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segunda-feira, 30 de março de 2015

Albert Einstein: Porquê o Socialismo?



Albert Einstein

Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos económicos e
sociais exprimir opiniões a propósito do socialismo? Eu creio que sim, por várias
razões.
Consideremos primeiro a questão do ponto de vista do conhecimento científico.
Pode parecer que não há diferenças metodológicas fundamentais entre a
astronomia e a economia: em ambos os campos os cientistas procuram descobrir
leis com aceitação geral para um grupo circunscrito de fenómenos de modo a tornar
a interligação destes fenómenos tão claramente compreensível quanto possível.
Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis
gerais no campo da economia é complicada pela circunstância de que os fenómenos
económicos observados são com frequência influenciados por muitos outros
factores, que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência
acumulada desde o início do chamado período civilizado da história da humanidade
– como é bem conhecido – tem sido largamente influenciada e limitada por causas
que não são, de modo nenhum, exclusivamente económicas por natureza. Por
exemplo, a maior parte dos principais Estados ficou a dever a sua existência à
conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente,
como a classe privilegiada do país conquistado. Ficaram com o monopólio da
propriedade da terra e nomearam um clero entre as suas próprias fileiras. Os
sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade
numa instituição permanente e criaram um sistema de valores pelos quais, desde
então, o povo se tem guiado, em grande medida inconscientemente, no seu
comportamento social.
Mas a tradição histórica, digamos, faz parte do passado; em parte alguma se
superou verdadeiramente a fase do desenvolvimento humano, que Thorstein
Veblen2 chamou de «predatória». Os factos económicos observáveis pertencem a
essa fase e mesmo as leis que podemos determinar a partir deles não são aplicáveis

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a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objectivo do socialismo é precisamente
superar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência
económica no seu estado actual pouca luz pode lançar sobre a sociedade socialista
do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo orienta-se por um objectivo ético-social. A
ciência, contudo, não pode criar objectivo e, muito menos, incuti-los nos seres
humanos; quando muito, a ciência pode fornecer os meios para atingir
determinados objectivos. Mas os próprios objectivos são concebidos por
personalidades com ideais éticos elevados e – se estes ideais não forem nadosmortos,
mas vitais e vigorosos – são adoptados e levados avante por aqueles muitos
seres humanos que, semi-inconscientemente, determinam a evolução lenta da
sociedade.
Por estas razões devemos precaver-nos para não sobrestimarmos a ciência e os
métodos científicos quando se trata de problemas humanos; e não devemos
presumir que os peritos são os únicos que têm o direito a expressarem-se sobre
questões que afectam a organização da sociedade.
Inúmeras vozes têm afirmado desde há algum tempo que a sociedade humana
atravessa uma crise, que a sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico
deste tipo de situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em
relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar o meu
pensamento, permitam-me que refira aqui uma experiência pessoal. Falei
recentemente com um homem inteligente e cordial sobre a ameaça de outra guerra,
que, na minha opinião, colocaria em sério risco a existência da humanidade, e
observei que só uma organização supra-nacional ofereceria protecção contra esse
perigo. Imediatamente o meu visitante, muito calma e friamente, disse-me:
«Porque se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?»
Estou certo de que há um século ninguém teria feito tão ligeiramente uma
afirmação deste tipo. É uma afirmação de um homem que se esforçou em vão para
atingir um equilíbrio interior e que perdeu mais ou menos a esperança de o
conseguir. É a expressão de uma solidão e um isolamento penosos de que tanta
gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma saída?
É fácil levantar estas questões, mas é difícil responder-lhes com algum grau de
segurança. No entanto, devo tentar o melhor que posso, embora esteja consciente
do facto de que os nossos sentimentos e esforços são muitas vezes contraditórios e
obscuros e que não podem ser expressos em fórmulas fáceis e simples.
O homem é simultaneamente um ser solitário e um ser social. Enquanto ser
solitário, tenta proteger a sua própria existência e dos que lhe são próximos,
satisfazer os seus desejos pessoais, e desenvolver as suas capacidades inatas.
Enquanto ser social procura ganhar o reconhecimento e afeição dos seus
semelhantes, partilhar os seus prazeres, confortá-los nas suas tristezas e melhorar
as suas condições de vida. É apenas a existência destes esforços diversos e
frequentemente conflituosos que explica o carácter especial do ser humano, e a sua
combinação específica determina em que medida um indivíduo pode alcançar um
equilíbrio interior e contribuir para o bem-estar da sociedade. É perfeitamente
possível que a força relativa destes dois impulsos seja, em grande parte,
determinada por hereditariedade. Mas a personalidade que finalmente emerge é
largamente formada pelo ambiente em que o indivíduo se encontra por acaso
durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresce, pela
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tradição dessa sociedade, e pela apreciação que faz de determinados tipos de
comportamento. O conceito abstracto de «sociedade» significa para o ser humano
individual as soma total das suas relações directas e indirectas com os seus
contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores. O indivíduo é capaz
de pensar, sentir, lutar e trabalhar sozinho, mas depende tanto da sociedade – na
sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensar nele, ou
compreendê-lo, fora do quadro da sociedade. É a «sociedade» que lhe fornece
comida, roupa, casa, instrumentos de trabalho, a linguagem, formas de pensamento
e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida foi tornada possível pelo
labor e realizações de muitos milhões de indivíduos no passado e no presente, que
se escondem sob a pequena palavra «sociedade».
É evidente, por conseguinte, que a dependência do indivíduo em relação à
sociedade é um facto natural que não pode ser abolido – tal como no caso das
formigas e das abelhas. No entanto, enquanto todo o processo de vida das formigas
e abelhas é estabelecido, nos mais ínfimos pormenores, por instintos hereditários
rígidos, o padrão social e o relacionamento dos seres humanos são muito variáveis e
susceptíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o
dom da comunicação oral tornaram possíveis desenvolvimentos entre os seres
humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Estes desenvolvimentos
manifestam-se nas tradições, instituições e organizações; na literatura; nas obras
científicas e de engenharia; nas obras de arte. Isto explica, num certo sentido, como
pode o homem influenciar a sua vida através da sua própria conduta e como, neste
processo, o pensamento e a vontade conscientes podem desempenhar um papel.
Através da hereditariedade, o homem adquire à nascença uma constituição
biológica que devemos considerar fixa ou inalterável, incluindo os desejos naturais
que são característicos da espécie humana. Além disso, durante a sua vida, adquire
uma constituição cultural que adopta da sociedade através da comunicação e
através de muitos outros tipos de influências. É esta constituição cultural que, no
decurso do tempo, está sujeita à mudança e que determina, em larga medida, a
relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna ensina-nos,
através da investigação comparativa das chamadas culturas primitivas, que o
comportamento social dos seres humanos pode apresentar grandes diferenças, em
função dos padrões culturais dominantes e dos tipos de organização que
predominam na sociedade. É nisto que podem assentar as suas esperanças aqueles
que se esforçam para melhorar a sorte do homem: os seres humanos não estão
condenados, por causa da sua constituição biológica, a aniquilarem-se uns aos
outros ou à mercê de um destino cruel auto-infligido.
Se nos interrogarmos sobre como deveria mudar a estrutura da sociedade e a
atitude cultural do homem para tornar a vida humana tão satisfatória quanto
possível, devemos estar permanentemente conscientes do facto de que há
determinadas condições que não podemos alterar. Como atrás mencionámos, a
natureza biológica do homem, para todos os fins práticos, não está sujeita à
mudança. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos
últimos séculos criaram condições que se manterão. Em populações com uma
densidade relativamente elevada, que dispõem de bens indispensáveis à sua
existência, é absolutamente necessário haver uma divisão extrema do trabalho e um
aparelho produtivo altamente centralizado. O tempo em que os indivíduos ou
grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes – que
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visto à distância parece tão idílico – pertence definitivamente ao passado. Não é
grande exagero dizer-se que a humanidade constitui já hoje uma comunidade
planetária de produção e consumo.
Chego agora ao ponto em que posso indicar sucintamente o que para mim
constitui a essência da crise do nosso tempo. Trata-se da relação do indivíduo com a
sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente que nunca da sua dependência
relativamente à sociedade. Mas não sente esta dependência como um bem positivo,
como um laço orgânico, como uma força protectora, mas antes como uma ameaça
aos seus direitos naturais, ou ainda à sua existência económica. Além disso, a sua
posição na sociedade é tal que os impulsos egoístas do seu ser estão constantemente
a ser acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais
fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, seja qual for a
sua posição na sociedade, sofrem este processo de deterioração. Inconscientemente
prisioneiros do seu próprio egoísmo, sentem-se inseguros, sós, e privados do gozo
cândido, simples e não sofisticado da vida. O homem só pode encontrar sentido na
vida, curta e perigosa como é, através da sua devoção à sociedade.
A anarquia económica da sociedade capitalista, tal como existe actualmente, é,
na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Vemos diante de nós uma enorme
comunidade de produtores cujos membros procuraram incessantemente despojar
cada qual dos frutos do seu trabalho colectivo – não pela força, mas, em geral, em
total conformidade com as regras legalmente estabelecidas. A este respeito, é
importante compreender que os meios de produção – ou seja, toda a capacidade
produtiva necessária para produzir bens de consumo, bem como novos bens de
capital – podem ser legalmente, e na sua maior parte são, propriedade privada de
indivíduos.
Para simplificar, no debate que se segue, chamarei «operários» a todos aqueles
que não partilham a posse dos meios de produção – embora isto não corresponda
exactamente à utilização habitual do termo. O detentor dos meios de produção está
em posição de comprar a força de trabalho do operário. Ao utilizar os meios de
produção, o operário produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista.
O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o
que lhe é pago, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que o
contrato de trabalho é «livre», o que o trabalhador recebe é determinado não pelo
valor real dos bens que produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pela
quantidade de força de trabalho de que o capitalista necessita em relação ao
número de operários que procuram emprego. É importante compreender que,
mesmo em teoria, o salário do operário não é determinado pelo valor do seu
produto.
O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte por causa da
concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico
e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de unidades de produção
maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes desenvolvimentos é
uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente
controlado mesmo por uma sociedade que tem uma organização política
democrática. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são
escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados por
outras vias pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o
eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não
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protegem suficientemente os interesses das camadas desfavorecidas da população.
Além disso, nas condições existentes, os capitalistas privados controlam
inevitavelmente, directa ou indirectamente, as principais fontes de informação
(imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil para o cidadão, e na
maior parte dos casos completamente impossível, chegar a conclusões objectivas e
fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.
A situação que prevalece numa economia baseada na propriedade privada do
capital caracteriza-se por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção
(capital) são privados e os detentores utilizam-nos da forma que lhes convém;
segundo, o contrato de trabalho é livre. É claro que neste sentido não existe uma
sociedade capitalista pura. Deve-se notar, em particular, que, através de longas e
duras lutas políticas, os trabalhadores conseguiram obter para certas categorias
deles formas melhoradas de «contrato de trabalho livre». Mas, vista no seu
conjunto, a economia actual não difere muito do capitalismo «puro».
A produção realiza-se tendo em vista o lucro e não o uso. Não há nenhuma
garantia de que todos aqueles que tenham capacidade e queiram trabalhar possam
encontrar emprego; existe quase sempre um «exército de desempregados». O
operário receia constantemente perder o seu emprego. E dado que os
desempregados e os operários mal pagos consomem pouco, a produção de bens de
consumo é restringida, e a consequência são grandes privações. O progresso
tecnológico resulta frequentemente em mais desemprego em vez de um
aligeiramento da carga de trabalho para todos. O objectivo do lucro, em conjunto
com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na
acumulação e utilização do capital que conduz a depressões cada vez mais graves. A
concorrência sem limites conduz a um enorme desperdício do trabalho e ao
estropiamento da consciência social dos indivíduos que mencionei atrás.
Considero este estropiamento dos indivíduos como o pior mal do capitalismo.
Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal. Uma atitude exageradamente
competitiva é incutida no aluno, que é educado para venerar o poder aquisitivo
como preparação para a sua futura carreira.
Estou convencido que só há uma forma de eliminar estes sérios males,
nomeadamente através do estabelecimento de uma economia socialista,
acompanhada por um sistema educativo orientado para objectivos sociais. Nesta
economia, os meios de produção são detidos pela própria sociedade e são utilizados
de forma planificada. Uma economia planificada, que ajuste a produção às
necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que
podem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A
educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas,
procuraria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante
em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa actual sociedade.
No entanto, é necessário lembrar que uma economia planificada não é ainda o
socialismo. Uma economia planificada pode ser acompanhada por uma completa
sujeição do indivíduo. A realização do socialismo exige a resolução de alguns
problemas políticos e sociais extremamente difíceis: como é possível, com uma
centralização em grande escala do poder económico e político, evitar que a
burocracia se torne omnipotente e arrogante? Como se pode proteger os direitos do
indivíduo e assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?
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A clareza sobre os objectivos e problemas do socialismo é da maior importância
na nossa época de transição. Visto que, nas actuais circunstâncias, a discussão livre
e sem entraves destes problemas constitui um tabu poderoso, considero a fundação
desta revista como um serviço público importante


Artigo escrito por Albert Einstein especialmente para o primeiro número da revista norteamericana
Monthly Review, Nova Iorque, Maio de 1949. (Texto traduzido e publicado pelo
site resistir.info, em 4.07.2002: resistir.info/mreview/porque_o_socialismo.html. (N. Ed.)
Veblen, Thorstein Bunde (1857-1929), economista e sociólogo norte-americano,
segundo o qual as instituições da economia são influenciadas por dois instintos de base, o
instinto artesão e o instinto predador. Pelo primeiro, o homem enriquece-se pelo seu
trabalho, enquanto pelo segundo procura desapossar os outros dos seus bens e dos
resultados do seu trabalho. (N. Ed.).

A crítica de Bukhárin à economia política do rentista.


Por Aparecido Francisco Bertochi


RESUMO
Este artigo, de Aparecido Francisco Bertochi, busca analisar a crítica formulada pelo teórico bolchevique Nikolai Bukhárin à economia marginalista e ao parasitismo dos estratos rentistas das burguesias capitalistas européias no início do século XX. Tentaremos entender quais os fatores que contribuíram em sua refutação metodológica às escolas histórica alemã e a - histórica austríaca de economia. Examinamos assim alguns dos elementos constitutivos de seu pensamento em economia política. Dentre eles destacam-se o surgimento desses estratos rentistas e do capital financeiro, enquanto agentes do processo de internacionalização do capital, por meio do capital financeiro imperialista.

Foi no exílio em Viena, na Áustria, que Bukhárin se propôs a um objetivo teórico de fôlego: estudar toda a economia política desenvolvida depois da morte de Karl Marx, em 1883. Após compulsar a literatura econômica moderna, inclusive a das correntes marxistas, decidiu escrever entre 1912-1913, uma de suas mais consistentes obras, que ainda mantém atualidade, A economia política do rentista: crítica da economia marginalista, publicada em 1919. Nela, Bukhárin fundamentava a sua crítica à economia burguesa marginalista e à teoria da utilidade marginal, por meio da análise psíco-sociológica e marxista do indivíduo em relação à produção e ao papel improdutivo exercido na economia pelo burguês rentista, que ao viver somente de juros e de aplicações financeiras não contribui com a produção material da sociedade.
O que motivou Bukhárin a escrever este livro foi dar continuidade à refutação de um artigo de Eugen Böhm-Bawerk, de 1904, no qual criticava O Capital de Karl Marx, atacando os fundamentos da análise marxista da economia capitalista em seu ponto mais vulnerável, a teoria do valor-trabalho, e afirmava a sua própria teoria da utilidade marginal, cujo valor não é determinado pelo trabalho investido no produto, mas pela utilidade que o produto tem para seus compradores. Marx, todavia, partia do valor-trabalho para compreender o lucro e a acumulação capitalistas, visando demonstrar cientificamente a natureza exploradora do capitalismo. Na época este artigo fora respondido pelo economista Rudolf Hilferding, mas, a sua resposta manteve-se no necessário à defesa da doutrina econômica marxista, o que fez Bukhárin entender que era necessário tecer uma crítica interna profunda ao sistema lógico e teórico que sustentava a teoria marginalista.
Na economia política burguesa da época Bukhárin distinguiu duas correntes principais, a escola histórica alemã de Roscher, Hildebrandt, Knies, Karl Bucher, Gustav Schmoller e List, baseada no protecionismo da burguesia alemã diante da concorrência da indústria inglesa no mercado mundial; e a escola marginalista austríaca abstrata de Karl Menger, Frederick von Wiser e Eugen Böhm-Bawerk, voltada à elaboração de abstrações teóricas descoladas da realidade concreta. Ele explicava que a escola histórica por basear-se no protecionismo rejeitava as abstrações e formulações de leis universais, opondo-se aos economistas clássicos, como David Ricardo e Adam Smith, e só tendo por legítimas monografias de caráter empírico. Mas, a escola marginalista austríaca se situava num nível mais alto de abstração teórica, pela utilização de formulações matemáticas. Resultando disto, seu caráter a-histórico e a sua preferência por elaborar leis universais sem basear-se na realidade concreta das diferentes épocas históricas.
Ambas alternativas expressam, conquanto sob forma diametralmente oposta, o fracasso da Economia Política burguesa. A primeira fracassou porque adotou uma atitude negativa diante de toda teoria abstrata em geral. A segunda, porque se satisfez com a elaboração de uma teoria puramente abstrata e ofereceu, dessa maneira, uma série de pseudo-explicações habilmente imaginadas, porém inúteis no referente aos problemas em cuja abordagem o marxismo demonstrou ser particularmente uma teoria eficaz: os relativos à dinâmica da sociedade capitalista atual (Bukhárin, 1974:46).
Segundo Bukhárin (1974), esta escola histórica alemã surge enquanto reação à perpetuação e ao cosmopolitismo dos clássicos, porque a Economia Política clássica, especialmente a inglesa, formulou leis gerais, de validade universal, com forte caráter teórico-abstrato dedutivo. Ele buscava demonstrar também, que a diferença metodológica, entre os clássicos ingleses e a moderna escola histórica alemã, possuía profundas raízes econômicas e sociais. O que se ocultava nessa discussão era o fato de que os economistas clássicos, como David Ricardo, formularam leis gerias abstratas de caráter universal baseadas no processo de desenvolvimento teórico da economia, fomentado pela indústria inglesa. Este cosmopolitismo refletia o desenvolvimento industrial da Inglaterra, a partir de 1750, e sua superioridade tecnológica e teórica em relação ao desenvolvimento capitalista industrial na França e Holanda, que apenas décadas depois se iniciou. Mas, a importação deste modelo industrial para Alemanha e Itália só tardiamente ocorreria com o processo de unificação territorial e a formação de seus Estados nacionais, após 1861-1873.
Neste cenário de desenvolvimento capitalista tardio no continente europeu, no início do século XX, a Alemanha possuía um caráter agrário e atrasado diante da Inglaterra. A indústria metalúrgica alemã, por exemplo, enfrentava a concorrência inglesa nos mercados interno e mundial. Foi essa diferença econômico-industrial que propiciou o surgimento da escola histórica alemã, devido à necessidade prática e teórica da burguesia alemã proteger sua nascente indústria com a adoção de políticas tarifárias e aduaneiras protecionistas pelo Estado Imperial. No campo teórico, por meio da escola histórica, esta necessidade de proteção da indústria alemã ganha outros matizes. Os seus estudos deveriam refletir as circunstâncias e condições materiais concretas da realidade e apontar as reais perspectivas de crescimento da indústria em meio às salvaguardas protecionistas do Estado. Por isso, a refutação desta escola da validade universal das teorias econômicas e de suas leis de caráter geral, desenvolvidas pelos clássicos ingleses.
Se a burguesia inglesa estava dispensada de enfatizar as particularidades nacionais, a burguesia alemã, pelo contrário, devia se mostrar atenta à originalidade e autonomia da evolução alemã e servir-se delas a fim de demonstrar teoricamente a necessidade de um protecionismo para o desenvolvimento. O interesse teórico se concentrava, com efeito, no historicamente concreto e nacionalmente limitado. A teoria servia exclusivamente para pôr em evidência estes aspectos específicos da vida econômica. De um ponto de vista sociológico, a escola histórica foi a expressão ideológica deste processo de crescimento da burguesia alemã que, temerosa da concorrência inglesa, buscou apoio para a indústria nacional e, por isso, salientou as particularidades nacionais e históricas da Alemanha e outrossim, generalizando o procedimento, as de outros países (Bukhárin, 1974:46).
Num quadro econômico histórico amplo, estas posições divergentes teoricamente, a clássica inglesa e da escola histórica alemã, poderiam ser genérica e comparativamente semelhantes nalguns aspectos, pois refletiam os seus posicionamentos teóricos no contexto do processo de desenvolvimento da industrialização capitalista nacional. Mas, o lugar ocupado pela Inglaterra, pioneira no processo de desenvolvimento industrial capitalista, permitiu que as leis gerais abstratas da Economia Política ganhassem importância e contornos universais.
Isso se justifica, porque o modelo inglês foi transplantado aos países europeus e as colônias. Esse foi o caso da Alemanha, que também importou dos ingleses seu modelo industrial, que, devido às peculiaridades dum país agrário atrasado, necessitou depois criar suas bases materiais para acelerar esse desenvolvimento visando sobreviver à competição no mercado mundial. Foi esse processo, destinado ao desenvolvimento industrial nacional autônomo que levou ao surgimento da escola histórica na Alemanha, para pensar e justificar a importância, nessa realidade local-nacional, das políticas protecionistas que resguardassem as suas frágeis bases industriais, como elucida Bukhárin:
De um ponto de vista genérico-social, tanto a escola histórica como a clássica são nacionais, na medida em que ambas são o produto de uma evolução histórica e localmente limitada. De um ponto de vista lógico, não obstante, os clássicos são cosmopolitas e os partidários da escola histórica são nacionais (idem).
Portanto, o pensamento econômico clássico inglês só se universalizou devido ao pioneirismo do desenvolvimento capitalista naquele país. Mas, substancialmente, foi fruto dum desenvolvimento industrial nacional semelhante ao que, décadas depois, ocorreu na Alemanha. O fator diferenciador, neste caso, está na não-aceitação da validade teórica universal das teorias e leis gerais abstratas, formuladas no século XIX pelos clássicos ingleses, pelos teóricos da escola histórica alemã, pois estava em jogo o desenvolvimento industrial alemão e a sua sobrevivência diante da concorrência inglesa e dos países industrializados anteriormente. Por isso Bukhárin atrela o processo de desenvolvimento da escola histórica alemã ao protecionismo, pois a sua vocação empirista monográfica dava o suporte e a legitimação teórico-lógica para, a partir da realidade nacional, justificar medidas protecionistas do Estado, exigidas pela burguesia industrial alemã. Para Bukhárin, a constituição dessa escola estava desde o início ligada ao protecionismo nacional: “o movimento protecionista alemão converteu-se, assim, no berço da escola histórica”(1974:47).
Tal fato foi responsável por engendrar o surgimento de tendências de vários tipos e diferentes características teóricas. Porém, particularmente, fomentou a sua principal corrente de pensamento, representante da conservadora burguesia rural alemã, a escola histórica nova ou histórico-ética, idealizada por Gustav Schmoller. O que caracterizava essa escola era a atitude negativa face à teoria abstrata, que segundo Bukhárin: “parecia aos cientistas como sinônimo de absurdo” (1974:47), gerando o repúdio a produção de teorias e leis de caráter abstrato ou geral na Economia Política. Por isso, validava apenas estudos com caráter estreitamente empírico e monográfico refratário a toda generalização.
Isso, no entanto, o levou a incidir num erro teórico, que depois geraria polêmicas com os stalinistas e teria repercussões negativas à sua carreira política. Seu erro foi prever o fim da Economia Política, que deixaria de ser uma disciplina de estudos específicos autônoma e seria substituída na sociedade socialista, por um tipo de geografia econômica e por uma política econômica da base material da sociedade. Segundo Bukhárin, “a rejeição da teoria geral constitui precisamente a negação da Economia Política como disciplina teórica autônoma, a declaração de sua bancarrota” (1974:48).
Noutra análise, argumenta contra a escola a-histórica austríaca, visando responder suas críticas ao marxismo. Tal teoria era ministrada no curso de Economia da Universidade de Viena por Böhm-Bawerk, Karl Menger e Wieser, no qual, Bukhárin participou como ouvinte. Uma das características dessa escola é a sua rejeição ao historicismo, pois seus teóricos consideram necessário observar os fenômenos típicos e as leis gerais da Economia Política. Ou seja, de maneira empirista, aos cientistas dessa corrente de pensamento, era necessário se desenvolver férreas leis exatas, como se isso fosse epistemologicamente possível no campo da economia capitalista.
Bukhárin, por meio da obra Der bourgeois, de Werner Sombart, faz uma análise histórica e psicológica sobre o espírito burguês em seu aspecto decadente, nas principais formações econômico-sociais capitalistas dos séculos XVII e XVIII. Dessa forma, buscava as origens do surgimento duma fração rentista no interior das classes burguesas dedicadas as altas finanças durante o ancien régime na Inglaterra, França e Holanda. Inferiu assim, que esta decadência não levou uma camada dessas classes ao processo de refeudalização, como em outros países europeus. Este espírito capitalista burguês decadente os transformou numa fração rentista, separada da burguesia ativa e produtiva. Uma parcela das classes burguesas voltadas às finanças passou a viver de aplicações financeiras, sobretudo, em letras do tesouro nacional dos países, sem vínculo direto com a produção social material das sociedades em que viviam.
Transplantar sua análise à modernidade não foi difícil para ele, pois a evolução capitalista sofreu profunda aceleração no processo de acumulação de capital, nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Tal processo resultou na transformação da economia de livre concorrência em monopolista, em sua fase imperialista, por meio da fusão dos capitais industrial e bancário e gerou o capital financeiro. Esse capital engendrou os grandes cartéis e trusts que passaram a concorrer no mercado mundial. Portanto, estas transformações contribuíram para acelerar o crescimento desta fração rentista na sociedade capitalista mundial, facilitado com o surgimento das empresas de sociedades anônimas, do sistema de créditos e empréstimos a países pobres e da especulação em bolsas de valores.
O número destes indivíduos cresce, a ponto de chegar a formar uma classe social: a dos rentistas. Este estrato da burguesia, ainda que não constitua uma classe no sentido específico da palavra, senão um grupo com características próprias no interior da burguesia capitalista, apresenta certas notas distintivas que o caracterizam e que derivam de sua psicologia social. A expansão das sociedades anônimas e dos bancos e a crescente influência da Bolsa engendram e consolidam este grupo social. Sua atividade econômica se exerce essencialmente no plano da circulação, sobretudo de títulos e valores, e nas transações da Bolsa. É significativo o fato de que, no interior deste estrato social, que vive de rendas produzidas por estes valores, existam diferentes matizes. O caso limite é representado pela camada situada fora não só da produção como também do próprio processo de circulação (Bukhárin, 1974:49).
Ao analisar as características principais desse novo estrato social, os rentistas, ele ressalta seu caráter parasitário, pois sua atividade se exerce no campo do consumo. “A vida inteira do rentista se baseia no consumo e a psicologia do consumo em estado puro, constitui seu estilo particular de vida”(BUKHARIN,1974:50). Ainda, baseando-se em Sombart, conclui que as características psicológicas deste estrato rentista aparentam-se às da nobreza decadente e às da aristocracia financeira de fins do ancien régime (idem). Bukhárin tece uma comparação entre os modos de vida do proletariado e dos rentistas e indica que a principal característica desse estrato rentista é a sua completa separação de todo o processo de vida econômica da sociedade. Por isso, para essa parcela rentista, o trabalho produtivo concreto seria algo fortuito e à margem de seu horizonte visual, que se limita apenas ao presente.
Para ele, isso reforçaria a característica psicológica do rentista como consumidor passivo que não possui, como o proletariado que vive na esfera da produção social, uma mentalidade ativa de produtor socialmente útil, e concluía que a segunda característica importante do estrato rentista seria o seu individualismo crescente. Bukhárin (1974:52), afirma que a terceira característica deste estrato rentista seria, como no caso da burguesia em geral, o seu temor ao proletariado e o medo às eminentes catástrofes sociais.
Na sua concepção, tais aspectos da consciência social do rentista, derivados de seu ser social, determinam a sua consciência no aspecto teórico e no nível das idéias científicas. Para Bukhárin a psicologia seria a base da lógica, pois os sentimentos e as propensões determinariam a orientação geral do pensamento e a perspectiva pela qual se considera a realidade antes de submetê-la à lógica. Por isso, se a análise duma frase isolada de uma teoria qualquer não desvenda a sua infra-estrutura social, um estudo das características distintivas e do aspecto geral do sistema permitiria observar essa infra-estrutura. Portanto, para ele cada frase teria um sentido novo, se configuraria na trama de todo encadeamento, traduzindo a experiência duma determinada classe ou de um grupo social dado (1974:52). Retomando a análise da escola austríaca, enfatiza sua característica lógica distintiva procedendo à comparação metodológica entre a escola austríaca e o marxismo, e afirma que, diferentemente de Marx, cuja análise parte da produção capitalista como categoria histórica específica, o objetivo principal do rentista é a solução do problema do consumo, e que essa constitui a posição teórica fundamental e característica da escola austríaca.
A partir disso, inferiu que as teses da escola austríaca e da marginalista tinham por base comum o subjetivismo e o individualismo do sujeito econômico, e que elas pouco se diferiam das teorias, baseadas na análise da utilidade e do valor de uso dos bens, dos pensadores do século XIX, como Adam Smith. Os mesmos procedimentos teóricos e metodológicos se expressavam nas primeiras décadas do século XX, na escola anglo-americana, cujo expoente era J.B.Clark. Essas teorias embasam o pensamento econômico neoliberal atual de globalização econômica ditada pelo FMI e Consenso de Washington. O que demonstra a atualidade da crítica formulada por Bukhárin, no início do século XX.
Um aspecto importante de A economia do rentista é não fazer uma análise crítica superficial à escola austríaca e a marginalista. Ao contrário, ele aprofundou sua crítica metodológica da economia burguesa moderna a partir da comparação com a teoria marxista. Desta forma, pôde caracterizar no interior da burguesia como classe social, o estrato dos rentistas, demonstrando a sua ligação teórica estreita com o subjetivismo e o individualismo atomístico de Böhm-Bawerk. Bukhárin comprovou metodologicamente que as teses da escola austríaca partiam das análises das motivações psicológicas do indivíduo isolado e das análises das motivações dos sujeitos econômicos, fazendo abstração de toda correlação social. Por isso, as refuta cientificamente, alegando que essas teorias, ao partir de uma análise do indivíduo social atomizado, não refletiriam a realidade econômica concreta do modo de produção capitalista, pois se fundavam em uma formulação errônea ao fazer da consciência individual do sujeito econômico, o ponto de partida de sua análise teórica e o centro gravitacional de sua argumentação a-histórica.
Com efeito, enquanto “Marx concebe o movimento social como um processo histórico-natural regido por leis que não somente são independentes da vontade, da consciência e da intenção dos homens, senão que, ademais, determinam sua vontade, consciência e intenções [...]” (trecho da crítica de Kaufmann citado pelo próprio Marx), Böhm-Bawerk faz da consciência individual do sujeito econômico o ponto de partida de sua análise (Bukhárin, 1974:57).
Essa oposição entre método objetivo e subjetivo, segundo Bukhárin, caracteriza a oposição entre o método social e o método individualista. Por isso, sublinha, como Marx, a independência com relação à vontade, à consciência e às intenções humanas; para, em segundo lugar, buscar definir com precisão esse sujeito econômico, do qual parte a escola austríaca em suas análises econômicas. A sociedade moderna capitalista anárquica, objeto de estudo da Economia Política, em cujo mercado atuam forças elementares como a concorrência, flutuação dos preços, bolsas de valores etc., comprova que o produto social governa seus criadores e que o resultado dos motivos geradores da ação dos sujeitos econômicos individuais, mas não isolados, não correspondem a esses motivos e, em certos casos, encontra-se em violenta oposição a eles.
Recorrendo à análise da mercadoria de Marx no livro primeiro de O Capital, Bukhárin afirma que metodologicamente “este fenômeno expressa o caráter irracional, elemental, do processo econômico desenvolvido nos marcos da economia de mercado e aparece claramente na psicologia do fetichismo das mercadorias” (1974:58). Uma vez que se produz no interior da economia mercantil o processo de reificação (Verdinglichung) das relações humanas, em que tais expressões coisificadas (Dingausdrücke) têm existência autônoma independente, submetida a leis específicas próprias apenas deste tipo de existência, enquanto conseqüência do caráter elemental do próprio desenvolvimento capitalista.
Bukhárin quer dizer que o método dialético consiste em determinar quais sãos as leis reguladoras das relações entre os diferentes fenômenos sociais capitalistas. Marx analisa as leis da dinâmica do desenvolvimento do sistema capitalista, que regem os resultados das vontades particulares, mas sem examinar estas vontades como tais, sem analisá-las como vontades individuais. Ele analisa essas leis que governam os fenômenos sociais, abstraindo sua relação com os fenômenos dependentes da consciência individual. Portanto, o método de Marx é conceitualmente diferente da forma metodológica com que Böhm-Bawerk analisa os sujeitos econômicos como átomos isolados, abstraindo das correlações sociais resultantes da própria determinação da infra-estrutura econômica da sociedade capitalista, nas quais este indivíduo, por mais isolado que estivesse, encontrava-se imerso, pelo fato dos homens viverem em sociedade. Por isso, avalia que Böhm-Bawerk se equivoca metodologicamente ao tomar como centralidade teórica o sujeito econômico isolado.
Böhm-Bawerk escamoteava o cerne da questão metodológica, que era desenvolver uma análise sobre o que caracterizava o intercâmbio capitalista, pois o capitalismo constitui a atual forma historicamente desenvolvida da produção de mercadorias. Era esta relação capitalista de intercâmbio historicamente situada e determinada que deveria ser objeto de sua análise e não o intercâmbio indistinto, a-histórico e desconectado de qualquer formação sócio-econômica histórica e especificamente determinada, como o era e continua a ser o sistema capitalista. Bukhárin realçava a diferença metodológica entre os fundamentos das escolas histórica empírica alemã de List e Schomoller e da austríaca abstrata matemática a-histórica, baseada na teoria de Böhm-Bawerk, porque essa caracterizaria a antítese da ideologia proletária, objetivismo versus o subjetivismo, o ponto de vista histórico versus a perspectiva a-histórica, o ponto de vista da produção versus o do consumo.
Precisamente porque corresponde à ideologia de um tipo marginal da burguesia, a escola austríaca constitui a antítese perfeita da ideologia proletária: objetivismo versus subjetivismo, ponto de vista histórico versus perspectiva a-histórica, ponto de vista da produção versus ponto de vista do consumo - esta é a diferença metodológica, tanto dos fundamentos da própria teoria como de toda a construção teórica de Böhm-Bawerk (Bukhárin,1974:54).
Porém, nunca será demais reafirmar a atualidade desta obra bukhariniana, nem que consiste numa das críticas mais profundas aos equívocos metodológicos das escolas histórica alemã e a-histórica austríaca e, também, da teoria marginalista, que embasam o pensamento econômico e anti-científico pós-moderno capitalista atual. Escolas estas cujas raízes teóricas e metodológicas fundamentam as teorias econômicas que intentam legitimar o projeto de dominação mundial capitalista de globalização econômica, baseado no ideário neoliberal do FMI e do Consenso de Washington, imposto às nações do mundo visando o saqueio de suas riquezas naturais e a superexploração de sua força de trabalho. Sobretudo, em relação ao emprego do capital financeiro de natureza especulativa desse estrato rentista da sociedade capitalista mundial que Bukhárin, ainda em 1914, desvendou a existência parasitária.

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Marília – SP. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste do Paraná - UNIOESTE - Campus de Francisco Beltrão - PR

Referências bibliográficas
BUKHARIN, N. La economía política del rentista: crítica da economía marginalista. Córdoba: Pasado y Presente, 1974.
COHEN, S. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
GORENDER, J.(Org.). Bukhárin - História. São Paulo:Ática, 1988.
HEITMAN, S. Nikolai I. Bukharin: bibliography. Stanford: Hoover Institution, 1968.
HILFERDING, Rudolf. El capital financiero. Madrid: Techos, 1973.
____________. La crítica de Böhm-Bawerk a Marx. In: BÖHM-BAWERK, Eugen von et ali. Economía burguesa y economia marxista. II ed. México: Pasado y Presente, 1978.
LÖWY, A.G. El comunismo de Bujarin. Barcelona, México:Grijalbo, 1973

domingo, 29 de março de 2015

Ombudsman aponta erro grave da Folha em denúncia contra Dirceu

Londres, a Meca dos corruptos


À frente, a conhecida Torre de Londres. Ao fundo, a reluzente porém obscura "City", núcléo da rede internacional de "centros financeiros offshore"
À frente, a famosa Torre de Londres. Ao fundo, a reluzente porém obscura “City”, núcléo da rede internacional de “centros financeiros offshore”
Como o sistema financeiro internacional converteu capital britânica no centro global de reciclagem para riqueza de políticos inescrupulosos, ditadores e crime organizado

Por George Monbiot | Tradução: Vila Vudu
A conta não fecha. Quase todos os dias, jornais e televisões inglesas estão repletos de histórias que cheiram a corrupção. Contudo, no ranking de corrupção da ONG “Transparência Internacional”, a Grã-Bretanha ocupa o 14º lugar entre 177 nações (1) – significando que estaria entre as nações mais bem geridas da Terra. Ou os 13 países que vêm antes da Grã-Bretanha são espetacularmente corruptos, ou há algo errado com esse ranking da “Transparência Internacional”.
Sim, o problema é o índice. As definições de “corrupção” de que se serve são as mais estreitas e seletivas. Nos países ricos, práticas comuns que sem dúvida poderiam ser consideradas corruptas são simplesmente excluídas; já práticas comuns em países pobres são enfatizadas.
Esta semana foi publicado um livro bastante inovador, editado por David Whyte: How Corrupt Is Britain? [Quão Corrupta é a Grã-Bretanha?] (2). Deveria ser lida por todos aqueles que acham que Grã-Bretanha merece a posição em que aparece no ranking da “Transparência Internacional”.


Existiria ainda um setor bancário comercial na Grã-Bretanha, não fosse a corrupção? Pense na lista dos escândalos: pensões subfaturadas, fraudes hipotecárias, o embuste do seguro de proteção de pagamentos, a manipulação da taxa interbancária Libor, as operações com informações privilegiadas e tantos outros. Depois, pergunte-se se espoliar as pessoas é uma aberração – ou o próprio modelo de negócio.
Nenhum dirigente de banco foi indiciado, sequer desqualificado ou demitido por práticas que contribuíram para desencadear a crise financeira: a legislação que os teria coibido ou enquadrado em crimes já havia sido paulatinamente esvaziada, antes, por sucessivos governos.
Um ex-ministro do atual governo britânico dirigia o banco HSBC (2) quando este praticava sistematicamente crimes de evasão fiscal (3) e lavagem de dinheiro do narcotráfico, além de garantir serviços a bancos da Arábia Saudita e Bangladesh ligados ao financiamento do terrorismo (4). Ao invés de processar o banco, o diretor da Controladoria Fiscal do Reino Unido passou a trabalhar para ele, ao se aposentar (5).
A City de Londres, que opera com o apoio dos territórios britânicos de além-mar e postos avançados da Coroa, é líder mundial dos paraísos fiscais, controlando 24% de todos os serviços financeiros (6) oferecidos offshore.
A cidade oferece ao capital global um sofisticado regime de sigilo, dando assistência não apenas a sonegadores de impostos, mas também a contrabandistas, fugitivos de sanções e lavadores de dinheiro. Como disse a juíza de instrução francesa Eva Joly, ao queixar-se que a City “nunca forneceu sequer uma ínfima evidência útil a qualquer magistrado estrangeiro” (7).
Reino Unido, Suíça, Cingapura, Luxemburgo e Alemanha estão todos entre os países menos corruptos na lista da Transparência Internacional. Mas figuram também na lista da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) como administradores dos piores regimes sigilosos de investimento e paraísos fiscais (8). Por alguma estranha razão, nada disso é levado em conta para definir o ranking da ONG Transparência Internacional.
A Iniciativa de Financiamento Privado (Private Finance Initiative) tem sido usada por sucessivos governos britânicos para iludir os cidadãos quanto à extensão dos seus empréstimos, enquanto canalizam dinheiro público para corporações privadas. Envolta em segredo, recheada de propinas ocultas (9), a IFP tem fisgado hospitais e escolas sempre com dívidas impagáveis, enquanto impede que a população controle os serviços públicos.
Espiões do Estado lançam-se à vigilância (10) em massa, ao mesmo tempo em que a polícia trabalha servindo-se de identidades de crianças mortas, mente em tribunais para fornecer provas falsas e incita crianças ao ativismo extremista, além de infiltrar-se em grupos pacíficos, tentando destruí-los (11). As forças policiais já mentiram sobre o desastre de Hillsborough (12); já protegeram pedófilos ativos (13) –inclusive Jimmy Savile e, como hoje se afirma, toda uma gama de dirigentes políticos suspeitos também do assassinato de crianças. Savile foi protegido também pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health Service) e pela BBC – que demitiu a maioria dos que tentaram expô-lo (14) e promoveu os que tentaram perpetuar o ocultamento dos fatos.
Há o problema de intocado sistema de financiamento político, que permite a compra dos partidos (15) pelos mais ricos. Há o escândalo das escutas telefônicas e dos jornais que subornam policiais; da privatização dos Correios britânicos, o Royal Mail (16), vendido a preços insignificantes; o esquema da “porta giratória”, que permite a empresários e empregados de grandes empresas, depois de eleitos, ficar em posição de redigir leis que defendem seus próprios interesses ou dos respectivos patrões; o assalto à seguridade social e aos serviços prisionais, por empresas privadas terceirizadas; a fixação, por empresas, do preço da energia; o roubo diário perpetrado pela indústria farmacêutica, e outras tantas dúzias de casos semelhantes. Nada disso é corrupção? Ou são operações ‘sofisticadas’ demais para serem expostas sob o seu verdadeiro nome, “corrupção”?
Entre as fontes usadas pela Transparência Internacional para produzir seu ranking estão o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial. Confiar no Banco Mundial para aferir corrupção é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos humanos. Orientado pelo princípio um dólar-um voto, controlado pelas nações ricas e atuando nas nações pobres, o Banco Mundial financiou centenas de elefantes brancos que enriqueceram enormemente as elites mais corruptas e beneficiaram capitais estrangeiros (17), ao mesmo tempo em que expulsava pessoas das próprias terras e deixava países afogados em dívidas impagáveis. Para espanto geral, a definição do Banco Mundial para a corrupção é tão limitada que não considera esse tipo de prática.
E o Fórum Econômico Mundial estabelece sua escala de corrupção a partir de uma pesquisa que consulta executivos mundiais (18) — precisamente eles, cujas empresas são beneficiárias diretas do tipo de práticas que estou listando nesse artigo. As perguntas se limitam ao pagamento de propinas e à aquisição corrupta de fundos públicos por interesses privados (19), excluindo o tipo de corrupção que prevalece nas nações ricas. Quando entrevista cidadãos comuns, a Transparência Internacional segue a mesma linha: a maior parte das perguntas específicas concerne ao pagamento de propinas (20).
Quão corrupta é a Grã Bretanha? Tão estreitas concepções de corrupção são parte de uma longa tradição de retratá-la como algo confinado a países fracos, que precisam ser salvos por “reformas” impostas pelos poderes coloniais e, mais recentemente, organismos tais como Banco Mundial e FMI. Essas “reformas” significam austeridade, privatização, terceirização e desregulamentação. Elas tendem a sugar dinheiro das mãos dos pobres para as mãos das oligarquias nacionais e globais.
Para organizações como o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, há pouca diferença entre o interesse público e os interesses das corporações globais. O que pode parecer corrupção de qualquer outra perspectiva é visto por eles como fundamentos econômicos. O poder das finanças globais e a imensa riqueza da elite global estão fundadas em corrupção, e os beneficiários têm interesse em enquadrar a questão para desculpar-se. Sim, muitos países pobres sofrem o flagelo do tipo de corrupção que é o pagamento de propinas a servidores públicos. Mas o problemas que atormentam a Inglaterra são mais profundos. Quando o sistema já pertence à elite, propinas são supérfluas.
NOTAS
1. https://www.transparency.
2. http://www.plutobooks.com/
3. http://www.theguardian.com/
4. http://www.hsgac.senate.
5. http://www.theguardian.com/
6. John Christensen, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
7. Nicholas Shaxson, 2011. Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the World. Random House, London. http://
8. http://www.
9. http://www.theguardian.com/
10. http://www.theguardian.
11. http://www.theguardian.
12. Sheila Coleman, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
13. http://www.theguardian.
14. http://www.theguardian.
15. http://www.theguardian.
16. http://www.theguardian.
17. http://www.
18. http://www3.weforum.org/
19. http://www.ticambodia.org/
20. http://www.transparency.

sábado, 28 de março de 2015

Chomsky: o mundo que nossos netos herdarão?

Publicado em OUTRASPALAVRAS
140325-Chomsky2
Como EUA fortalecem, numa época já turbulenta, surgimento de grupos como ISIS. A estranha relação Washington-Telaviv. Nas mudanças climáticas, sinal de decadência do sistema


Entrevista a David Barsamian, na Jacobin | Tradução Pedro Lucas Dulci
Entrevistado pelo jornalista David Barsamian, o professor Noam Chomsky, explica as raízes do Estado Islâmico (ISIS) e porque os EUA e seus aliados são responsáveis pelo grupo. Particularmente, argumenta, a invasão do Iraque em 2003 provocou um divisão sectária que desestabilizou a sociedade iraquiana. Solo fértil para os sauditas estimularem grupos radicais.
A entrevista também toca no massacre israelense na faixa de Gaza, destacando o papel vital de Israel no tabuleiro político norte-americano. Chosmky conta, por exemplo, como Telaviv foi usada por Washington para fornecer, ao exército a Guatemala, as armas que permitiram o massacre contra comunidades maias. Era a época do governo Ronald Reagan; o Congresso havia proibido tal assistência militar — Israel prontificou-se a ser solução. 


Por fim, Chomsky compartilha seus pensamentos sobre o crescente movimento pela justiça climática e porque acha que essa é a questão mais urgente hoje. 
O Oriente Médio está em chamas, da Líbia até o Iraque. Existem novos grupos jihadistas. O foco atual é o ISIS. O que dizer sobre ISIS e as suas origens?
Há uma interessante entrevista que só apareceu há alguns dias atrás, com Graham Fuller, um ex-agente da CIA, um dos principais fontes da inteligência e dos analistas mainstream sobre o Oriente Médio. O título é “Os Estados Unidos criaram o ISIS”. Aparentemente, seria mais uma das milhares de teorias da conspiração que rondam o Oriente Médio.
Mas trata-se de algo diferente — que vai direto ao coração do establishment norte-americano. Fuller apressa-se em frisar que sua hipótese não significa dizer que os EUA decidiram dar existência ao ISIS e, em seguida, o financiaram. Seu — e eu acho que é algo acurado — é que os EUA criaram o pano de fundo em que o ISIS cresceu e se desenvolveu. Em parte, apenas devido à abordagem devastadora padrão: esmagar aquilo de que você não gosta.
Em 2003, os EUA e a Grã-Bretanha invadiram o Iraque, um crime grave. A invasão foi devastadora. O Iraque já havia sido virtualmente destruído, em primeiro lugar pela década de guerra com o Irã — no qual, aliás, Bagdá foi apoiado por os Washington — e depois pela década de sanções econômicas e políticas.
Tais sanções foram descritas como “genocidas” pelos dois respeitados diplomatas internacionais que os administravam e, que, por esse motivo, renunciaram em protesto. Elas devastaram a sociedade civil, fortaleceram o ditador, obrigaram a população a confiar nele para a sobrevivência. Essa é provavelmente a razão pela qual ele não seguiu o caminho natural de todos os outros ditadores que foram derrubados.
Por fim, os EUA simplesmente decidiram atacar o país em 2003. O ataque é comparado por muitos iraquianos à invasão mongol de mil anos atrás. Muito destrutiva. Centenas de milhares de pessoas mortas, milhões de refugiados, milhões de outras pessoas desalojadas, destruição da riqueza arqueológica e da riqueza do país da época suméria.
Um dos efeitos da invasão foi instituir imediatamente divisões sectárias. Parte do “brilhantismo” da força de invasão e de seu diretor civil, Paul Bremer, foi separar os grupos — sunitas, xiitas e curdos — uns dos outros, e instigá-los uns conta os outros. Após alguns anos, houve um conflito sectário brutal, deflagrado pela invasão.
Você pode enxergar isso se olhar para Bagdá. Um mapa de Bagdá de, digamos, 2002, revela uma cidade mista: sunitas e xiitas vivem nos mesmos bairros e casam entre si. Na verdade, às vezes nem sabiam quem era sunita, e quem era xiita. É como saber se seus amigos estão em um ou outro grupo protestante. Existiam diferenças, mas não eram hostis.
Na verdade, durante alguns anos ambos os lados diziam: nunca haverá conflitos sunitas-xiitas; Estamos muito misturados na natureza de nossas vidas, nos locais onde vivemos, e assim por diante. Em 2006, houve uma guerra feroz. Esse conflito se espalhou para todo o Oriente Médio — hoje, cada vez mais dilacerado por conflitos entre sunitas e xiitas.
A dinâmica natural de um conflito como esse é que os elementos mais extremos comecem a assumir o controle. Eles tinham raízes. Estão no mais importante aliado dos EUA, a Arábia Saudita, com a qual Washington está seriamente envolvidos desde a fundação do Estado nacional. É uma espécie de ditadura da família. O motivo é sua uma enorme quantidade de petróleo.
Mesmo do domínio dos EUA, a Grã-Bretanha sempre preferiu o islamismo radical ao nacionalismo secular, no mundo árabe. E quando os EUA passaram a ser hegemônicos no Oriente Médio, adotaram a mesma posição. O islamismo radical tem seu centro na Arábia Saudita. É o estado islâmico mais extremista, mais radical no mundo. Faz o Irã parecer um país tolerante e moderno, em comparação — e os países seculares do Oriente Médio árabe ainda mais, é claro.
A Arábia Saudita não é apenas dirigida por uma versão extremista do Islã, os salafistas wahhabistas. É também um Estado missionário. Usa seus enormes recursos petrolíferos para promulgar suas doutrinas em toda a região. Estabelece escolas, mesquitas, clérigos, em todo o lugar, do Paquistão até o Norte de África.
Uma versão extremista do extremismo saudita foi assumida pelo ISIS. Este grupo cresceu ideologicamente, portanto, a partir da forma mais extremista do Islã — a versão da Arábia Saudita — e dos conflitos engendrados pela invasão norte-americana, que quebraram o Iraque e já se espalharam por toda a região. Isso é o que Fuller argumenta, em sua hipótese.
A Arábia Saudita não só fornece o núcleo ideológico que levou ao extremismo radical do ISIS (e de grupos semelhantes que estão surgindo em diversos países), mas também o financia e lhe oferece apoio ideológico. Não é o governo de Riad que o faz — mas sauditas e kwaitianos ricos. O ataque lançado à região pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha é a fonte, onde tudo se origina. Isso é o que significa dizer os EUA criaram ISIS.
Pode ter bastante certeza de que, à medida que esses conflitos se desenvolvem, eles se tornarão mais extremistas. Os grupos mais brutais tenderão a assumir o controle. É o que acontece quando a violência se torna o meio de interação. É quase automático: em favelas ou nos assuntos internacionais. As dinâmicas são perfeitamente evidentes. É este o papel do ISIS vem. E se for destruído, surgirá talvez algo ainda mais extremo.
Os meios de comunicação são obedientes. No discurso de 10 de setembro de Obama, ele citou dois países como supostas histórias de sucesso na estratégia de contra-insurgência dos EUA: Somália e Iêmen
O caso da Somália é particularmente horrendo. O Iêmen já é suficiente ruim, mas a Somália é um país extremamente pobre. Não há tempo para contar toda a história. Mas uma das grandes conquistas, um dos grandes orgulhos da política de “contraterrorismo” da administração Bush foi que eles tinham conseguido fechar uma instituição de caridade, a Barakat, que estaria alimentando o terrorismo na Somália. Enorme comoção na imprensa. Foi para eles uma conquista real.
Alguns meses mais tarde, os fatos começaram a vazar. A caridade não tinha absolutamente nada a ver com o terrorismo na Somália. O episódio tinha a ver era com bancos, comércio, assistência, hospitais. Atingir a Barakat era uma espécie de tentativa de manter a Somália profundamente empobrecida e economicamente golpeada. Existem algumas linhas sobre isso. Você pode ler em livros sobre finanças internacionais.
Houve um momento em que os chamados tribunais islâmicos, que eram chamados de uma organização islâmica, tinham conseguido uma espécie de paz na Somália. Não era um belo regime, mas pelo menos era pacífico e as pessoas o aceitavam mais ou menos. Os EUA não iriam tolerar isso, então apoiaram uma invasão etíope para destruí-la e transformar o lugar em um tumulto horrível. Essa é a grande conquista.
O Iêmen é uma história de horror própria.
Vamos à disputa de Israel contra os palestinos. Há algum tempo, um jornalista norte-americano, David Greene, conversou com um repórter em Gaza e fez o seguinte comentário: “Ambos os lados sofreram enormes danos”. Pensei para mim mesmo, isso significaria que Haifa e Tel Aviv foram reduzidas a escombros, como Gaza foi? Você se lembra do comentário Jimmy Carter sobre o Vietnã?
Não só me lembro, como acho que fui a primeira pessoa a comentar sobre isso, e provavelmente sou até hoje praticamente a única pessoa a comentar sobre ele. Fizeram a Carter, o defensor dos direitos humanos, uma pergunta leve, numa entrevista coletiva em 1977: você acha que temos alguma responsabilidade de ajudar os vietnamitas depois da guerra? Ele respondeu que não tínhamos nenhuma dívida com eles – “a destruição foi mútua”.
Isso passou sem comentários. E foi melhor do que o seu sucessor. Alguns anos mais tarde, George Bush I, o “estadista”, estava comentando sobre as responsabilidades norte-americanas após a Guerra do Vietnã, e disse: há um problema moral que permanece. Os vietnamitas do norte não empregaram recursos suficientes para entregar a nós os ossos dos pilotos americanos. Estes pilotos inocentes, derrubados sobre Iowa pelo assassino vietnamita quando estavam pulverizando colheitas, ou algo assim… Mas Bush disse: somos um povo misericordioso, por isso vamos perdoá-los por isso e vamos permitir-lhes entrar em um mundo civilizado…
O que significava: vamos permitir que eles entrem nas relações comerciais e assim por diante, o que, naturalmente, nós barramos, se eles pararem o que estão fazendo e dedicarem recursos suficientes para superar este crime pós Guerra do Vietnã. Sem comentários.
Uma das coisas que as autoridades israelenses continuam trazendo à tona, e é repetido aqui na mídia corporativa, ad nauseam, é o estatuto do Hamas. Eles não aceitam a existência do Estado de Israel, querem tirá-lo do mapa. Você tem alguma informação sobre a carta e seus antecedentes.
A carta foi produzida por, aparentemente, um grupo de pessoas, talvez dois ou três, em 1988, numa altura em que Gaza estava sob forte ataque israelense. Você se lembra de ordens de Yitzhak Rabin. Foi um levante fundamentalmente não-violento, ao qual Israel reagiu de modo muito violentamo, matando líderes, torturando, quebrando ossos, de acordo com as ordens de Rabin, e assim por diante. E bem no meio de tudo isso, um número muito pequeno de pessoas saiu com o que chamaram de um estatuto do Hamas.
Ninguém prestou atenção a ele desde então. Era um documento terrível. Mas desde então, as únicas pessoas que chamaram a atenção para ele foram a inteligência israelense e a mídia norte-americana. Ninguém mais se preocupa com isso. Khaled Mashal, o líder político de Gaza anos atrás, disse: olha, é passado, “já era”. Não tem nenhum significado. Mas isso não importa. Porque é propaganda valiosa para Telaviv.
Há também o fato de que, mesmo não sendo chamados de “estatuto”, há princípios fundadores da coalizão de governo em Israel. Nesse caso, não se trata de um pequeno grupo de pessoas, que estão sob ataque, mas da coalizão governista, o Likud. O núcleo ideológico do Likud é o Herut, de Menachem Begin. Eles sim têm documentos fundadores. Seus documentos fundadores dizem que Jordânia de hoje faz parte da terra de Israel; Israel nunca renunciará ao seu direito à terra da Jordânia. O que está agora chamado Jordânia eles chamam as terras históricas de Israel. Eles nunca renunciaram a isso.
O Likud,  partido do governo, tem um programa eleitoral – foi enunciado em 1999 e nunca revogado, é o mesmo hoje. Diz explicitamente que nunca haverá um Estado palestino a oeste do Rio Jordão. Em outras palavras, “estamos empenhados, por princípio, na destruição da Palestina”. E não são apenas palavras. Os governantes de Israel agem dia a dia para implementá-las.
Há uma história interessante sobre a chamada Carta da Organização pela Libertação da Palestina, a OLP. Por volta de 1970, o ex-chefe da inteligência militar israelense, Yehoshafat Harkabi, publicou um artigo em uma das principais revistas de Israel em que trouxe à luz algo chamado de “Carta da OLP” ou algo semelhante. Ninguém nunca tinha ouvido falar dela, ninguém estava prestando atenção nela.
E a carta diz: nosso objetivo é a nossa terra, vamos assumi-la. Na verdade, não era diferentemente das alegações do Herut, exceto o lugar de origem. Isto se tornou instantaneamente uma questão enorme em toda a mídia. Foi chamada de “A aliança OLP”. “A aliança OLP” planeja destruir Israel. Ninguém sabia nada sobre isso, mas repentinamente tornou-se uma questão importante.
Eu conheci um ex-chefe da inteligência militar israelense, Harkabi, alguns anos mais tarde. Era um moderado, aliás, um cara interessante. Tornou-se bastante crítico da política israelense. Tivemos uma entrevista aqui no MIT. Eu lhe perguntei: “Por que você trouxe à tona o documento, no instante em que pensavam em revogá-lo?” Ele olhou para mim com o olhar vazio, que você aprende a reconhecer quando você está falando com fantasmas. Eles são treinados para fingir que não entendem o que você está falando, embora entendam perfeitamente.
Ele disse: “Oh, eu nunca ouvi isso”. É algo além do concebível. É impossível que o chefe da inteligência militar israelense não saiba o que sei por ter lido trechos de imprensa árabe em Beirute. É claro que ele sabia.
Existe todo tipo de motivos para acreditar que decidiu trazer à tona precisamente porque reconheceu — ou seja, a inteligência israelense reconheceu — que seria uma peça útil de propaganda e é melhor tentar garantir que os palestinos a mantenham. É lógico que se nós os atacamos, eles dirãop: nós não vamos revogar nosso estatuto sob pressão. É o que está acontecendo com o estatuto do Hamas.
Hoje é impossível documentar isso, por uma razão simples. Os documentos estavam todos nos escritórios da OLP em Beirute. E quando Israel invadiu Beirute, roubaram todos os arquivos. Presumo que devem tê-los em algum lugar, mas ninguém vai ter acesso a eles.
O que explica a unanimidade quase absoluta do Congresso dos EUA em apoio Israel? Mesmo Elizabeth Warren, o senadora democrata altamente elogiada de Massachusetts, votou a favor desta resolução sobre a auto-defesa.
Ela provavelmente não sabe nada sobre o Oriente Médio. Acho que isso é bastante óbvio. Tome as armas dos EUA pré-posicionadas em Israel para serem usadas em possíveis ações militares na região. Isso é um pequeno pedaço de uma aliança militar e de inteligência muito próxima, que remonta a décadas. Ela realmente decolou depois de 1967, embora já existisse embrionariamente.
Os militares e a inteligência dos EUA incluem Israel entre suas bases principais. Na verdade, uma das revelações mais interessantes do WikiLeaks foi a relação dos centros considerados estratégicos pelo Pentágono, ao redor do mundo — aqueles que serão defendidos a todo custo. Um deles é uma grande instalação militar, algumas quilômetros distante Haifa: as indústrias militares Rafael.
Muita tecnologia drone foi desenvolvida ali. Depois, a sede e a gestão da Rafael foram mudadas para Washington, onde está o dinheiro. Isso é indicativo do tipo de relacionamento que existe. E vai muito além. Os investidores norte-americanos estão num relação de amor com Israel. Warren Buffet acaba de comprar uma empresa israelense por alguns bilhão de dólares e anunciou que, fora os EUA, Israel é o melhor lugar para investir. As grandes empresas, como a Intel e outras, estão investindo pesadamente em Israel. É um cliente valioso: é estrategicamente localizado, complacente, faz o que os EUA querem, está disponível para a repressão e violência. Os EUA têm usado cada vez mais, como uma forma de contornar as restrições do Congresso e de alguns setores da população sobre violência.
Tome, por exemplo, o caso da Guatemala. O presidente Ronald Reagan, que foi extremamente brutal e violento, bem como um terrível racista, quis fornecer suporte direto para o ataque do Exército da Guatemala contra os índios maias — algo literalmente genocida. Houve uma resolução do Congresso que bloqueou a resolução. Então ele fez a ponte com seus clientes terroristas.
O principal deles foi Israel — também participaram Taiwan e alguns outros. Israel forneceu as armas para o Exército da Guatemala – até hoje eles usam armas israelenses – providenciando treinamento para executarem o ataque genocida. Esse é um dos seus serviços. Fizeram o mesmo na África do Sul.
Agora, crianças e muitos outros refugiados estão fugindo de três países: El Salvador, Honduras e Guatemala. Não da Nicarágua, tão pobre como Honduras. Existe uma diferença? Sim. A Nicarágua é o único país da região que tinha, na década de 1980, uma maneira de se defender contra as forças dos EUA – um exército. Nos outros países o exército eram as forças terroristas, apoiadas e armadas pelos EUA, ou por seu cliente israelense no pior dos casos. Então é isso que você tem.
Existe uma grande quantidade de relatórios otimista dizendo que o fluxo de crianças da América Central para os EUA diminuiu. Por quê? Porque nós pressionamos o governo mexicano e lhe dissemos para usar a força e impedir que as vítimas de nossa violência fujam para os EUA, tentando sobreviver. Agora, os mexicanos fazem isso por nós, por isso há menos pessoas vindo para a fronteira. É uma grande conquista humanitária de Obama…
Incidentalmente, Honduras está na liderança. Por que Honduras? Porque em 2009, houve um golpe militar no país. O presidente Zelaya, que estava começando a fazer alguns movimentos em relação a reformas extremamente necessárias, foi derrubado e expulso do país. Eu não vou passar os detalhes, mas os EUA, sob Obama, foram um dos poucos países que reconheceu o regime golpista e a eleição que ocorreu sob a sua égide. Honduras transformou-se em uma história de horror pior do que era antes, batendo recordes no número de homicídios e violência.
Parece ter surgido uma oportunidade para que a população curda do Iraque alcance algum tipo de soberania. Isso se cruza, na verdade, com os interesses israelenses no Iraque. Eles têm apoiado os curdos, ainda que de forma clandestina, mas é bem sabido que Israel tem pressionado para a fragmentação do Iraque.
Eles estão fazendo isso. E isso é um dos pontos em que há conflito entre a política israelense e a norte-americana. As áreas curdas têm litoral. O governo do Iraque bloqueou sua exportação de petróleo, seu único recurso, e, claro, opõe-se a construção do Estado curdo. Os EUA até agora tem apoiado esta atitude.
Clandestinamente, há um fluxo de petróleo em algum nível da área curda na Turquia. Essa também é uma relação muito complexa. Massoud Barzani, líder curdo iraquiano, visitou a Turquia cerca de um ano atrás e fez alguns comentários bastante impressionantes. Ele era bastante crítico da liderança dos curdos turcos e estava claramente tentando estabelecer melhores relações com a Turquia, que tem reprimido violentamente os curdos turcos.
A maioria dos curdos no mundo está na Turquia. Você pode entender o porquê, do ponto de vista deles. Essa é a única saída para o mundo exterior. Mas a Turquia tem uma atitude dúbia a respeito. Um Curdistão independente, ao norte do Iraque, bem próximo às áreas curdas da Turquia, ou nas áreas curdas da Síria, poderia encorajar os esforços para autonomia no sudeste da Turquia, que é fortemente curda. Os turcos têm lutado muito brutalmente contra isso desde que a Turquia moderna surgiu, na década de 1920.
O Curdistão conseguiu, de alguma forma, atrair petroleiros transportar petróleo a partir de seu território. Esses navios estão vagando em torno do Mediterrâneo. Nenhum país irá aceitá-los, a não ser, provavelmente, Israel. Nós não podemos ter certeza, mas parece que estão ficando com um pouco. Os petroleiros curdos estão buscando alguma forma de descarregar seu petróleo no Mediterrâneo oriental. Isso não está acontecendo em um volume que permita ao Curdistão funcionar, mesmo para pagar seus funcionários.
Na chamada capital curda, Erbil, há arranha-céus sendo erguidos, abunda alguma riqueza. Mas é um tipo de sistema muito frágil, que não pode sobreviver. O país está completamente cercado por regiões hostis.
Em nosso último livro, Power Systems, eu lhe pergunto, “Você tem netos. Que tipo de mundo eles herdarão?”
O mundo que estamos criando para nossos netos é ameaçador. Uma das maiores preocupações é a relacionada ao aquecimento global.
Isso não é brincadeira. Esta é a primeira vez na história da espécie humana que temos de tomar decisões que irão determinar se haverá uma sobrevivência decente para nossos netos. Isso nunca aconteceu antes. Já tomamos decisões que estão acabando com espécies de todo o mundo em um nível fenomenal.
O nível de destruição de espécies no mundo de hoje está acima do nível de 65 milhões de anos atrás, quando um enorme asteróide atingiu a Terra e teve efeitos ecológicos horripilantes. Ele encerrou a era dos dinossauros, que foram aniquilados. Ele deixou uma pequena abertura para os pequenos mamíferos, que começaram a se desenvolver, e, finalmente, nós. A mesma coisa está acontecendo agora — a diferença é que somos o asteroide. O que estamos fazendo com o meio ambiente já está criando condições como as de 65 milhões anos atrás. A imagem não é bonita.
Em setembro do ano passado, uma das principais agências de monitoramentos científico internacional apresentou os dados sobre as emissões de gases de efeito estufa para o ano mais recente em registro, 2013. Eles atingiram níveis recordes: subiram mais de 2% para além do ano anterior. Nos EUA subiram ainda mais alto, quase 3%. No mesmo mês, o Journal of the American Medical Association saiu com um estudo sobre o número de dias super quentes previstos para Nova York, durante as próximas décadas. Estes dias vão triplicar — e os efeitos serão muito piores no Sul do planeta. Coincide com o aumento previto previsto do nível do mar, que vai colocar uma grande parte de Boston debaixo da água. Sem falar no  litoral plano Bangladesh, onde centenas de milhões de pessoas vivem, mas que serão desalojas.
Tudo isso é iminente. E neste exato momento a lógica das nossas instituições é conduzir o processo para frente. A Exxon Mobil, que é o maior produtor de energia, anunciou – e você realmente não pode criticá-los por isso, pois esta é a natureza do sistema capitalista, a sua lógica – que eles está direcionando todos os seus esforços para prospectar combustíveis fósseis, porque é rentável. Na verdade, isso é exatamente o que eles deveriam estar fazendo, no quadro institucional em que vivemos. Eles deveriam buscar lucros. E se isso elimina a possibilidade de uma vida digna para os netos, não é seu problema.
A Chevron, outra grande empresa de energia, tem um pequeno programa sustentável, principalmente por razões de relações públicas, mas estava indo razoavelmente bem, chegou a ser realmente rentável. Eles simplesmente encerraram os programas sustentáveis, porque os combustíveis fósseis são muito mais rentáveis.
Nos EUA, agora há perfuração em todo o lugar. Mas há um lugar onde foi um pouco limitado, terras federais. Lobbies de energia estão queixando-se amargamente de que Obama cortou o acesso a terras federais. O Departamento de Interior apresentou as estatísticas. É o oposto. A perfuração de petróleo em terras federais tem aumentado constantemente sob Obama. O que tem diminuído é de perfuração no mar.
Mas isso é uma reação ao desastre da British Petroleum no Golfo do México. Logo depois do desastre, a reação imediata foi a recuar. Mesmo as empresas de energia recuaram da perfuração em águas profundas. Os lobbies estão apresentando estes dados em conjundo — mas se você olhar para a perfuração em terra, ela só aumenta. Há muito poucas restrições. Essas tendências são muito perigosas, e você pode prever que tipo de mundo haverá para os seus netos.