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terça-feira, 30 de setembro de 2014

É o imperialismo neoliberal dos "neocons", estúpido




Montreal (Prensa Latina) Sei que este título não é original, mas não importa. O essencial em um momento crucial para a história humana e a existência do planeta, como é o atual, é nomear as coisas e colocá-las em seu lugar, para que possamos nos guiar em um terreno minado de subversões para derrubar governos progressistas e provocações para lançar guerras. E tudo isto no meio do denso nevoeiro de desinformações e de uma propaganda que quer nos condicionar a ver a Rússia e a outros países como ameaçadores e "inimigos" intratáveis, justificando dessa maneira a ofensiva do imperialismo estadunidense e de seus aliados da OTAN para criar nas relações internacionais um clima de confronto similar ao da Guerra Fria com a (ex) União Soviética. Ou muito pior se incluímos nesta análise as sinistras mensagens que dão os militares, representantes de governos ou "analistas" dos think tanks do complexo militar-financeiro-industrial, insinuando que com os sistemas antimísseis dos Estados Unidos (EUA), uma guerra nuclear contra a Rússia é "ganhável".
O MESSIANISMO DO IMPÉRIO ESTADUNIDENSE

Mas antes, para definir a utopia (que na realidade é uma distopia ou anti-utopia) do império neoliberal, proponho aos leitores hispanos ir ao "pai dos burros" da Real Academia da Língua Espanhola, para consultar as treze palavras que começam pelo prefixo "oni", ou seja tudo em latim. Das treze há quatro que definem em primeiro lugar os atributos ou poderes exclusivos de Deus. O que figura em itálico é a versão do dicionário, o que segue é o que se atribui ou busca realizar o império neoliberal liderado pelos EUA.

Onímodo, dá: que abraça e compreende tudo. Até a chegada do neoliberalismo este era um atributo exclusivo de Deus. Mas como a essência do capitalismo neoliberal é de se universalizar, abarcar absolutamente tudo e não deixar outra alternativa, como dizia Margaret Thatcher, ser omnímodo é o objetivo que o imperialismo neoliberal se fixa ao buscar a dominação global e total.

Onipotência: Poder omnímodo, atributo unicamente de Deus // 2. Poder muito grande. Em sua segunda acepção a onipotência é um poder terrenal muito grande mas não onímodo, motivo pelo qual ficamos com a primeira para definir o objetivo atual do império estadunidense, cujo potencial militar pode apagar a humanidade da face do planeta, porque inclui as armas nucleares e as mais avançadas armas convencionais e não convencionais utilizáveis a partir de mil bases militares localizadas nos EUA e em 130 países estrangeiros.

Este poder é possível pela onipresença militar dos EUA em todas as regiões do mundo, por suas alianças militares coletivas (OTAN, NORAD) e os tratados de defesa bilaterais, como com o Japão, por exemplo. A onipotência é também um poder de vida ou morte, como o que se outorgou ao presidente Barack Obama sobre cidadãos de seu país ou estrangeiros, de poder atuar unilateralmente em qualquer situação: prender e sequestrar em outros países cidadãos estrangeiros para julgá-los nos EUA; reconhecer ou desconhecer referendos e governos (Kosovo sim, Criméia não); bombardear com drones e matar civis, invadir ou bombardear países (Sérvia, Líbia, Síria, Iraque...).

No campo da atividade econômica o império neoliberal busca atingir a onipotência através da aplicação universal da lei estadunidense, seja diretamente (o juiz Thomas Griesa proporciona um bom exemplo com sua decisão sobre os "fundos abutres"), por meio de acordos bilaterais ou multilaterais, e fundamentalmente através das instituições multilaterais que assumem o papel de guardiãs desta ordem.

Onipresença: Presença ao mesmo tempo em todas partes, na realidade condição só de Deus. // 2. Presença intencional de quem gostaria de estar em vários lugares e vai rapidamente aos lugares onde o requerem. Novamente, a segunda acepção é terrenal e insuficiente para definir a ambição divina do império, que efetivamente é "ubícuo" através da sociedade de consumo, dos avanços nas telecomunicações e de seu controle sobre os concentradíssimos meios de difusão. É onipresente porque está em todos os lugares e telas ao mesmo tempo, enganando, desinformando, ou mentindo com sua propaganda. Com seus satélites espiões, o GPS incorporado em telefones celulares, automóveis e demais equipamentos eletrônicos, e através da espionagem eletrônica total, que inclui seus mais fiéis e próximos aliados, o império pode nos observar dia e noite graças à NSA e seus sócios estatais e privados. Novamente, a lista é longa e se alonga.

Onisciência: Conhecimento de todas as coisas reais e possíveis, atributo exclusivo de Deus // 2. Conhecimento de muitas ciências ou matérias. De novo, a primeira acepção é mais apropriada para descrever a ambição imperial de espiar todo mundo para saber tudo sobre suas ideias, seus gostos e suas fraquezas, e roubar os segredos industriais e comerciais, como revelou Edward Snowden. A busca da onisciência tem levado os EUA a uma sociedade "orwelliana", mas serve fundamentalmente para explicar os enormes orçamentos da investigação científica e tecnológica destinada para que o Pentágono sempre disponha de novas e mais poderosas armas que assegure a onipotência do império.

Entre outros aspectos, o atributo divino da onisciência permite manter -graças à obsolescência programada pelas indústrias, cópia terrenal do atributo de Deus que nos fez mortais-, um fluxo constante de (inúteis) mercadorias que, com a aplicação do sacralizado "direito de propriedade intelectual" onipresente nos tratados comerciais, é uma fonte inesgotável para a extração de rendas em benefício dos monopólios, chamem-se Monsanto ou Microsoft.

A UNIPOLARIDADE LHES ESCAPA DAS MÃOS

A criação de uma frente de confronto com a Rússia a partir do golpe de estado na Ucrânia, e a decisão de voltar a intervir unilateralmente na Síria -armando os "rebeldes moderados" que serão os próximos extremistas, como sempre aconteceu-, e bombardear as posições dos extremistas islâmicos que buscam impor o Estado Islâmico ou Califato no Iraque e na Síria, confirma que os EUA está atuando de forma muito perigosa e irracional.

São muitos os observadores bem qualificados em matéria de relações internacionais e dos sistemas mundiais que estão desconcertados diante da ausência total de racionalidade da política imperial.

Não é possível não pensar, como muito bem demarca o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein, que os EUA "encontra-se em séria decadência. Tudo está indo mal para eles. E no pânico, são como o motorista de um poderoso automóvel que perdeu o controle e não sabe como diminuir a velocidade. De modo que acelera e se encaminha para uma batida importante. O carro gira em todas as direções e patina. É autodestrutivo para o motorista, mas a batida também pode acarretar em um desastre para o resto do mundo".

Efetivamente, como escreve Alexander Reid Ross, "é verdade, ainda que seja muito triste. A segunda Guerra Fria já saiu para a superfície. Os think tanks estão acumulando dados para encontrar a melhor maneira de aniquilar o mundo".

Este cenário é francamente temível, mas realista se recordamos que a dissuasão que impediu que se chegasse à guerra "quente" e ao uso de armas nucleares durante a tensa Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, foi possível porque as cúpulas políticas e militares de ambos os campos, marcadas pela experiência não longínqua da Segunda Guerra Mundial, atuavam racionalmente e faziam o possível para não tomar decisões com custos inadmissíveis.

Uma dissuasão baseada na doutrina da "destruição mútua" é agora totalmente irreal porque, como se viu, os neoconservadores do Project for the New American Century incubados no Pentágono sob a presidência de George Bush (pai), continuam desde então incorporados nas equipes que controlam a agenda da estratégia política dos EUA, que só pode ser definida como uma irracional (ou messiânica) tentativa de dominar militarmente o mundo, sem importar a que custo, para que o império neoliberal se universalize e a hegemonia seja irreversível.

O plano de hegemonía militar que sustenta a ambição imperial foi bem explicitado no documento Defense Planning Guidance for the 1994-99 do Pentágono, redigido entre 1990 e 1992 - quando a União Soviética estava já derrubada - sob a direção do subsecretário de Defesa Paul Wolfowitz, que seguia as orientações do então Secretário de Defesa, Dick Cheney.

Nesse documento secreto, segundo a matéria que o Washington Post e o New York Times fizeram em 1992, afirma-se que "não é de nosso interesse ou das outras democracias o de retornar a períodos anteriores nos quais múltiplos poderes militares balançavam uns aos outros no que eram as estruturas de segurança, enquanto a paz regional, ou inclusive global, estava em jogo".

Wolfowitz e Cheney destacam nesse documento a necessidade de "uma garantia unilateral de defesa dos EUA" aos países da Europa Central, "preferivelmente em cooperação com os países da OTAN", e contemplando o uso do poder militar dos EUA para "prevenir ou castigar" o uso de armas nucleares, biológicas ou químicas, "inclusive em conflitos que não comprometem diretamente os interesses dos EUA". Essa é atualmente a política de Obama.

A versão original desse documento do Pentágono, segundo a matéria citada, "exclui" que como parte de uma estratégia pós-Guerra Fria se aceite a existência de um "súper-poder rival", e "propugna a perpetuação" de um sistema unipolar "no qual os Estados Unidos atuarão para prevenir a ascensão de qualquer competidor em sua primazia na Europa Ocidental e no Leste da Ásia (focando inclusive) suas energias para conter as aspirações de liderança regional da Alemanha e Japão".

Nesse documento formula-se que "uma consideração dominante e subjacente à nova estratégia de defesa regional é a de que atuemos para prevenir que qualquer poder que nos seja hostil alcance um poder dominante em uma região cujos recursos podem ser suficientes, sob um controle consolidado, para gerar poder global. Essas regiões incluem a Europa Ocidental, Ásia Oriental, o território da ex-União Soviética e o Sudeste da Ásia". Novamente, essa é a política de Obama.

Em uma análise da "grande estratégia pós-Guerra Fria" dos EUA, desde Clinton a Obama (que como vimos foi em realidade marcada pelo dueto Wolfowitz-Cheney), Bastian van Apeldoorn e Naná de Graff retomam a definição de William Appleman Williams (2009) sobre um imperialismo estadunidense orientado a estabelecer uma hegemonia global através da criação de uma ordem mundial liberal de portas abertas ao capital dos EUA.

QUE TEM MUDADO NO MUNDO?

Para ver que o tem mudado no mundo teria que se traçar a história da resistência dos povos até a persistente tentativa do imperialismo de impor em escala mundial as políticas neoliberais, algo impossível neste artigo, ainda que quiçá possamos apontar algumas metas, como as fortes mobilizações em todo mundo para impedir a adoção do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) em 1998; as fortes manifestações de protesto em Seattle, EUA em 1999 contra a Organização Mundial do Comércio (OMC); os protestos que marcaram a Cúpulaa das Américas em Quebec, em 2001, onde o presidente Hugo Chávez já via, como me disse quando o entrevistei nessa oportunidade, que o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA) dependeria não das decisões dos governos "senão da dos congressos, das assembléias, e no caso venezuelano inclusive de um referendo. Estou quase certo que na Venezuela terá que ser realizado um referendo, pelo modelo democrático participativo". Assim que a rejeição a ALCA foi consolidando-se para se consolidar em 2005 graças à nascente unidade latino-americana, que se manifesta na cúpula de Mar del Plata, sob a presidência do presidente argentino Néstor Kirchner.

Se a América latina foi a vanguarda nesta luta, isso foi consequência de que a América do Sul foi a região onde essas políticas de liberalização experimentadas a partir dos anos 60 e 70 - com os golpes de Estado ou os governos das oligarquias entreguistas - desmontaram as políticas de intervenção estatal nas economias, privatizaram as empresas estatais e entregaram nossos países para que as oligarquías locais e estrangeiras "os comessem crus"; com os conhecidos resultados a partir de 80: países desindustrializados, endividados e imersos em graves problemas econômicos e financeiros; com nossas sociedades esmagadas pelo desemprego, pela exclusão social e pela pobreza.

Outra meta importante do "débâcle" imperial foi a grande crise financeira e econômica de 2008-2009, cujas consequências econômicas, financeiras, sociais e políticas ainda persistem. E outra importantíssima é o começo de cristalização das tentativas de integração dos países emergentes - com o BRIC-BRICS (2009-2010), e em nível regional com a criação da União de Nações Sul-americanas (2008), da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) em 2011 e a realização no final de 2013 da primeira cúpula desta organização que exclui os EUA e o Canadá.

No plano político internacional, a credibilidade do supremo império é questionada em 2011 por seus dois principais aliados no Oriente Médio, Israel e Arábia Saudita, os que criticam publicamente Obama por ter permitido a derrubada do presidente egípcio Hosni Mubarak, ao que se soma o resultado final da operação na Líbia para derrocar o presidente Muhammad Kadafi, assassinado após ter sido capturado vivo, ou seja a consequente destruição da sociedade e infraestrutura desse país e a explosão de guerras que desde então as "democráticas" facções dos extremistas islâmicos livram.

Segue-lhe o fracasso, em 2013, da operação militar para derrubar o presidente sírio Bashar al Assad.

Isto foi sinal da impossibilidade de seguir forçando a criação dessa hegemonia: em 30 de agosto de 2013 o Parlamento britânico se negou a permitir que o governo conservador participasse no bombardeio da Síria, e poucos dias depois, na cúpula do G20 de São Petersburgo, o anfitrião russo Vladimir Putin, apoiado pela China e outros países do G20, propõe nesse fórum de temas econômicos que uma solução militar à crise na Síria não é aceitável. Forçado pelas iniciativas da Rússia e da Síria, Obama se vê levado a optar pela negociação, reconhecendo de fato que o mundo unipolar já não funcionava.

O sentimento de que a unipolaridade havia se volatilizado foi se reforçando no começo de 2014 pela consolidação do processo de formação de blocos regionais na Eurásia e na América latina e no Caribe, com políticas que incluem a participação dos Estados no planejamento econômico, na condução das políticas monetárias e creditícias, para se independizarem da hegemonia neoliberal.

Nesse marco há que localizar as exitosas visitas dos presidentes da Rússia e da China por países da América Latina - que deram lugar à assinatura de importantes acordos econômicos, comerciais e de investimento -, e de suas conversas com a CELAC e Unasul no marco da reunião dos países do BRICS no Brasil,

UM SETEMBRO DEMOLIDOR PARA O IMPÉRIO NEOLIBERAL?

Outro capítulo importante da crise do sistema unipolar, que pode chegar a sacudir o "estado de direito" neoliberal, é a substituição desse "estado de direito" baseado na aplicação da lei estadunidense por um "marco jurídico multilateral" das Nações Unidas.

Essa luta já começou no que diz respeito à dívida soberana, quando em 9 de setembro passado a Assembleia Geral da ONU aprovou por 124 votos a favor, 41 abstenções e 11 contra, o projeto de resolução apresentado pela República Argentina para criar um "marco jurídico multilateral para os processos de reestruturação da dívida soberana", tarefa que deverá ser completada antes de que se finalize o atual período de sessões, em setembro de 2015.

Enquanto o Congresso argentino aprovou, em 11 de setembro passado, a Lei de Pagamento Soberano, e este 24 de setembro a presidenta Cristina Fernández de Kirchner falará na Assembleia Geral da ONU para defender a posição da maioria de mais de dois terços de países.

Nesta oportunidade a Presidenta argentina chegará com o apoio moral do Papa Francisco - com quem almoçou no sábado 20 de setembro-, que "em sua alocução apostólica Evangelii Gaudium já marcou sua posição sobre este tema, criticando a "idolatria do dinheiro"e os "mecanismos sacralizados do sistema econômico imperante" que fomentam a desigualdade e "negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pelo bem comum", como recorda a jornalista Victoria Ginzberg (Un almuerzo no apto para especuladores, Página/12, 20-09-2014).

Sobre a iniciativa de Cristina Fernández na ONU o analista Luis Bruschtein escreve que faz parte dos movimentos que levaram à conformação de "grupos, mais que blocos, muito heterogêneos ideologicamente, mas que se reúnem a partir de problemáticas comuns. São novos mecanismos geopolíticos que expressam os conflitos do mundo contemporâneo e que têm substituído e/ou somado às formas mais ideológicas de outras épocas" (Página/12, Ovejitas en el prado, 20-09-2014).

Em outras palavras, a realidade do mundo atual nega a possibilidade de uma volta à hegemonia unipolar que os neoconservadores como Wolfowitz e Cheney propunham há mais de duas décadas, mas o sentimento de onipotência que prima em Washington e na OTAN nos pode levar a um desastre mundial, como adverte Wallerstein.

* Jornalista colaborador da Prensa Latina.

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