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sábado, 24 de novembro de 2018

O Partido Comunista do Brasil em 1968


Augusto C. Buonicore Publicado em 23.11.2018
O ano de 1968 foi marcado pela primeira grande crise do regime militar. Acontecimentos como esse impactam fortemente os partidos políticos, especialmente os que procuram representar os interesses nacionais e populares. Este artigo tratará da atuação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) naquela rica conjuntura. A história desta organização continua sendo um dos buracos da historiografia da esquerda brasileira, apesar dos avanços ocorridos nestes últimos anos.



Leiam também o artigo PCdoB e o Movimento Estudantil em 1968.
O PC do Brasil, reorganizado em 1962, se caracterizou, num primeiro momento, pela tentativa de reafirmação da estratégia revolucionária como meio para se conquistar um novo regime político, democrático e popular. Esta foi a maneira encontrada para demarcar campo com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o maior partido da esquerda marxista do país à época.

Neste esforço de diferenciação, o PCdoB acabou, muitas vezes, caindo em posições táticas esquerdistas e sectárias diante das demais forças políticas e sociais nacional-populares. Foi apenas às vésperas do golpe militar de 1964 que esse rumo foi corrigido. Mas era tarde demais para que a autocrítica pudesse ser traduzida em políticas concretas. A contrarrevolução já estava nas ruas.
Apesar dos erros cometidos, a intentona de 1964 fez crescer o respeito pelo Partido Comunista do Brasil. Afinal, ele havia passado grande parte do seu tempo criticando aqueles que apregoavam “a revolução através das reformas” e defendiam o caráter democrático do capitalismo e das forças armadas. O golpe militar, no essencial, refutou todas essas teses.
O PC Brasileiro passou a viver uma grave crise interna. Importantes dirigentes e comitês partidários criticavam abertamente sua política, tachando-a de reformista. Estas mesmas acusações vinham sendo feitas pelos reorganizadores do PCdoB desde 1958. Por isso, foram os primeiros a se beneficiar dos contratempos vividos pelo partido comandado por Prestes.
Guilhardini
Entre 1964 e 1965 o Comitê dos Marítimos do PCB, dirigido por José Maria Cavalcante e Luís Guilhardini, integrou-se ao PCdoB. Um ato que se revestiu de grande valor simbólico, pois se tratava de uma base operária muito importante e com grande tradição de luta. Seus membros desempenhariam um papel inestimável no processo de expansão do Partido para vários estados brasileiros, especialmente no Nordeste. Nesta mesma época, dezenas de militantes trocaram o PCB pelo PCdoB. Esse fenômeno ocorreu no Ceará, Maranhão e em Minas Gerais.
Não somente membros do PCB vieram engrossar as fileiras do PCdoB. Nele integrar-se-iam vários militantes pertencentes às antigas Ligas Camponesas de Francisco Julião. Esse processo iniciara-se um pouco antes do golpe militar. Entre os nomes que ingressaram estavam o de Tarzan de Castro.
Em 1966 o pequeno e aguerrido PCdoB já estava organizado nacionalmente e em condições de realizar uma conferência nacional, a primeira depois de 1962. Neste conclave foi aprovado o documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. O objetivo central dos comunistas era construir uma tática adequada para o combate à ditadura militar recém-implantada. Apenas um programa revolucionário, que apontasse o objetivo final e os rumos mais gerais do movimento revolucionário, era insuficiente. Seria preciso encontrar as formas e os meios de aproximação dos objetivos estratégicos. Ou seja, era necessário construir uma tática adequada àquele momento histórico, marcado pela existência de uma ditadura militar antipopular e antinacional.
A resolução política da VI Conferência (1966) dizia que “estava colocada na ordem do dia a necessidade de organizar a mais ampla união patriótica que - sob o lema de independência, progresso e liberdade – pudesse aglutinar em um impetuoso movimento nacional as forças populares e as correntes democráticas”. Continuava o texto: “Qualquer que seja a filiação partidária, a tendência filosófica ou religiosa, a classe ou camada social a que pertençam, os verdadeiros patriotas têm o dever irrecusável de se unir para a ação comum contra os inimigos da democracia e da soberania nacional”.
O PCdoB defendia a derrubada revolucionária da ditadura militar e a implantação de “um governo democrático, representativo de todas as forças patrióticas, cuja primeira e grande atribuição seria convocar uma Assembleia Nacional Constituinte”. Por fim, apontava o caminho da “guerra popular” e a prioridade do trabalho no campo. Neste aspecto era possível constatar a forte influência da revolução chinesa e do pensamento de Mao Tse-Tung na elaboração partidária.
O Partido não era imune às pressões externas pelo desencadeamento imediato da luta armada e às influências das ideias foquistas, muito difundidas na América Latina. Durante os debates internos sobre os caminhos da revolução brasileira, surgiu um grupo intitulado Ala Vermelha (AV), criticando a aparente “inação” partidária diante da luta armada, já anunciada e desencadeada por alguns outros grupos de esquerda. Por este mesmo motivo, se desprendeu do PCdoB um pequeno grupo de militantes do Nordeste que fundaria o Partido Comunista Revolucionário (PCR). À frente das duas cisões estavam elementos provenientes das Ligas Camponesas que haviam feito recentemente cursos político-militares na China.
O que os dissidentes da Ala e do PCR não sabiam era que a direção do PCdoB havia iniciado os preparativos para montagem da guerrilha rural e o desencadeamento da guerra popular. Formara, inclusive, uma comissão militar – encabeçada por João Amazonas e Maurício Grabois – e, secretamente, deslocara militantes para o interior do país à procura de áreas adequadas à implantação do movimento guerrilheiro. Estavam lançando a semente da futura resistência armada no Araguaia, iniciada em abril de 1972.
Portanto, nesses anos, a direção do PCdoB foi obrigada a travar uma luta político-ideológica em duas frentes. De um lado, contra o chamado reformismo e, de outro, contra as concepções esquerdistas e militaristas, que negavam a política de frente única e pretendiam a imediata deflagração da luta armada nas cidades.
Às vésperas de seu congresso, ocorrido em 1967, a crise do PC Brasileiro atingiu seu auge. A direção perdeu votações nos comitês e conferências estaduais de São Paulo e da Guanabara. Os confrontos entre dirigentes em torno da linha política levaram à cisão e à formação de diversas organizações, como a Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Deste processo participaram dirigentes históricos como Carlos Marighella, Mário Alves, Jover Telles, Jacob Gorender, Joaquim Câmara Ferreira, Apolônio de Carvalho, Armando Frutuoso. Um grande número de lideranças jovens vinculadas ao movimento estudantil seguiu esses líderes.
Armando Frutuoso, dirigente do Comitê Estadual da Guanabara
Nesse momento parte do Comitê Estadual do PCB da Guanabara se integraria ao PCdoB. Assim, este Partido aumentaria significativamente sua influência num dos principais estados da Federação. Mais à frente analisaremos esse processo de incorporação.
Radicalizar ampliando e ampliar radicalizando
No mês de novembro de 1967, veio a público um alentado documento intitulado O Partido Comunista do Brasil na luta contra a ditadura militar. Suas páginas apontavam claramente os inimigos principais a serem derrotados: “O povo brasileiro, na luta por sua completa emancipação, defronta-se com diversos inimigos. Mas não pode atacar todos simultaneamente (...). Na presente situação, o inimigo principal a combater são o imperialismo norte-americano e seus sustentáculos internos, que encontram na ditadura sua expressão política”.
Essa linha estratégica determinaria a posição dos comunistas diante das demais forças oposicionistas, inclusive burguesas. Em 1966 formou-se a Frente Ampla, uma articulação entre diversas personalidades políticas que haviam se destacado na cena política durante o regime deposto pelo golpe militar. Ela unia pessoas de trajetórias distintas – e mesmo contrapostas –, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Contudo, certas correntes de esquerda buscavam restringir a frente única contra a ditadura apenas aos setores operários e populares. Tal postura levava-as a hostilizar abertamente a Frente Ampla, acusando-a de servir ao regime discricionário. Ao contrário da extrema-esquerda, o PCdoB considerava positiva a formação daquela articulação política oposicionista, apesar de suas limitações. “A Frente ampla, afirmava a resolução de 1967, é uma tentativa de unir forças para modificar o sistema ditatorial vigente em benefício das correntes políticas alijadas do poder com o golpe militar”. Ela visava à “realização de eleições diretas, através das quais pretendem chegar ao poder”.
Assim, “o MDB e a Frente Ampla desempenhariam determinado papel na luta contra a ditadura”, contribuindo objetivamente para o seu maior isolamento. As forças populares e operárias deveriam, sempre que possível, aliarem-se à oposição liberal-burguesa sem, no entanto, se subornarem política e ideologicamente a ela. O PCdoB criticou aqueles que “confundiam amplitude da frente única com direção burguesa”. Para ele a direção do processo revolucionário deveria estar nas mãos do proletariado, pois a burguesia tendia a conciliar-se “com os inimigos do povo, capitular e conduzir este movimento (revolucionário) ao fracasso”.
Logo após as grandes manifestações de protestos contra a morte de Edson Luís em 28 de março de 1968, a ditadura fechou a Frente Ampla e proibiu que a imprensa vinculasse qualquer informação sobre os políticos ligados a ela, especialmente os que haviam sido banidos. Ironicamente, ela era acusada de fomentar as manifestações de rua e a radicalização política. Alguns meses depois, Lacerda também seria cassado e detido.
O PCdoB buscava, na medida de suas forças, impulsionar a oposição liberal-burguesa e os movimentos sociais. Ao mesmo tempo, secretamente, preparava-se para a “guerra popular” que deveria ser desencadeada no campo brasileiro. “A tática do Partido”, afirmava, “exige que sua atividade se realize fundamentalmente no interior do país (...) (pois) os homens do campo constituem a força básica da revolução, mas também porque o interior é o cenário mais favorável à luta armada”. Desde 1966, após a VI Conferência, começou um fluxo crescente de militantes em direção às zonas rurais. Esta tendência se acentuaria ainda mais depois da promulgação do AI-5 em dezembro de 1969.
Num documento divulgado em julho daquele ano, o PCdoB explicaria os pressupostos de sua tática revolucionária. Afirmava ele: “é indispensável ampliar sempre o movimento de massas e ao mesmo tempo radicalizá-lo (...). Há os que propugnam apenas a radicalização, sem ter em conta a amplitude do movimento (...). E há os que só pensam na amplitude sem considerar a necessidade de elevar o nível das lutas. Ambas as tendências são profundamente prejudiciais. Uma conduz ao isolamento e a outra à capitulação”. Esta política seria magistralmente sintetizada na fórmula dialética: “ampliar radicalizando e radicalizar ampliando”.
O PCdoB diante da cisão do Movimento Comunista
No grande confronto político e ideológico que dividiu o movimento comunista internacional no início da década de 1960, o PCdoB se alinhou ao lado da China contra as posições soviéticas. Desde então, a postura assumida diante do conflito sino-soviético passou a nortear as relações entre os partidos comunistas. Neste assunto não poderia haver nenhuma vacilação e nem espaço para posições intermediárias ou conciliadoras. Abriu-se o caminho para o fortalecimento de posições sectárias entre as organizações revolucionárias e isso trouxe grandes prejuízos ao movimento comunista internacional.
Nos primeiros anos de sua reorganização, a revolução cubana foi uma forte referência para os dirigentes do PCdoB. Mas após 1964 houve uma reaproximação entre Cuba e a URSS. O novo arranjo de forças mundial levou a ilha revolucionária a se afastar rapidamente da China e dos partidos a ela vinculados, inclusive o PCdoB.
As relações entre Cuba e China se tornaram cada vez menos amistosas. Em 1966, Fidel Castro acusou Mao Tse-Tung de tentar pressioná-lo politicamente, através da diminuição da exportação de arroz para a ilha. Os chineses, por sua vez, argumentaram que a redução se devia a catástrofes naturais que atingiram a agricultura chinesa. O PCdoB e os partidos denominados marxista-leninistas defenderiam a posição oficial do governo chinês.
Por esse motivo, os partidos pró-China – e críticos a URSS – não foram convidados para a Conferência Tri-Continental (1966) e nem para o Congresso da Organização Latino-Americana de Solidariedade, OLAS (1967). Em março de 1966, o PCdoB aprovou uma carta aberta a Fidel Castro, criticando as posições assumidas por Cuba em relação a China socialista. Selava-se, assim, o distanciamento entre os dois partidos comunistas, que duraria mais de 20 anos.
Os dirigentes do PCdoB passaram a desenvolver uma crítica sistemática à concepção da revolução latino-americana emanada de Cuba. Assim os comunistas do Brasil resumiriam essa teoria: “Apregoa que a revolução nos países (latino-americanos) é socialista e que se travará, como processo único, em todo o Continente. Considera que é desnecessário a existência do partido revolucionário da classe operária (...). Do ponto de vista militar, defende a teoria do foco (...). Segundo esta ideia, é suficiente um punhado de elementos corajosos e bem armados, em lugares inacessíveis, para levar adiante a revolução”.
Os teóricos do foco menosprezariam o fato de que “esses grupos (armados) deveriam estar profundamente identificados com as aspirações populares, em particular da região onde operam, necessitam atuar em função dos interesses das massas, contribuir para despertar sua consciência política e ajudar na sua organização”. Essa, portanto, seria a diferença fundamental entre o foquismo e a teoria da guerra popular prolongada, defendida pelos chineses.
O PC do Brasil critica a tese de que a revolução em toda a América Latina já seria socialista: “Quando se coloca, na atual etapa da luta, o socialismo como objetivo imediato, na prática, restringe-se o campo das forças revolucionárias e amplia-se o do imperialismo”. O próprio exemplo cubano demonstraria que “não foi com bandeiras socialistas que ali se iniciou e se tornou vitoriosa a revolução”.  O partido defendia a tese da revolução ininterrupta por etapas.
A teoria da revolução única continental, para ele, seria estranha à tradição marxista-leninista: “O problema nacional é um dos fatores básicos da luta emancipadora nas nações oprimidas pelo imperialismo. Todo país tem suas peculiaridades, sua formação histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes. Todo povo terá que encontrar as formas específicas de abordar a revolução”. Por último, e não menos importante, critica duramente a subestimação dos foquistas em relação ao papel do Partido de vanguarda (marxista-leninista) nas revoluções latino-americanas.
Os dirigentes do PCdoB desenvolveriam suas críticas ao foquismo e apresentariam suas teses sobre os caminhos da revolução brasileira, fundamentalmente, em dois documentos: Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina (maio/1968) e Guerra Popular – Caminho da luta armada no Brasil (janeiro/1969). No Brasil as teses foquistas influenciariam fortemente a ALN, a VPR, o MR-8 e, em menor medida, o PCBR.
Sob o signo de Mao Tse-Tung
Nesse período vivíamos o auge da influência das teses chinesas no interior do PCdoB. Mao Tse-Tung era considerado o “maior marxista-leninista da era presente” e a “grande revolução cultural proletária” (1966-1976) tida como uma etapa superior da luta pelo socialismo na China e no mundo.
Em fevereiro de 1968, o jornal A Classe Operária, órgão oficial do PCdoB, publicou o artigo Grandes Êxitos da Revolução Cultural. Seu autor, Pedro Pomar, era um dos principais dirigentes partidários. “A revolução cultural proletária”, escreveu ele, “veio demonstrar a importância histórico-mundial do pensamento de Mao Tse-Tung, como o marxismo-leninismo do nosso tempo (...). Os comunistas brasileiros (...) erguem, cada vez mais alto, a bandeira vermelha do pensamento Mao Tse-Tung, que descortina para o povo o caminho da revolução e da guerra revolucionária de libertação”.
O Partido editaria o livro Viva a vitória da Guerra Popular! Lin Piao, seu autor, era um dos principais incentivadores da Revolução Cultural Proletária e propagandista do pensamento de Mao Tse-Tung. Nesta obra, apresentava, de maneira sistemática, a teoria maoísta da Guerra Popular prolongada. Sua originalidade era advogar como centro da estratégia revolucionária o cerco das cidades pelo campo. Considerava este esquema, utilizado vitoriosamente na China, como uma fórmula geral (universal) para todas as revoluções na periferia do capitalismo, seja na Ásia, África ou América Latina. Este modelo revolucionário influenciou a elaboração estratégica do PCdoB naqueles anos.
As formulações chinesas, como as teorias foquistas, tendiam a subestimar as particularidades nacionais dos países capitalistas periféricos. Ambas acabavam colocando um sinal de igualdade entre formações econômicas e sociais tão diferentes como as existentes no Vietnã, em Angola, Brasil e Argentina. A aplicação mecânica desses modelos levaria à derrota as forças revolucionárias em várias partes do mundo.
Dois acontecimentos internacionais iriam azedar ainda mais as relações entre URSS e China. No mês de agosto de 1968, tropas soviéticas ocuparam a Tchecoslováquia e interromperam o processo chamado de “Primavera de Praga” – uma tímida tentativa de liberalizar o regime e de se aproximar do Ocidente capitalista. Os comunistas tchecos diziam estar implantando um “socialismo com face humana”. Os soviéticos viram essas medidas como perigosas ameaças à sua hegemonia no Leste europeu.
O PC da China e o Partido do Trabalho da Albânia (PTA), mesmo não tendo nenhuma admiração pelos reformistas tchecos, condenaram a invasão soviética. Numa recepção ao embaixador vietnamita, o primeiro-ministro chinês Chu En-Lai utilizou o controverso – e errôneo – termo “social-imperialismo” para se referir à política externa soviética. A Albânia, por sua vez, se retirou do Pacto de Varsóvia. No mesmo diapasão, o PCdoB lançou uma dura nota intitulada Agressão criminosa. “Com esta atitude injustificável”, dizia ela, “os revisionistas mostraram sua verdadeira fisionomia. Não passam de imperialistas e fascistas mascarados como defensores do socialismo”. Um claro exagero.
O conflito entre a URSS e a China atingiu o seu ápice no início de 1969, quando chegaram a ocorrer conflitos armados na fronteira desses dois países socialistas. Na contenda os russos tomaram uma pequena ilha chinesa no rio Ussuri. Excepcionalmente, estabeleceu-se um aliança tácita entre a URSS e os EUA. Mao Tse-Tung chegou a temer por um ataque nuclear soviético, com consentimento estadunidense.
A crítica chinesa ao suposto revisionismo do PCUS se transformou em antissovietismo. O “social-imperialismo” passou a ser considerado o principal inimigo dos povos, pois estava numa fase de ascensão. O imperialismo estadunidense, por sua vez, não passaria de um “tigre de papel”, decadente. Um pouco mais tarde, isso criaria as condições para uma aproximação entre China e EUA. O presidente Nixon visitaria Pequim em 1972.
PCdoB e PCBR: a luta pela Guanabara
Como vimos anteriormente,o PCB entrou numa profunda crise após o golpe militar de 1964. Contudo, seria apenas em 1967 que ele terminaria em nova cisão. Vários dirigentes históricos seriam expulsos e caminhariam para construir suas próprias organizações revolucionárias ou aderir às já existentes.
Em outubro, organizou-se uma reunião nacional da autodenominada Corrente Revolucionária. Ela inicialmente visava a articular a participação dos dissidentes no 6º Congresso do PCB. Prestes conseguiu impedir que isso ocorresse e expulsou sumariamente os descontentes do partido.
No transcorrer desse processo, em fevereiro de 1968, reuniram-se clandestinamente vários dirigentes da Corrente Revolucionária – Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e Mário Alves – e do PCdoB – João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar. Na pauta constava a discussão sobre os problemas da tática e da estratégia revolucionária e a possível unificação dos dois agrupamentos. A reunião foi cordial, mas não chegaram a um acordo.
(Foto: Jover Telles)
Entre os dissidentes da Guanabara, se fortaleceu a posição de que se deveria caminhar para a incorporação ao PC do Brasil. Entretanto, ao contrário do que pretendiam, a Conferência Nacional da Corrente Revolucionária resolveu pela formação de um outro partido: o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Descontente com essa decisão, a autodenominada Maioria Revolucionária do Comitê Regional da Guanabara rompeu com os organizadores do novo partido e aprovou o documento Um reencontro histórico. Nele é proposta a incorporação dos seus militantes ao PCdoB. À frente deste processo estavam Manoel Jover Telles, Armando Frutuoso e Lincoln Bicalho Roque. Alguns anos mais tarde, os dois últimos seriam assassinados pela ditadura militar e o primeiro entraria para a história como traidor.
Ainda hoje, existe uma polêmica em relação a quantas pessoas teriam, de fato, ficado com o PCdoB. O insuspeito Apolônio de Carvalho, fundador do PCBR, afirmou que: “mais de 80% dos militantes – com destaque para os setores operários e populares – optaram pela unificação com o PCdoB”. Isso, com certeza, representou um grande reforço partidário num dos mais importantes estados da Federação.
Em julho o Comitê Central do PCdoB divulgou sua carta aos comunistas divergentes do PC Brasileiro no estado da Guanabara. Ela afirmava: “sua adesão ao PC do Brasil é, em verdade, um reencontro entre velhos camaradas. Durante alguns anos, as fileiras partidárias estiveram desfalcadas de inúmeros elementos da Guanabara que, por equívoco, se mantiveram no PC Brasileiro, mas que, posteriormente, tiveram capacidade de se rebelar contra o revisionismo. Agora é o momento de ocupar novamente o honroso posto de combate nas hostes do PC do Brasil”.
O documento criticava as posições assumidas pelo PCBR em seu congresso de fundação: “A linha (...) exposta em seu documento básico, é de equidistância entre o PCUS, que lidera o revisionismo em todo o mundo, e o PC da China, que defende consequentemente os princípios revolucionários do marxismo-leninismo. Esta ‘independência’ não passa de terceira posição, de atitude centrista tão prejudicial quanto à dos revisionistas”. A direção do PCBR, por sua vez, responderia com o documento Reencontro histórico ou mera mistificação. O linguajar duro – e deselegante – desses documentos partidários reflete o espírito da época.
O AI-5 – Desce o pano
O ano de 1968 chegaria ao fim com a decretação do Ato Institucional nº 5 em 13 de dezembro – que representaria um “golpe dentro do golpe”. A ditadura entraria então numa nova fase, mais agressiva. O regime militar foi superando a aguda crise vivida naquele tumultuado ano. Superou através do recrudescimento da violência policial e, também, pelo rápido crescimento econômico. Entramos, a partir de 1969, na chamada era do “milagre econômico” e do “nacionalismo autoritário”.
A esquerda revolucionária, inclusive o PCdoB, teve muita dificuldade para compreender o novo momento histórico. Tendeu, em geral, a subestimar a força da ditadura militar e lançou-se numa luta heroica, mas desigual. A maioria de suas organizações acabou sendo destroçada pela repressão. O PCdoB foi um dos poucos que conseguiu sobreviver àqueles anos de chumbo.

* Este texto foi publicado originalmente no Portal Vermelho em setembro de 2008.
** Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia sobre o PCdoB em 1968 
BUONICORE, Augusto. O PCdoB e o movimento estudantil em 1968. In Portal Grabois
CARVALHO, Apolônio. Vale a pena sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
COELHO, Maria Francisca Pinheiro. José Genoíno: escolhas políticas. São Paulo: Centauro, 2007.
FREITAS, Mariano. Nós, os estudantes. Fortaleza:Livro técnico, 2002.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1987.
PARANÁ, Denise. Entre o sonho e o poder: a trajetória da esquerda brasileira através das memórias de José Genoíno. São Paulo: Geração Editorial, 2006.
SANTOS, Andréa Cristiana. Ação entre amigos: história da militância do PCdoB em Salvador (1965-1973). Dissertação de Mestrado de História Social. Salvador: UFBA. 2004.
SANTOS, Nilton. História da UNE. Vol. 1, depoimentos de ex-dirigentes. São Paulo: Livramento, 1980.

Documentos consultados
Maioria Revolucionária do Comitê Regional da Guanabara. Um reencontro histórico. O Isqueiro, edição especial, junho de 1968. Anexo BNM – AEL-IFCH/Unicamp.
PCBR. Um reencontro histórico ou simples mistificação. Mimeografado (1968). Anexo BNM – AEL-IFCH/Unicamp.
PCdoB. Agressão criminosa – declaração sobre a invasão da Tchecoslováquia. A Classe Operária, setembro de 1968.
____. Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina (maio/1968). In:Guerra Popular: Caminho da luta armada no Brasil. Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
____. Ampliação e radicalização (julho/1968). In:Política e Revolucionarização do Partido. Lisboa: Maria da Fonte, 1977.
____. Apoiar decididamente a grande revolução cultural proletária (abril/1967). In:A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil. Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
____. Cerrar fileiras em torno do Partido Comunista do Brasil (junho/1968). In:Política e Revolucionarização do Partido. Lisboa: Maria da Fonte, 1977.
____. Guerra Popular: Caminho da luta armada no Brasil (janeiro/1969). In:Guerra Popular: Caminho da luta armada no Brasil. Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
____. O marxismo-leninismo triunfará na América Latina – Carta aberta a Fidel Castro (março/1966). In:A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil. Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
____. O Partido Comunista do Brasil na luta contra a ditadura militar (novembro/1967). In:Guerra Popular: Caminho da luta armada no Brasil. Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
____. A política estudantil do Partido Comunista do Brasil. In:Política e revolucionarização do Partido. Lisboa: Maria da Fonte, 1977.
____. União dos Brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. In:A linha política revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L). Lisboa: Maria da Fonte, 1974.
POMAR, Pedro. Grandes Êxitos da Revolução Cultural. A Classe Operária, fevereiro de 1968.
ROCHA, Ronald; MONTEIRO, João de Paula; KOBASCHI, Nair. Contribuição ao XXX Congresso da UNE: Combate intransigente à ditadura e ao imperialismo.Mimeografado.Anexo BNM – AEL-IFCH-Unicamp.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Losurdo: "A Geopolítica da internet"




O Google desafia o governo da República Popular da China: a grande imprensa de "informação" aplaudiu sem reservas o rigor moral e a coragem duma multinacional disposta a pagar caro em termos econômicos para não se submeter às imposições da censura e reafirmar o direito humano à livre informação. Na verdade, embora de modo muito reduzido, também se fizeram ouvir algumas vozes apelando a uma maior prudência: teria havido apenas nobres motivações para explicar a posição do Google ou também haveria considerações de outra natureza? O grandioso gesto podia ser apenas um golpe de teatro numa habilidosa campanha de relações públicas: virar as costas desassombradamente a um mercado, embora prometedor, mas em que a concorrência local é feroz e conquistadora, pode vir a ser benéfico para a imagem e para os lucros da multinacional americana, abrindo-lhe o caminho para uma expansão noutros países e a nível mundial… A geopolítica, pelo contrário, continua a estar ausente, apesar de, para um observador mais atento, ser ela o autêntico protagonista.

Para o verificarmos, demos um salto atrás de cerca de sessenta anos e concentremo-nos num incidente, reconstruído aqui a partir dum recente artigo de Alessandra Farkas no Corriere della Sera.

“Uma misteriosa epidemia de loucura coletiva”
A 16 de Agosto de 1951, fenômenos estranhos e inquietantes vieram perturbar Pont-Saint-Esprit, "uma aldeia tranquila e pitoresca" situada "a sudeste da França". Sim, "a região foi sacudida por uma misteriosa epidemia de loucura coletiva. Morreram pelo menos cinco pessoas, dezenas foram parar ao hospício, centenas mostraram sinais de delírio e de alucinações […...] Muitas delas foram parar ao hospital com uma camisa-de-forças". O mistério, que durante muito tempo rodeou este ataque de "loucura coletiva" já se dissipou: tratou-se duma "experiência efetuada pela CIA, com a Divisão Especial de Operações (SOD), a unidade secreta do exército dos EUA de Fort Detrick em Maryland"; os agentes da CIA «contaminaram com LSD o pão vendido nas padarias da região», provocando os resultados que descrevemos acima. Estamos no início da guerra-fria: claro que os Estados Unidos eram aliados da França, mas foi exatamente por isso que esta se prestou às experiências de guerra psicológica que obviamente tinham como objetivo o "campo socialista" (e a revolução anticolonialista) mas dificilmente podiam ser efetuadas nos países situados por detrás da cortina de ferro.

Então a pergunta que se põe é esta: a excitação das massas só podia ser provocada através da via farmacológica? Os acontecimentos que, no final da guerra-fria, varreram o «campo socialista», de resto amplamente desacreditado e enfraquecido, dão que pensar. A 17 de Novembro de 1989, a «revolução de veludo» triunfava em Praga, com uma palavra de ordem que se pretendia inspirada em Gandhi: «Amor e Verdade». Na realidade – confessa hoje o International Herald Tribune – o papel decisivo foi desempenhado pela difusão duma notícia falsa segundo a qual um estudante tinha sido "brutalmente assassinado" pela polícia. Se, no caso da Checoslováquia foram suficientes duas "pequenas" manipulações (por um lado a transfiguração dos líderes da revolta em seguidores devotos de Ghandi no culto da verdade e da não-violência, por outro a produção inteligente e a difusão de «notícias» destinadas a suscitar a indignação das massas), a promoção da revolta que derrubou a ditadura de Ceausescu na Romênia, semanas depois foi mais complicada. A encenação, nas suas linhas gerais, não varia: tratou-se sempre de desacreditar e até mesmo de diabolizar o poder a derrubar, para o transformar num alvo fácil da indignação das massas alimentada sabiamente e sem sombra de escrúpulos. Pois é, mas como atingir esse objetivo na situação concreta da Romênia no final de 1989? A partir de certa altura, os meios de comunicação ocidentais começaram a difundir maciçamente na população romena, e a bombardeá-la mesmo, com informações e imagens do «genocídio» perpetrado em Timisoara pela polícia de Ceausescu. O que é que aconteceu na realidade? Passemos a palavra a um prestigiado filósofo (Giorgio Agamben) que não é propriamente um crítico da ideologia dominante mas que sintetizou de modo magistral a questão que estamos a tratar:

"Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres acabados de enterrar ou alinhados nas mesas das morgues foram desenterrados à pressa e torturados para, em frente das câmaras, simular o genocídio que devia legitimar o novo regime. O que o mundo inteiro teve debaixo dos olhos em direto nos ecrãs da televisão, como sendo verdade era a não verdade absoluta; e embora a falsificação por vezes fosse evidente, era de qualquer modo autenticada como uma verdade pelo sistema mundial dos meios de comunicação, para que se tornasse claro que a verdade passara a ser apenas um momento do movimento necessário da falsidade".

O fim da guerra-fria não era o fim do Grande jogo. Para os EUA, não bastava liquidar o "campo socialista" e desmembrar a União Soviética; também era preciso promover e impor na Europa oriental a ascensão ao poder de líderes completamente ligados a Washington. Na Geórgia, a certa altura até Edouard Chevardnadze (até então estimado e apreciado no ocidente pelo papel "democrático" que tinha desempenhado ao lado de Gorbatechev na dissolução do "campo socialista" e, posteriormente, ultrapassando o próprio Gorbatchev, na dissolução da União Soviética) se tornou num líder indesejável e a substituir.

Foi a tarefa confiada à famosa «revolução das rosas». Concentro-me nalguns dos seus momentos chave, servindo-me da reconstrução aparecida numa reputada revista francesa de geopolítica. Televisões georgianas nas mãos da oposição e dos meios de comunicação ocidentais empenharam-se numa campanha conjunta e infindável:

"A corrupção do regime é apresentada sob todos os seus aspectos. Não hesitando o recurso à mentira em caso de necessidade. Em meados de Novembro, revistas alemãs afirmam que pessoas próximas de M. Chevardnadze lhe compraram uma luxuosa moradia na cidade termal de Baden-Baden, no sul da Alemanha. A Bild afirma que a residência está avaliada em 11 milhões de euros. A informação não é confirmada. Não interessa […...] Uma das nossas fontes informar-nos-á posteriormente que a foto apresentada foi recolhida ao acaso na Internet".

Depois da proclamação dos resultados eleitorais que confirmam a vitória de Chevardnadze e que são acusados de fraudulentos pela oposição, esta decide organizar uma marcha em direção a Tbilissi, que deveria confirmar "a chegada simbólica e pacífica à capital de todo o país em fúria». Embora convocados em todos os cantos do país com grande apoio de meios propagandistas e financeiros, nesse dia apareceram para a marcha entre 5000 a 10.000 pessoas: «para a Geórgia, isso não era nada"! Mas, graças a uma encenação sofisticada e altamente profissional, a cadeia de televisão mais vista do país consegue transmitir uma mensagem totalmente diferente:

"A imagem está aqui, poderosa, a de todo um povo que segue o seu futuro presidente". A partir daí, as autoridades políticas são consideradas ilegítimas, o país fica desorientado e confuso, e a oposição mais arrogante e mais agressiva do que nunca, tanto mais que os meios de comunicação internacionais e as chancelarias estrangeiras a encorajam e a protegem. O golpe de estado está maduro, vai levar ao poder Mikhaïl Saakashvili, que fez os seus estudos nos EUA, fala um inglês perfeito e está em posição de compreender rapidamente as ordens dos seus superiores.

As «guerras na Internet»
Até agora temos visto a transformação da «não verdade absoluta» em «verdade verdadeira» e incontestável passar em primeiro lugar nos «ecrãs da televisão» enquanto que o papel da Internet era secundário e negligenciável. Mas é interessante assinalar que, a partir do fim dos anos 90, no International Herald Tribune um jornalista (Bob Schmitt) observava: "As novas tecnologias alteraram a política internacional". Aqueles que estavam em posição de as controlar viam aumentar desmesuradamente o seu poder e a sua capacidade em desestabilizar países mais fracos e tecnologicamente menos avançados.

Com efeito, com a chegada e a generalização da Internet, do Facebook, do Twitter, apareceu uma nova arma, susceptível de modificar profundamente as relações de força no pano internacional. Isto já não é um segredo para ninguém. Atualmente, nos EUA, um rei da sátira televisiva como Jon Stewart proclama: "Mas porque é que estamos a enviar exércitos se é mais fácil deitar abaixo uma ditadura via Internet do que comprar um par de sapatos?" O significado militar das novas tecnologias está aqui explicitamente sublinhado e reivindicado: sem tocar no direito de Washington a julgar e a condenar de modo soberano, a partir de agora é possível recorrer a armas novas e mais sofisticadas para punir os culpados e os rebeldes.

Mas a Internet não é ela mesma a expressão da liberdade de expressão? Os que argumentam isto são só os menos dotados (e os menos escrupulosos). Na realidade – reconhece Douglas Paal, ex-colaborador de Reagan e de Bush sénior – a Internet é atualmente "gerada por uma ONG que não passa de uma emanação do Departamento do Comércio dos EUA". Mas trata-se apenas de comércio? O semanário alemão Die Zeit pede esclarecimentos a James Bamford, um dos maiores especialistas sobre os serviços secretos americanos: "Os chineses também receiam que empresas americanas como o Google sejam em última análise instrumentos dos serviços secretos americanos em território chinês. Será isso uma atitude paranoica?" "De modo nenhum» é a resposta imediata. Pelo contrário – acrescenta o especialista – até «organizações e instituições estrangeiras estão infiltradas» pelos serviços secretos americanos, que estão sempre em condições de interceptar comunicações telefônicas em todos os cantos do planeta e devem ser considerados como «os maiores piratas informáticos do mundo".

A partir da agora – afirmam ainda no Die Zeit dois jornalistas alemães – não há quaisquer dúvidas:

«Os grandes grupos Internet tornaram-se num instrumento da geopolítica EUA. Anteriormente, eram necessárias laboriosas operações secretas para apoiar movimentos políticos em países longínquos. Atualmente basta muitas vezes um pouco de técnica da comunicação manobrada a partir do ocidente […] O serviço secreto tecnológico dos EUA, a National Security Agency, está em vias de montar uma organização totalmente nova para as guerras na Internet».

À luz de tudo isto, convém reler certos acontecimentos recentes de explicação difícil. Em Julho de 2009 ocorreram incidentes sangrentos em Urumqi e em Xinjiang, uma região da China habitada sobretudo por ouigours. São explicados pela discriminação e pela opressão à custa de minorias étnicas e religiosas? Não parece muito plausível uma abordagem desse tipo, pelo menos a julgar pelo que refere o correspondente de Pequim de La Stampa (Francesco Sisci):

"Numerosos hans de Urumqi queixam-se dos privilégios de que os ouigours desfrutam. De facto, estes, enquanto minoria nacional muçulmana, têm condições de trabalho e de vida muito melhores que os seus colegas hans, em igualdade de situação. Os ouigours, no seu escritório, têm autorização para suspender o seu trabalho várias vezes por dia para efectuar as cinco orações muçulmanas diárias tradicionais [...…] Além disso, podem não trabalhar à sexta-feira, dia santo muçulmano. Em teoria, deviam compensar ao domingo. Mas ao domingo os escritórios estão fechados […] Um outro ponto doloroso para os hans, submetidos à dura política de unificação familiar que continua a impor um filho único, é que os ouigours podem ter dois ou três filhos. E, enquanto muçulmanos, têm subsídios para além do salário dado que, como não podem comer carne de porco, têm que recorrer ao carneiro que é mais caro".

Isto não bate certo com a acusação feita pela propaganda ocidental de que o governo de Pequim quer eliminar a identidade nacional e religiosa dos ouigours. Então, como é?

Reflictamos sobre a dinâmica dos incidentes. Numa cidade do litoral chinês onde, apesar das diferentes tradições culturais e religiosas pré-existentes, os hans e os ouigours trabalham lado a lado, espalha-se de repente o boato segundo o qual uma rapariga han foi violada por operários ouigours; daí ocorrem incidentes durante os quais são mortos dois ouigours. O boato que provocou essa tragédia era falso mas eis que logo a seguir se espalha um segundo boato ainda mais grave e ainda mais funesto: a Internet difunde na sua rede a notícia segundo a qual na cidade do litoral chinês teriam sido mortos centenas de ouigours, massacrados pelos hans sob a indiferença e até mesmo a complacência da polícia. Resultado: tumultos étnicos no Xinjiang, que provocam a morte de quase 200 pessoas, desta vez quase todas hans.

Pois bem, estaremos na presença duma intriga infeliz e casual de circunstâncias ou da difusão de boatos falsos e tendenciosos com vista ao resultado que se constatou efetivamente na sua sequência? Volta assim à nossa memória a "experiência feita pela CIA" no verão de 1951, que provocou "uma misteriosa epidemia de loucura coletiva" na "pitoresca e tranquila aldeia" de Pont-Saint-Esprit. E de novo nos vemos obrigados a fazer a pergunta inicial: a "loucura coletiva" pode ser produzida apenas por via farmacológica ou pode ser hoje também o resultado do recurso a "novas tecnologias" da comunicação de massas?

Quem são os “ciberidiotas?
Uma coisa é certa: aqueles que são os alvos das «guerras na Internet» não ficam de braços caídos: como em todas as guerras os fracos procuram compensar a sua desvantagem aprendendo com os mais fortes. E eis que esses gritam com escândalo: "No Líbano” – podemos ler no Corriere della Sera de 20 de Março – «aqueles que dominam os meios de comunicação noticiosos e as redes sociais não são as forças políticas pró-ocidentais que apoiam o governo de Saad Hariri, mas os ‘Hezbollah". Esta observação origina um suspiro de desânimo: ah como seria bom se, como aconteceu com a bomba atômica e com as armas (propriamente ditas) mais sofisticadas, e também com as «novas tecnologias» e as novas armas da informação e a desinformação de massas, fossem os países que infligem um martírio interminável ao povo palestino e que querem continuar a exercer uma ditadura terrorista no Médio Oriente, a deter o monopólio! O facto é – lamenta-se Moises Naïm, director da «Política Externa« – que os EUA, Israel e o ocidente já não lidam com os "ciberidiotas de antigamente". Estes "contra-atacam com as mesmas armas, exercem a contra-informação, envenenam os poços": uma verdadeira tragédia do ponto de vista dos paladinos da "liberdade de informação" e do "pluralismo".

Infelizmente, os estrategas e os ideólogos do Pentágono e do Departamento de Estado ainda podem encontrar atualmente alguns motivos sólidos de consolação: em vez de estarem dispersos, os ciberidiotas mostram-se mais vivos do que nunca à "esquerda": estão empenhados em apresentar as manobras turvas do Google como o desafio lançado pelo David da liberdade e da verdade contra o Golias da autocracia e da censura!

Textos citados:
• Thomas FISCHERMANN, encontro com James BAMFORD, “Passen Sie auf, was Sie tippen”, in Die Zeit de 18 Fevereiro 2010, pp. 20-21.
• Alessandra FARKAS, “La Cia drogò il pane dei francesi. Svelato il mistero delle baguette che fecero ammattire un paese nel ‘51”, (A CIA drogou o pão dos franceses. O mistério das baguetes que enlouqueceram uma aldeia em 1951), in Corriere della Sera de 13 Março 2010, p. 25.
• Thomas FISCHERMANN, Götz HAMANN, “Angriff aus dem Cyberspace”, in Die Zeit de 18 Fevereiro 2010, pp. 19-21.
• Massimo GAGGI, “Un’illusione la democrazia via web. Estremisti e despoti sfruttano Internet” (Uma ilusão a democracia via Internet. Extrémistas e déspotas exploram a Internet), in Corriere della Sera de 20 Março 2010, p. 21.
• Domenico LOSURDO, “La non-violenza. Una storia fuori dal mito, Roma-Bari, Laterza”, 2010, cap. IX (para a Checoslováquia, a Roménia e para o quadro geral).
• Maurizio MOLINARI, encontro com Douglas PAAL, “Questo è l’inizio di uno scontro tra due civiltà” (Isto é um choque entre duas civilizações ), in La Stampa de 23 Janeiro 2010, p. 7.
Bob SCHMITT, The Internet and International Politics, in The International Herald Tribune de 2 Abril 1997, p. 7.
• Francesco SISCI, “Perché uno han non sposerà mai una uigura” (Porque é que un Han nunca casará com uma Ouigour), in La Stampa de 8 Julho 2009, p. 17.


por Domenico Losurdo, filósofo, Professor da Universidade de Urbino

Este texto foi publicado na revista Belfagor. Rassegna di varia umanità, dirigida por Carlo Ferdinando Russo, 31 Julho 2010, p. 489-494. Rome.

Tradução de Margarida Ferreira, em ODiaro.info