.
Que se entende por forma ideológica? Designa-se assim um conjunto de ideias particulares que formam uma ideologia num domínio especializado. A religião, a moral são formas da ideologia, do mesmo modo que a ciência, a filosofia, a literatura, a arte, a poesia. Se quisermos, pois, examinar qual é o papel da história da ideologia, em geral, e de todas as suas formas, em particular, conduziremos este estudo não separando a ideologia da história, isto é, da vida das sociedades, mas situando o papel da ideologia, dos seus fatores e das suas formas na e a partir da sociedade.

III. — Estrutura econômica e estrutura ideológica.
Vimos, ao estudar o materialismo histórico, que a história das sociedades se explica pelo seguinte encadeamento: os homens fazem a história pela sua ação, expressão da sua vontade. Esta é determinada pelas ideias. Vimos que o que explica as ideias dos homens, isto é, a sua ideologia, é o meio social onde se 'manifestam as classes, que são, por sua vez, elas próprias determinadas pelo fator econômico, isto é, no fim de contas, pelo modo de produção.
Vimos, também, que entre o fator ideológico e o social se encontra o político, que se manifesta na luta ideológica como expressão da luta social.
Se, portanto, examinarmos a estrutura da sociedade à luz do materialismo histórico, vemos que, na base, se encontra a estrutura econômica, depois, acima dela, a social, que sustenta a política, e, por fim, a estrutura ideológica.
Verificamos que, para os materialistas, a estrutura ideológica é o resultado, a cúpula do edifício social, enquanto que, para os idealistas, a estrutura ideológica é a base.
Na produção social da sua existência, os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre que se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social [isto é, formas ideológicas]. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral80.
Vemos, por conseguinte, que é a estrutura econômica a base da sociedade. Diz-se, também, que é a infraestrutura (o que significa a estrutura inferior).
A ideologia, que compreende todas as formas: a moral, a religião, a ciência, a poesia, a arte, a literatura, constitui a supra — ou superestrutura (que significa: estrutura que está no cimo).
Sabendo, como o demonstra a teoria materialista, que as ideias são o reflexo das coisas, que é o nosso ser social que determina a consciência, diremos, pois, que a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis um exemplo de Engels, que o demonstra bem:
O dogma calvinista respondia às necessidades da burguesia mais avançada da época. A sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que, no mundo comercial da concorrência, o sucesso e o insucesso não dependem, nem da atividade nem da habilidade do homem, mas de circunstâncias independentes do seu controle. Estas não dependem nem daquele que quer nem do que trabalha, estão à mercê de forças econômicas superiores e desconhecidas; e isso é particularmente verdadeiro numa época de revolução econômica, quando todos os antigos centros de comércio e todas as estradas comerciais eram substituídos por outros, as Índias e a América abertas ao mundo e os artigos de fé econômica mais respeitáveis pela sua antiguidade — o valor relativo do ouro e da prata — começavam a oscilar e a desmoronar-se81
Com efeito, que se passa na vida econômica para os mercadores? Estão em concorrência. Os mercadores, os burgueses fizeram a experiência desta concorrência, em que há vencedores e vencidos. Muitas vezes, os mais desembaraçados, os mais inteligentes são vencidos pela concorrência, por uma crise que sobrevém e os
abate. Tal crise é, para eles, uma coisa imprevisível, parece-lhes uma fatalidade, e é esta ideia de que, sem razão, os menos astutos sobrevivem, por vezes, à crise, que é transposta na religião protestante. É esta constatação, a que alguns «chegam» por acaso, que alimenta a ideia da predestinação, segundo a qual os homens devem suportar um destino fixado por Deus, para toda a eternidade.
Vemos, depois deste exemplo de reflexo das condições econômicas, de que maneira a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis, ainda, um outro exemplo: consideremos a mentalidade de dois operários não sindicalizados, isto é, não desenvolvidos politicamente; um trabalha numa grande fábrica, em que o trabalho é racionalizado, o outro, numa pequena oficina. É certo que ambos terão uma concepção diferente do patrão. Para um, ele será o explorador feroz, característico do capitalismo; o outro vê-lo-á como um trabalhador, certamente abastado, mas trabalhador, não tirano.
É, na verdade, o reflexo da sua condição de trabalho que determinará a sua maneira de compreender o patronato.
Este exemplo, que é importante, leva-nos, por ser necessário, a fazer algumas Observações.

IV. — Consciência verdadeira e consciência falsa.
Acabamos de dizer que as ideologias são o reflexo das condições materiais da sociedade, que é o ser social que determina a consciência social. Poderia deduzir-se disso que um proletariado deve ter, automaticamente, uma ideologia proletária.
Mas, uma tal suposição não corresponde à realidade, porque há operários que não têm uma consciência de operário.
É preciso, pois, estabelecer uma distinção: as pessoas podem viver em determinadas condições, mas a consciência que possuem pode não corresponder à realidade. É ao que Engels chama: «ter uma consciência falsa».
Exemplo: certos operários são influenciados pela doutrina do corporativismo, que é um regresso à idade média, ao artesanato. Neste caso, há consciência da miséria dos operários, mas não justa e verdadeira. A ideologia é bem um reflexo das condições de vida social, mas não fiel, exato.
Na consciência das pessoas, o reflexo é muitas vezes um reflexo «ao inverso». Constatar o fato da miséria é um reflexo de condições sociais, mas tal reflexo torna-se falso quando se pensa que num retorno ao artesanato será a solução do problema. Constatamos, aqui, uma consciência em parte verdadeira, em parte falsa.
O operário que é monárquico tem, também, uma consciência há um tempo verdadeira e falsa. Verdadeira, porque quer suprimir a miséria que constata; falsa, porque pensa que um rei pode fazer isso. E, simplesmente porque raciocinou mal e escolheu mal a sua ideologia, esse operário pode tornar-se, para nós, um inimigo de classe, ainda que, no entanto, seja da nossa classe. Assim, ter uma consciência falsa é enganar-se ou ser enganado acerca da sua verdadeira condição.
Diremos, pois, que a ideologia é o reflexo das condições de existência, mas não é um reflexo FATAL.
É-nos preciso, aliás, constatar que tudo se preparou para nos dar uma consciência falsa e desenvolver a influência da ideologia das classes dirigentes sobre as exploradas. Os primeiros elementos que recebemos de uma concepção da vida, a nossa educação, a nossa instrução, dão-nos uma consciência falsa. Os nossos laços
na vida, um fundo de provincianismo em alguns, a propaganda, a imprensa, a rádio falseiam também, por vezes, a nossa consciência.
Por conseguinte, o trabalho ideológico tem, pois, para nós, marxistas, uma extrema importância. É preciso destruir a consciência falsa, para adquirir uma verdadeira, não podendo, sem o trabalho ideológico, realizar se essa transformação.
Os que consideram e dizem que o marxismo é uma doutrina fatalista não têm razão, uma vez que pensamos, na verdade, que as ideologias desempenham um grande papel na sociedade, e que é preciso ensinar e aprender essa filosofia que é o marxismo, para a fazer desempenhar o papel de um instrumento e de uma arma eficaz
.
V. — Ação e reação dos fatores ideológicos.
Vimos, pelos exemplos de consciência verdadeira e de consciência falsa, que não é preciso querer explicar sempre as ideias pela economia e negar que tenham uma ação. Proceder assim, seria interpretar o marxismo de uma maneira errada.
É certo que as ideias se explicam, em última análise, pela economia, mas também têm uma ação que lhes é própria.
...Depois da concepção materialista da história, o fator determinante nesta é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos outra coisa. Se, depois, alguém deturpa isso, até dizer que o fator econômico é o único determinante, transforma esta proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas as diversas partes da superestrutura... exercem igualmente a sua ação no decurso das lutas históricas,, e determinam, de maneira preponderante, a forma, em muitos casos. Há ação e reação de todos esses fatores no seio dos quais o movimento econômico acaba por abrir o seu caminho, como qualquer coisa de forçado, através da multidão infinita de acasos82.
Vemos, pois, que nos é preciso examinar tudo antes de procurar a economia, e que, se esta é a causa em última análise, é necessário pensar sempre que não é a única.
As ideologias são os reflexos e os efeitos das condições econômicas, mas a relação entre elas não é simples, porque constatamos, também, uma ação recíproca das ideologias sobre a infraestrutura.
Se quisermos estudar o movimento de massas que se desenvolveu, em França, depois de 6 de Fevereiro de 1934, fá-lo-emos, ao menos, sob dois aspectos, para demonstrar o que acabamos de escrever.
1. Alguns explicam essa corrente, dizendo que a sua causa era a crise econômica. É uma explicação materialista, mas unilateral. Tem em conta apenas um fator: o econômico, aqui: a crise.
2. Este raciocínio é, pois, parcialmente exato, mas com a condição de que se lhe acrescente, como fator de explicação, o que pensam as pessoas: a ideologia. Ora, nessa corrente de massas, as pessoas são «antifascistas», eis o fator ideológico. E, se as pessoas são antifascistas, é graças à propaganda que deu origem à Frente popular. Mas, para que esta propaganda fosse eficaz, era preciso um terreno favorável, e o que se pôde fazer em 1936 não era possível em 1932. Enfim, sabemos como, em seguida, esse movimento de massas e a sua ideologia influenciaram, por sua vez, a economia, pela luta social que desencadearam.
Vemos, portanto, neste exemplo, que a ideologia, que é o reflexo das condições sociais, se toma, por sua vez, uma causa dos acontecimentos.
O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., assenta no desenvolvimento econômico. Mas todos reagem igualmente uns sobre os outros, do mesmo modo que sobre a base econômica. Isso não é assim, porque a situação econômica é a causa, só ela é ativa, e tudo o resto é apenas ação passiva. Há, pelo contrário, ação e reação na base da necessidade econômica, que sempre prevalece em última instância83.
É assim, por exemplo, que a base do direito sucessório, suportando a igualdade do estádio de desenvolvimento da família, é uma base econômica. Todavia, será difícil demonstrar que em Inglaterra, por exemplo, a liberdade absoluta de testamentar, e, em França, a sua grande limitação não têm, em todas as suas particularidades, senão causas econômicas. Mas, de maneira muito importante, ambas reagem sobre a economia, pelo fato de influenciarem a repartição da fortuna84.
Para tomar um exemplo mais atual, retomaremos o dos impostos. Todos temos uma ideia sobre eles.
Os ricos querem-nos reduzidos, sendo partidários dos impostos indiretos; os trabalhadores e as classes médias querem, pelo contrário, um sistema fiscal baseado no imposto direto e progressivo. Assim, pois, a ideia que fazemos dos impostos, e que é um fator ideológico, tem a sua origem na situação econômica de cada um, e foi criada, imposta pelo capitalismo. Os ricos querem conservar os seus privilégios, lutando por conservar o modo atual de imposição e reforçar as leis nesse sentido. Ora, estas, que vêm das ideias, reagem sobre a economia, porque matam o pequeno comércio e os artesãos, e precipitam a concentração capitalista:
Vemos, por conseguinte, que as condições econômicas engendram as ideias, mas que estas engendram, também, modificações nas condições econômicas, e é tendo em conta esta reciprocidade das relações que devemos examinar as ideologias, todas as ideologias; e é só em última análise, na raiz, que vemos as necessidades econômicas predominarem sempre.
Sabemos que são os escritores e os pensadores que têm por missão propagar, senão defender as ideologias.
Os seus pensamentos e escritos nem sempre são muito caracterizados, mas, de fato, mesmo nos que têm o aspecto de ser simples contos ou novelas, reencontramos sempre, pela análise, uma ideologia. Esta análise é uma operação muito delicada, e devemos fazê-la com muita prudência. Vamos indicar um método de análise dialética, que será de grande utilidade, mas, para que não se seja mecanicista nem queira explicar o que não é explicável, é preciso prestar muita atenção.
VI. — Método de análise dialética.
Para aplicar bem o método dialético, é necessário conhecer muitas coisas, e, se desconhecemos o seu objeto, é preciso estudá-lo minuciosamente, sem o que se chega, simplesmente, a fazer caricaturas de julgamento.
Para proceder à análise dialética de um livro ou de um conto literário, vamos indicar um método, que poderá ser aplicado a outros assuntos. .
a) É preciso, primeiro, prestar atenção ao conteúdo do livro ou do conto a analisar. Examiná-lo independentemente de toda a questão social, porque nem tudo vem da luta de classes e das condições econômicas.
Há influências literárias, e devemos ter isso em conta. Tentar ver a que «escola literária» pertence a obra. Ter em conta o desenvolvimento interno das ideologias. Praticamente, seria bom fazer um resumo do assunto a analisar e anotar o que mais impressionou.
b) Observar, em seguida, os tipos sociais dos heróis da intriga. Procurar a classe a que pertencem, examinar a ação das personagens e ver se, de qualquer maneira, o que se passa no romance pode ligar-se a um ponto de vista social.
Se tal não for possível, se, razoavelmente, não puder fazer-se isso, então vale mais abandonar a análise do que inventar. Não deve nunca inventar-se uma explicação.
c) Quando se encontrar qual é ou quais são as classes em jogo, é preciso procurar a base econômica, isto é, quais são os meios de produção e a maneira de produzir no momento em que se passa a ação do romance.
Se, por exemplo, for nos nossos dias, a economia é o capitalismo. Veem-se, atualmente, inúmeros contos e romances que criticam, combatem o capitalismo. Mas, há duas maneiras de o fazer:
1. Como revolucionário, que se atira para a frente.
2. Como reacionário, que quer voltar ao passado; é muitas vezes esta forma que se encontra nos romances modernos: tem-se saudades dos tempos de outrora.
d) Uma vez que obtivemos tudo isso, podemos, então, procurar a ideologia, isto é, ver quais são as ideias, os sentimentos, qual é a maneira de pensar do autor.
Ao procurar a ideologia, pensaremos no papel que desempenha, a sua influência no espírito das pessoas que leem o livro.
e) Poderemos, então, chegar a conclusão da nossa análise, dizer porquê um tal conto ou romance foi escrito em tal momento. E denunciar ou louvar, conforme o caso, as suas intenções (muitas vezes inconscientes no autor).
Este método de análise só pode ser bom se nos lembrarmos, ao aplicá-lo, de tudo o que foi dito anteriormente. É preciso pensar que a dialética, se nos trás uma nova maneira de conceber as coisas, exige, também, a quem fala delas e as analisa, o seu perfeito conhecimento.
É-nos necessário, por conseguinte, agora que vimos em que consiste o nosso método, tentar, nos estudos, na nossa vida militante e pessoal, ver as coisas no seu movimento, na sua mudança, nas suas contradições e na sua significação histórica, e não no estado estático, imóvel, vê-las e estudá-las também sob todos os seus aspectos, não de uma maneira unilateral. Numa palavra, aplicar, em tudo e sempre, o espírito dialético
.
VII. — Necessidade da luta ideológica.
Sabemos melhor agora o que é o materialismo dialético, forma moderna do materialismo, fundado por Marx e Engels, e desenvolvido por Lenine. Servimo-nos, nesta obra, de textos de Marx e Engels, mas não podemos terminar estes cursos sem assinalar, particularmente, que a obra filosófica de Lenine é considerável85. E por
isso que se fala hoje de marxismo-leninismo.
Marxismo-leninismo e materialismo dialético estão indissoluvelmente unidos, e só o conhecimento do materialismo dialético permite medir toda a extensão, todo o alcance, toda a riqueza do marxismo-leninismo.
Isso leva-nos a dizer que o militante só está verdadeiramente armado ideologicamente se conhecer o conjunto desta doutrina.
A burguesia, que compreendeu bem isso, esforça-se por introduzir, lançando mão de todos os meios, a sua própria ideologia na consciência dos trabalhadores. Sabendo perfeitamente que, de todos os aspectos do marxismo-leninismo, é o materialismo dialético o menos conhecido atualmente, a burguesia organizou contra ele a conspiração do silencio. É penoso constatar que o ensino oficial ignore um tal método, e continue a ensinar-se, nas escolas e universidades, da mesma maneira que há cem anos.
Se, antigamente, o método metafísico dominou o dialético, era, vimo-lo, por causa da ignorância dos homens. Hoje, a ciência deu-nos os meios para demonstrar que o método dialético é o que convém aplicar às pesquisas científicas, e é escandaloso que se continue a ensinar aos nossos filhos, a pensar, a estudar com o método proveniente da ignorância.
Se os sábios, nas suas investigações científicas, já não podem estudar, na sua especialidade, sem ter em conta a interpretação das ciências, aplicando, por tal motivo e inconscientemente, uma parte da dialética, nelas empregam muitas vezes a formação de espírito que lhes foi dada, e que é a de um espírito metafísico. Que
progressos os grandes sábios, que deram já grandes coisas à humanidade — pensamos em Pasteur, Branly, que eram idealistas, crentes—, não teriam realizado, ou permitido realizar, se tivessem tido .uma formação dialética!
Mas, existe uma forma de luta contra o marxismo-leninismo ainda mais perigosa do que esta campanha de silêncio: são as falsificações que a burguesia tenta organizar, mesmo no interior do movimento operário.
Vemos, neste momento, aparecer numerosos «teóricos», que se apresentam como «marxistas» e pretendem «renovar», «rejuvenescer» o marxismo. As campanhas deste gênero escolhem muitas vezes como ponto de apoio os aspectos do marxismo que são menos conhecidos, e, muito particularmente, a filosofia materialista.
Assim, por exemplo, há pessoas que declaram aceitar o marxismo no que respeita à concepção da ação revolucionária, mas não no que se refere à concepção geral do mundo. Declaram que se pode ser perfeitamente marxista sem aceitar a filosofia materialista. De acordo com esta atitude geral, desenvolvem-se diversas tentativas de contrabando. Pessoas que se dizem sempre marxistas querem introduzir, no marxismo, concepções que são incompatíveis com a sua própria base, isto é, com a filosofia materialista. Houve tentativas deste gênero no passado. É contra elas que Lenine escreveu o seu livro «Materialismo e empiriocriticismo». Assiste-se atualmente, num período de larga difusão do marxismo, ao reaparecimento e multiplicação dessas tentativas. Como reconhecer, desmascarar as que, precisamente, atacam o marxismo no seu aspecto filosófico, e se  ignorar a verdadeira filosofia do marxismo?

VIII. — Conclusão.
Felizmente, observa-se desde há alguns anos, na classe operária, em particular, um formidável entusiasmo pelo estudo do conjunto do marxismo e um interesse crescente precisamente pelo estudo da filosofia materialista. Isso é um sinal que indica, na situação atual, que a classe operária sentiu perfeitamente a exatidão das razões que demos, no princípio, a favor do estudo da filosofia materialista. Os trabalhadores
aprenderam, pela sua própria experiência, a necessidade de ligar a prática à teoria e, ao mesmo tempo, a de levar o estudo teórico tão longe quanto possível. A tarefa de cada militante deve consistir em reforçar esta corrente, e dar-lhe uma direção e um conteúdo justos. Estamos contentes por ver que, graças à Universidade Operária de Paris, vários milhares de homens aprenderam o que é o materialismo dialético, e, se isso ilustra, de uma maneira impressionante, a nossa luta contra a burguesia, mostrando de que lado está a ciência, indica-nos também o nosso dever. É preciso estudar. É preciso conhecer e fazer conhecer o marxismo em todos os meios. Paralelamente à luta na rua e no local de trabalho, os militantes devem conduzir a luta
ideológica. O seu dever é defender a nossa ideologia contra todas as formas de ataque, e, ao mesmo tempo, conduzir a contraofensiva pela destruição da ideologia burguesa na consciência dos trabalhadores. Mas, para dominar todos os aspectos desta luta, é preciso estar armado. O militante só o estará verdadeiramente
pelo conhecimento do materialismo dialético.
Tentar edificar uma sociedade sem classes, em que nada impeça o desenvolvimento das ciências, eis uma parte essencial do nosso dever.

Extraído da obra de Georges Politzer



quarta-feira, 29 de maio de 2013

MATERIALISMO HISTÓRICO - DE ONDE VÊM AS CLASSES E AS CONDIÇÕES ECONÔMICAS?



I. — Primeira grande divisão do trabalho.
II. — Primeira divisão da sociedade em classes.
III. — Segunda grande divisão do trabalho.
IV. — Segunda divisão da sociedade em classes.
V. — O que determina as condições econômicas.
VI. — Os modos de produção.
VII. — Observações.
Vimos que as forças motrizes da história são, em última análise, as classes, e as suas lutas determinadas pelas condições econômicas.
Isto, pelo seguinte encadeamento: os homens têm na cabeça ideias que os fazem agir. Estas nascem nas condições de existência materiais em que eles vivem. Tais condições são determinadas pela posição social que ocupam na sociedade, isto é, pela classe à qual pertencem, e as próprias classes são determinadas pelas condições econômicas nas quais evolui a sociedade.
Mas, então, é-nos preciso ver o que determina as condições econômicas e as classes que criam. É o que vamos estudar.

I. — Primeira grande divisão do trabalho.
Ao estudar a evolução da sociedade, e tomando os fatos no passado, constata-se, primeiramente, que a divisão da sociedade em classes não existiu sempre.
A dialética quer que investiguemos a origem das coisas; ora, constatamos que, num passado muito distante, não havia classes. Em «A Origem da família, da propriedade privada e do Estado», Engels diz-nos:
Em todos os estádios inferiores da sociedade, a produção era essencialmente comum; não há uma classe, uma categoria de trabalhadores, depois uma outra. O consumo dos produtos criados pelos homens era também comum. É o comunismo primitivo68.
Todos os homens participam na produção; os instrumentos de trabalho individuais são propriedade privada, mas os de que se servem em comum pertencem à comunidade. A divisão do trabalho não existe neste estádio inferior senão entre os sexos. O homem caça, pesca, etc.: a mulher cuida da casa. Não há interesses particulares ou «privados» em jogo.
Mas, os homens não permaneceram neste período, e a primeira grande mudança na sua vida será a divisão do trabalho na sociedade.
No modo de produção, introduz-se lentamente a divisão do trabalho69.
Este primeiro facto produziu-se onde os homens se encontravam em presença de animais, que se deixaram, primeiro, domesticar, depois, criar. Algumas das
tribos mais avançadas... fizeram da criação o seu principal ramo de trabalho. Tribos de pastores destacaram-se da massa dos Bárbaros. Foi a primeira grande divisão do trabalho 70.
Temos, portanto, como primeiro modo de produção: caça, pesca; como segundo: criação de gado, que dá origem às tribos de pastores.
É esta primeira divisão do trabalho que é a base da

II. — Primeira divisão da sociedade em classes.
O crescimento da produção em todos os seus ramos — criação de gado, agricultura, trabalhos domésticos— dava à força de trabalho humano a capacidade de criar mais produtos do que era necessário para o seu sustento. Aumentou, ao mesmo tempo, o total diário de trabalho que competia a cada membro da comunidade doméstica ou da família isolada. Tornou-se desejável englobar novas forças de trabalho. A guerra forneceu-as: os prisioneiros foram transformados em escravos. Aumentando a produção do trabalho, e, por conseguinte, a riqueza, e alargando o campo da produção, a primeira grande divisão social do trabalho tinha, no conjunto destas condições históricas, por consequência necessária a escravatura. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande cisão da sociedade em duas classes: amos e escravos, exploradores e explorados71.
Chegamos, assim, ao limiar da civilização... No estádio mais inferior, os homens só produziam em função das suas próprias necessidades; alguns atos de troca que se faziam eram isolados, e apenas à base do supérfluo de que por acaso dispunham. No estádio médio da barbárie, encontramos já, entre os povos pastores, o gado como propriedade... de onde, ainda, as condições de uma troca regular72.
Temos, portanto, neste momento, duas classes na sociedade: amos e escravos. Depois, a sociedade vai continuar a viver e a sofrer novas transformações. Uma nova classe vai nascer e crescer.

III. — Segunda grande divisão do trabalho.
A riqueza cresce rapidamente, mas sob a forma de riqueza individual; a tecelagem, o trabalho dos metais e os outros ofícios, que se separavam cada vez mais, deram à produção uma variedade e uma perfeição crescentes: a agricultura, além dos cereais... fornece, doravante, o azeite e também o vinho... Um trabalho tão variado já não podia ser desempenhado pelo mesmo indivíduo; a segunda grande divisão do trabalho
efetuou-se; os ofícios afastavam-se da agricultura. O aumento constante da produção e, com ele, o da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de trabalho humano; a escravatura... torna-se, agora, um elemento essencial do sistema social... Às dúzias, obrigam-nos [os escravos] ao trabalho... Da cisão da produção em dois ramos principais, a agricultura e os ofícios, nasce a produção direta para a troca, a
mercantil, e, com ela, o comércio...73.

IV. — Segunda divisão da sociedade em classes.
Assim, a primeira grande divisão do trabalho aumenta o valor do trabalho humano, cria um aumento de riqueza, que aumenta de novo o valor do trabalho e obriga a uma segunda divisão deste: ofícios e agricultura.
Nesse momento, o crescimento contínuo da produção e, paralelamente, do valor da força do trabalho humano, torna «indispensáveis» os escravos, cria a produção mercantil e, com ela, uma terceira classe: a dos mercadores.
Temos, pois, nessa altura, na sociedade, uma tripla divisão do trabalho e três classes: agricultores, artesãos, mercadores. Vemos aparecer, pela primeira vez, uma classe que não participa na produção, e essa, a dos mercadores, vai dominar as outras duas.
O estádio superior da barbárie oferece-nos uma divisão ainda maior do trabalho... daí resulta uma parte sempre crescente dos resultados do trabalho diretamente produzido para troca, e, com isso, a elevação desta... à altura da necessidade vital da sociedade. A civilização consolida e reforça todas estas divisões do trabalho já existentes, especialmente o antagonismo entre a cidade e o campo... e acrescenta uma terceira
divisão, que lhe é própria e de uma importância capital: cria uma classe que já não se ocupa da produção, mas, unicamente, da troca dos produtos — os mercadores. Esta torna-se a intermediária entre dois produtores.
Sob pretexto... de se tornar, assim, a classe mais útil da população... adquire rapidamente riquezas enormes e uma influência social proporcionada... é chamada... a um domínio sempre maior da produção, até que, no fim de contas, origina, também ela,, um produto para si própria — as crises comerciais periódicas74.
Vemos, portanto, o encadeamento que, partindo do comunismo primitivo, nos conduz ao capitalismo.
1. Comunismo primitivo.
2. Divisão entre tribos selvagens e pastores (primeira divisão do trabalho: amos, escravos).
3. Divisão entre os agricultores e os artesãos (segunda divisão do trabalho).
4. Aparecimento da classe dos mercadores (terceira divisão do trabalho) que
5. Dá origem às crises comerciais periódicas (capitalismo).
Sabemos, agora, de onde vêm as classes, e resta-nos estudar:

V. — O que determina as condições econômicas.
Devemos primeiro, muito brevemente, passar em revista as diversas sociedades que nos precederam.
Faltam os documentos para estudar em detalhe a história daquelas que precederam as sociedades antigas; mas, sabemos que, por exemplo, entre os Gregos, existiam amos e escravos, começando já a desenvolver-se a classe dos mercadores. Em seguida, na idade média, a sociedade feudal, com senhores e servos, permite aos mercadores tomarem cada vez mais importância. Agrupam-se perto dos castelos, no seio dos burgos (de onde o nome de «burguês»); por outro lado, na idade média, antes da produção capitalista, apenas existia a pequena produção, que tinha por condição primeira que o produtor fosse proprietário dos seus instrumentos de trabalho. Os meios de produção pertenciam ao indivíduo e estavam adaptados só ao uso individual. Eram, por conseguinte, mesquinhos, pequenos, limitados. Concentrar e aumentar esses meios de produção, transformá-los em possantes alavancas da produção moderna, era o papel histórico da produção capitalista e da burguesia...
A partir do século XV, a burguesia executou esta obra, percorrendo as três fases históricas: da cooperação simples, da manufatura e da grande indústria... Ao arrancar esses meios de produção ao seu isolamento, concentrando-os... muda-se-lhe a própria natureza e, de individuais,, tornam-se sociais75.
Vemos, pois, que, paralelamente à evolução das classes (amos e escravos, senhores e servos), evoluem as condições de produção, de circulação, de distribuição das riquezas, isto é, as condições econômicas, e que esta evolução econômica segue, passo a passo e paralelamente, a dos modos de produção. São, portanto,

VI. — Os modos de produção,
isto é, o estado dos instrumentos, ferramentas, a sua utilização, os métodos de trabalho, numa palavra, o estado da técnica que determina as condições econômicas.
Se, outrora, as forças de um individuo ou, quando muito, do uma família chegaram para fazer trabalhar os antigos meios de produção isolados, seria preciso, agora, todo um batalhão de operários para pôr em movimento esses meios de produção concentrados. O vapor e a máquina-instrumento completaram essa
metamorfose... A oficina individual [é substituída] pela fábrica, que reclama a cooperação de centenas, de milhares de operários. A produção transforma-se, de uma série de atos individuais, que era, numa de atos sociais76.
Vemos que a evolução dos modos de produção transformou totalmente as forças produtivas. Ora, se os instrumentos de trabalho se tornaram coletivos, o regime de propriedade permaneceu individual! As máquinas, que só podem funcionar havendo uma coletividade, permaneceram propriedade de um só homem. Assim, vemos que
[as forças produtivas] obrigam ao reconhecimento prático do seu caráter real, o de forças produtivas sociais... impõem a grandes quantidades de meios de produção a socialização, que se manifesta sob a forma de sociedades por ações... Esta forma, também ela, torna-se insuficiente... O Estado deve tomar a direção de tais forças produtivas... a burguesia tornou-se supérflua... Todas as funções sociais dos capitalistas são substituídas... por empregados assalariados77.
Assim nos aparecem as contradições do regime capitalista:
Por um lado, aperfeiçoamento do maquinismo tornado obrigatório... pela concorrência, e equivalendo à eliminação sempre crescente de operários... Por outro, extensão ilimitada da produção, igualmente obrigatória. Em qualquer dos casos, desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso de oferta sobre a procura, superprodução, crises... o que nos leva a: superabundância de produção... e de operários sem trabalho, sem meios de existência78.
Há contradição entre o trabalho tornado social, colectivo, e a propriedade que permaneceu individual. E, então, com Marx, diremos:
De formas de desenvolvimento das forcas produtiva», que eram, essas relações tornaram-se entraves. Então, abre-se um período de revolução social 79.

VII. — Observações.
Antes de terminar este capítulo, é necessário fazer algumas observações e sublinhar que, neste estudo, encontramos todos os caracteres e leis da dialética que acabamos de estudar, Com efeito, acabamos de percorrer, muito rapidamente, a história das sociedades, das classes e dos modos de produção. Vemos como cada parte deste estudo é dependente das outras. Constatamos que esta história é essencialmente móvel e que as mudanças que se produzem em cada estádio da evolução das sociedades são provocadas por uma luta interna, luta entre os elementos de conservação e de progresso, luta que conduz à destruição de cada sociedade e ao nascimento de uma outra. Qualquer delas tem um caráter, uma estrutura bem diferentes da que a precedeu. Essas transformações radicais operam-se depois de uma acumulação de fatos, que, em si mesmos, parecem insignificantes, mas, num certo momento, criam, pela sua acumulação, uma situação de fato que provoca uma mudança brutal, revolucionária.
Aí, reencontramos, pois, os caracteres e as grandes leis gerais da dialética, isto é:
A interdependência das coisas e dos fatos.
O movimento e a mudança dialética.
O autodinamismo.
A contradição.
A ação recíproca.
E a evolução por saltos (transformação da quantidade em qualidade).


Ao menos 51 mortes ocorreram dentro do DOI-Codi/SP, diz CNV



Informação rebate tese de que as mortes aconteceram somente em combate ou por suicídio, como defendeu em depoimento o coronel Ustra, ex-chefe do DOI/Codi em São Paulo. Documentos apontam que ao menos 47 mortes aconteceram enquanto Ustra era o chefe do aparato repressivo.



Brasília – A Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicou nesta terça-feira (28) dados retirados de documentos secretos que comprovariam que pelo menos 51 pessoas foram mortas no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna / II Exército (DOI/Codi de São Paulo) sob os comandos de Carlos Alberto Brilhante Ustra e seu sucessor, Audir Santos Maciel.

As informações foram encontradas pela CNV em uma monografia apresentada à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército pelo já falecido coronel Freddie Perdigão Pereira, um quadro destacado da repressão no Rio de Janeiro, com passagem pelo Serviço Nacional de Informações.

Em anexo a monografia está o que Perdigão chamou de “levantamento dos resultados obtidos pelo DOI/Codi/II Ex desde sua fundação até 18 de maio de 1977”, uma espécie de "estatística da repressão". O documento aponta que de 2541 pessoas presas pelo DOI, 1001 foram encaminhadas ao DOPS para o processo, 201 encaminhadas a outros órgãos, 1289 liberadas e 51 mortas.

Outro documento, identificado como ACE 4062-80 no Arquivo Nacional, aponta que desde a criação do DOI/Codi, em 1970, até outubro de 1973, 1786 pessoas foram presas e 45 mortas. No mês seguinte, novembro, a estatística é atualizada e indica 1804 prisões e 47 mortes.

“Patenteado está, sem sombra de qualquer dúvida, que 51 pessoas foram mortas, estando presas no DOI/Codi do II Exército, sendo que (2) dessas mortes aconteceram em novembro de 1973”, afirma o integrante da CNV, Claudio Fonteles, em texto.

Ustra foi o chefe do DOI/Codi do II Exército entre 29 de setembro de 1970 e 23 de janeiro de 1974.

Desmentindo Ustra
As informações publicadas hoje pela CNV já haviam sido mencionadas por Fonteles durante a tomada pública de depoimentos ocorrida no último dia 10. Porém, o depoente Ustra negou os dados, sustentando que as mortes aconteceram em combate e fora da sede do órgão de repressão. Confira aqui o trecho.

Na ocasião, o coronel afirmou, bastante irritado, que os militares sempre admitiram que houve mortos na ditadura, mas, além dos suicídios de Vladmir Herzog e Manuel Filho – disse ele –, as mortes foram em combate. “No meu comando, meu senhor doutor Fonteles, ninguém foi morto lá dentro do DOI, todos foram mortos em combate. E os que senhor diz que foram mortos dentro do DOI, não é verdade, eles foram mortos pelo DOI em combate, ora, na rua, dentro do DOI nenhum. Repito que o senhor não está certo no que está dizendo, está aqui publicado”, encerrou socando a mesa e referindo-se ao seu livro “A verdade sufocada”.

Logo após a resposta enérgica de Ustra, os ânimos se acirraram, provocando um bate-boca generalizado no local, o que levou Fonteles a encerrar a sessão. 

Publicado em Carta Maior

Democracia e revolução europeia

Publicado em Carta Maior

A esquerda brasileira deveria se unir em torno de um amplo movimento político e social em defesa de um programa mínimo de resistência democrática ao impasse que a Europa neoliberal está apresentando ao mundo: novos marcos regulatórios para democratizar o acesso à comunicação e garantir o direito à livre circulação da opinião; reforma política e reforma do pacto federativo, principalmente tributário, para reduzir as desigualdades sociais e regionais. Se não avançarmos nesta agenda de resistência, os avanços que tivemos poderão ser revertidos. 



Tarso Genro*

O grande movimento que deverá ser feito pelos oligopólios financeiros globais que tutelam as políticas dos países em crise será, processualmente, transferir os ônus da "recuperação" aos países pobres e aos chamados "emergentes". Não somente através de um desequilíbrio ainda maior, no intercâmbio comercial, mas também desencadeando ondas especulativas sobre as economias que não consigam colocar sob controle sua dívida pública.

Estes oligopólios vão se esmerar - a partir da insegurança generalizada já em curso - em provocar crises de governabilidade instigando, a partir delas, mais uma onda de privatizações, cujos recursos se "esfumarão" rapidamente, como ocorreu aqui no Brasil na era FHC. Ao mesmo tempo irão financiar e incentivar governos tecnocráticos, “choques” de gestão e mais destruição das funções públicas do Estado, como já está ocorrendo em Portugal, na Grécia e na Espanha.

O impasse político gerado pela crise reergueu a Alemanha à condição de potência política de primeira grandeza e ainda não demonstrou todo o seu potencial destrutivo, nem na Europa nem na América Latina. No Brasil, porém, a centro-direita já manifestou que “aceita” o desafio de representar a “saída” desejada pelos credores da dívida pública global. O candidato Aécio Neves colocou na sua agenda a defesa da era FHC, inclusive para sustentar novas privatizações, sinceridade que visa, não só provocar a formação de um bloco neoliberal e conservador, no seu entorno, mas também oferecer o Brasil como território disponível para assimilar aquela transferência da crise.

Trata-se, na Europa, de uma situação aparentemente sem saída, pois as classes trabalhadoras dos países mais atingidos, os setores médios, as empresas endividadas - premidos por uma situação que ameaça o financiamento estatal e os direitos sociais e do “Welfare”- nem conseguem maiorias eleitorais para formar governos de oposição à dogmática neoliberal, nem conseguem constituir um bloco social de caráter contestatório, capaz de por em risco o atual regime do capital. Ou seja: no enfrentamento da crise, nem reforma neo-socialdemocrata, nem revolução social novo tipo, até agora.

Como esta situação de bloqueio às conquistas da socialdemocracia europeia vai interferir na democracia política, com consequências em todo o mundo, ainda não se sabe. Proponho-me, aqui, a levantar algumas hipóteses, para contribuir com o debate sobre a nossa questão democrática, no interior da esquerda que defende a necessidade de governar dentro da ordem democrática e que isso, não só é válido, mas é um “front” elementar para bloquear os avanços da pior direita, que pode levar o mundo a uma nova ordem neofascista.

Entendo que o fato político mais marcante deste período é a subjugação da França pela Alemanha, quebrando as esperanças de um vasto contingente popular de esquerda e de centro-esquerda - algo que vai de Hollande a Mélenchon - que esperava por parte do governo Hollande um processo restaurativo dos direitos e benefícios que vinham sendo sucateados pelo governo Sarkozi, que levou este à derrota eleitoral. Algo de bem significativo -em termos político-eleitorais - apresentou-se naquele cenário, com um crescimento eleitoral expressivo, à direita à esquerda da socialdemocracia tradicional, já demonstrando a emergência de inconformismo radicalizado com os partidos da ordem que se renderam à Alemanha.

Entendo que o presidente Hollande pretendia, por convicção e necessidade política, restaurar o pacto socialdemocrata, esquecendo que ele fora erguido sob pilares sem fundo, o que frustrou as expectativas sobre o seu governo. Nem foram encaminhadas medidas alternativas de longo curso, para organizar um novo modelo de bem-estar que, pelo menos, repartisse os sacrifícios necessários para sair da crise. Sair da crise dentro do regime do capital, diga-se de passagem, pois ninguém com força política real na França estava defendendo, por exemplo, uma nova onda de nacionalizações ou a estatização dos bancos, com ocorreu na era Mitterrand.

Aqui reside, na minha opinião, a questão-chave. O que devemos nos perguntar é se, moldada a União Europeia tal qual foi moldada, Hollande poderia fazer reformas “pela esquerda” sem romper com União. Ou, ainda, sem usar “medidas de exceção” no terreno econômico (como aumentar o déficit público, exigir financiamento para os governos e empresas, não para os bancos privados), para proteger especialmente as pequenas e médias empresas, os empregos, bem como distribuir a proteção social mínima, necessária em momentos agudos de desmantelamento social, como está ocorrendo nos principais países do euro.

O que Hollande não fez a União Europeia fez, pois o que se observou nas saídas engendradas para a crise - por parte das autoridades da União Europeia - foi precisamente a declaração de uma emergência política, com um “estado de exceção” não declarado, para a tomada de decisões. E isso foi feito a partir de um “constitucionalismo de urgência”, no qual as regras gerais da União foram subjugadas por decisões intergovernamentais, bancadas pelo Banco Central Europeu.

Em especial estas medidas foram orientadas pela política nacional alemã, pois, de um só golpe, as medidas de austeridade (de caráter “excepcional”) sequestraram a soberania política dos países em crise e interferiram duramente nos seus orçamentos: “os perdedores, até o momento, neste processo, são os parlamentos, tanto os nacionais, como o Parlamento Europeu.” (Carlos Closa, “El Estado da Unión Europea”, El fracaso de la austeridad, Fundación Alternativas, 2012, pg.24). Resultado: o sequestro da política, que esvaziou o sr. Hollande, foi capitalizado na ação política alemã, sob o comando da sra. Merkell.

Em síntese: a “exceção”, com o nome de “intergovernamentalismo” já começou, comandada pela direita alemã, sem que sejam consideradas as consequências para o projeto democrático europeu e os seus efeitos destrutivos sobre a juventude, os idosos, os aposentados, os trabalhadores do setor público, os precários e intermitentes, os imigrantes e os desempregados. O que farão os cidadãos europeus, quando descobrirem que não adianta mudar governos? Eis a pergunta recentemente lançada pelo professor Boaventura Souza Santos, em artigo memorável.

Sugiro, como agenda para debate, que o impasse europeu poderá desdobrar-se em três possibilidades: 1. as reformas de austeridade são implantadas e forma-se a famosa sociedade dos três terços, como vinha sendo encaminhado aqui no Brasil, pela saudosa aliança tucano-pefelista (um terço incluído e feliz, um terço que come mais ou menos e não se educa e o outro terço nos guetos sociais das periferia, tratados predominantemente pela Polícia); 2. ou as reformas de austeridade se desdobrarão por muito tempo, comandadas por governos tecnocráticos semi-fascistas, com sustentação nas mídias e fortes repressões seletivas contra os imigrantes e miseráveis, com o apoio envergonhado das classes médias (nenhum dos blocos em confronto, nesta hipótese, tem força para impor-se); 3. ou processa-se um novo episódio da revolução social europeia, que se arrasta desde a Comuna de Paris, reinventando-se ali algo como um novo pacto “socialista-social-democrata” -um novo contrato social europeu - para enfrentar a direita alemã (com seus tentáculos tecnocráticos e políticos em todos os países europeus) cuja pior face já vem crescendo no interior da própria Alemanha: o neonazismo. Um bloco que suponha que preservação da democracia só ocorrerá com o sequestro, desta feita, da economia pela política.

Isso tem muito a ver conosco, que a duros custos estamos remando contra a maré: criando empregos, reestruturado o setor público, contratando servidores, investindo incomparavelmente mais em inovação, ciência e tecnologia, fortalecendo o mercado interno ao incluir no consumo milhões de famílias. Mesmo conciliando com o domínio pleno do capital financeiro sobre a economia global - o que inclusive Cuba vem tentando fazer e é impedida pelo bloqueio político e econômico dos Estados Unidos - o Brasil constitui uma ameaça mundial às saídas ofertadas pela dogmática neoliberal, porque mostra que as opções no terreno da política podem fazer frente à visão de que “não existem alternativas.”

É visível, porém, que um certo tipo de desenvolvimento que desafia e se contrapõe às leis de bronze do capital financeiro pode perdurar, com o mesmo bloco de forças que lhe dão sustentação, pelo tempo do cumprimento das tarefas que impulsionaram a sua formação. E que nos próximos cinco anos, certamente, nosso modelo atingirá o apogeu e a sociedade brasileira não será “inteiramente outra”, mas terá uma estrutura de classes e novos sujeitos sociais e políticos novos.

Milhões de pessoas estarão no mundo da política, dos negócios, dos movimentos sociais, na intelectualidade acadêmica, à frente das técnicas de indústria e da inteligência, indiferentes à memória política do processo de mudanças que o país sofreu. A partir daí os desafios serão outros, mais complexos e difíceis de resolver dentro do sistema político atual, com a fragmentação federativa ainda mais exposta e com um sistema tributário que funcionará de forma mais arcaica do que nos dias de hoje.

O difícil sistema de alianças que trouxe o Brasil até hoje dá sinais de cansaço, não porque os políticos são vilões ou corrompidos, até porque a taxa de vilania e corrupção, em cada época, é mais ou menos a mesma. Ela adquire é tinturas diferentes, desperta interesse ou alimenta indiferença na grande mídia, segundo seus interesses conjunturais (onde estão as cobranças para o julgamento do mensalão mineiro?). Os processos de corrupção no Estado, é elementar, são dependentes das formas pelas quais se realiza a acumulação de capital e como esta reflete inclusive no financiamento das mídias, com as suas regras “morais” mais, ou menos rígidas. Na era do capitalismo financeiro global os multimilionários esquemas de corrupção se transladaram das relações da burguesia industrial com Estado, para as relações diretas da burguesia financeira com o Estado.

O sistema de alianças dá sinais de cansaço, porque as mudanças no sistema tributário, a fragmentação federativa e a necessidade da reforma política, despertam reações diferentes nos distintos grupos de classes e nas diferentes regiões do país. Esta fadiga dos metais imobiliza as bases parlamentares, proporcionando que grupos de parlamentares troquem de posições em cada tema, sem nexo com as suas bancadas e com os seus compromissos de fidelidade ao governo ou à plataforma oposicionista.

Enquanto na Europa o tecido político dominante cumpre o seu papel de transmissor do programa do Banco Central Europeu, no Brasil este mesmo tecido fragmenta-se porque não mais corresponde aos desafios políticos que os partidos devem enfrentar, em nome das suas bases sociais e regionais: enfrentá-los para o país completar seu ciclo de mudanças, capazes de nos integrar no mundo, no polo de resistência a um neoliberalismo agônico, mas, por isso mesmo, mais capaz de radicalizar os ataques à democracia, para destruir as conquistas históricas do conjunto das classes trabalhadoras no século passado.

Creio que a esquerda brasileira - parlamentar ou extra-parlamentar - socialista, comunista, socialdemocrata, ou simplesmente republicano-democrática - deveria se unir em torno de um amplo movimento político e social para preparar um calendário de lutas, com um programa mínimo muito simples, de resistência democrática ao impasse que a Europa neoliberal está apresentando ao mundo: novos marcos regulatórios para democratizar o acesso à comunicação e garantir o direito à livre circulação da opinião; reforma política, no mínimo para acabar com o financiamento privado nas eleições e valorizar os partidos através da votação em lista; reforma do pacto federativo, principalmente tributário, para reduzir drasticamente as desigualdades sociais e regionais.

Estou tentado a pensar que se não conseguirmos avançar, nos anos imediatos, nesta agenda democrática de resistência, os avanços que tivemos até agora poderão ser revertidos, porque sabemos muito bem: o nosso centro do espectro político não é majoritariamente programático, mas vincula-se a um complexo de conveniências, que não raro lhe aproximam da pior direita, tanto neoliberal, como autoritária.

(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul.