Cuba desenvolveu há sessenta anos uma medicina única no mundo, que alia a medicina moderna à medicina natural e tradicional. A ilha caribenha obtém hoje os melhores resultados do continente em matéria de saúde
Por Alves |
Por Anne Vigna e Gabriela Ordonez no Le Monde Diplomatique
Após o restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba, os Estados
Unidos não poderão mais ignorar que a ilha obteve durante os 52 anos de
isolamento diplomático e econômico resultados “espantosos” em matéria de
saúde. “Espantosos” porque o país, que não abriga nenhuma das grandes
indústrias farmacêuticas mundiais, obtém os melhores resultados do
continente americano em matéria de saúde: a expectativa de vida (76 anos
para os homens, 81 anos para as mulheres) é a melhor do continente e a
mortalidade infantil é a mais reduzida: 4,8 mortes para cada 1.000
nascimentos em Cuba, contra 12 no Brasil e 6 nos Estados Unidos.1
Durante uma visita a Havana em julho de 2014, Margaret Chan,
diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), se mostrou muito
impressionada pelas conquistas na área. “Desejamos ardentemente que
todos os habitantes do planeta possam ter acesso aos serviços médicos de
qualidade, como em Cuba”, declarou. E, com efeito, qual país pode se
gabar hoje de oferecer gratuitamente à sua população uma medicina
alopática, claro, mas também a opção “medicina natural e tradicional”? É
preciso reconhecer... nenhum... e sobretudo seu poderoso vizinho, que
nessa área fracassou tremendamente.
Então o que aconteceu para que Cuba provoque hoje as grandes potências
com resultados tão indecentes? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a
saúde e a educação são os dois objetivos principais da Revolução. Os
cubanos investiram os meios que tinham, mas fizeram isso de maneira
inteligente para alcançar esse objetivo custe o que custar. Che era
médico, Fidel Castro sempre foi apaixonado por medicina e, como veremos,
Raúl Castro é um fervoroso defensor da “medicina natural e
tradicional”. Cuba primeiro formou um número recorde de médicos,
enviados pelo mundo em missões, primeiro numa função humanitária e
depois por diversos anos em uma função econômica, para auxiliar as
deficiências dos sistemas de saúde. O Brasil, por exemplo, “emprega”
cerca de 10 mil médicos cubanos (dos 14 mil médicos do Programa Mais
Médicos) via Organização Pan-Americana da Saúde para oferecer um serviço
de saúde a uma população que até então estava privada dele, e onde os
médicos brasileiros não desejavam se estabelecer. Hoje o mundo descobre
surpreso que a maior brigada médica contra o vírus ebola na África é
cubana...
No entanto, o mundo ficaria ainda mais espantado se passeasse pelo
sistema de saúde cubano, em particular o formado há cerca de vinte anos,
reagrupado sob o termo de “medicina natural e tradicional”, ou MNT.
Mais uma vez, é preciso voltar no tempo para entender o que aconteceu.
Quando Cuba se tornou um parceiro do bloco comunista nos anos 1960, as
trocas se multiplicaram entre “países comunistas” em diversas áreas,
principalmente no que se refere às Forças Armadas e à saúde. Foi assim
que os cubanos aprenderam com os militares vietnamitas e chineses que a
acupuntura pode salvar quando não se tem mais nada à mão. “É sempre
surpreendente perceber que as experiências em matéria de saúde natural
foram levadas a sério nos hospitais militares em Cuba. É por isso que,
quando Raúl Castro se tornou presidente, ele oficializou a medicina
natural, pois conhece os resultados e avanços nessa área. Para nós, ter
um apoio no mais alto escalão do Estado sempre foi uma grande sorte”,
explica Concepción Campa, diretora do Instituto Finlay em Havana, o
maior instituto de vacinas da ilha e um dos maiores da América Latina.
Quem diz “vacinas” não pensa geralmente em “medicina natural”. No
entanto, o instituto realiza, paralelamente à sua produção de vacinas,
há cerca de quinze anos, experiências inéditas para tentar encontrar
soluções para patologias. Entre essas experiências, desenvolveu a
fitoterapia, a homeopatia e a macrobiótica. Foi assim que a organização,
que procurava desenvolver estudos sobre a alimentação no início dos
anos 2000, abriu suas portas para a associação italiana de macrobiótica
Un Punto Macrobiótico, de Mario Pianesi. Os italianos enviaram a Cuba
especialistas em macrobiótica e o Instituto Finlay realizou os testes
clínicos que depois iriam validar o método. Primeiro, trataram um grupo
de crianças autistas: ainda que a patologia não seja muito frequente em
Cuba, ela está cada vez mais ligada a uma má alimentação. “Os resultados
foram muito encorajadores para o autismo, então continuamos com um
grupo de crianças que sofria de doenças autoimunes crônicas”,
acrescentou a diretora. Foi esse grupo que encontramos em um sábado de
manhã para uma sessão de ioga: todas as oito crianças presentes têm
dores articulares agudas. Além da alimentação macrobiótica, a ioga faz
parte de sua terapia. Pais e crianças seguem o curso como fazem com a
macrobiótica. Christopher Hernandez Infante, de apenas 12 anos, sofre há
um ano de artrite crônica na perna. Sua mãe o levou a diversos
especialistas antes de se dirigir a Finlay. “Há alguns meses totalmente
sem açúcar, devo reconhecer que ele vai bem melhor. Ele tem bem menos
dor, consegue se mexer de novo, quase como antes”, conta sua mãe. A
traumatologista Santa Gomez, chefe do Serviço Nacional de Traumatologia
de Cuba, só conheceu a macrobiótica há cinco anos. Desde então, está
convencida da eficiência do método: “A alimentação é realmente a chave. A
maioria das crianças chega aqui mal alimentada, com uma alimentação
pobre demais ou rica demais. Com a dieta macrobiótica, conseguimos
reduzir sua dor e, depois, os remédios esteroides e citostáticos que
elas têm de tomar”, explica. O instituto recomenda a macrobiótica para
uma série de patologias crônicas, entre as quais as mais evidentes são a
diabetes, a hipertensão e a obesidade, mas também contra hepatite,
câncer, doenças renais e problemas dermatológicos. Como a política de
Cuba em matéria de saúde é pautada na prevenção das doenças, o instituto
organiza a cada mês cursos de descoberta da macrobiótica em um espaço
anexo. O método ainda é o dos italianos e o conceito parece, com efeito,
evidente: “Se melhoramos a alimentação, as chances de ficar doente se
reduzem amplamente”, explica Talaine González, nutricionista e
responsável pelos cursos.
É assim que a macrobiótica, englobada no conceito de “orientação
alimentar naturista”, faz parte dos dez métodos de medicina natural e
tradicional reconhecidos e praticados em Cuba. Ao lado das dietas
alimentares encontram-se a acupuntura e suas diferentes técnicas, a
fitoterapia, a apiterapia, quer dizer, a utilização dos produtos das
abelhas, a homeopatia, a terapia floral de Bach, os exercícios
terapêuticos tradicionais (o qi gong, o tai chi chuan, a ioga), a
hidrologia médica, ou seja, a utilização das águas minerais e da argila,
a talassoterapia (os benefícios do meio marinho) e, por fim, a terapia
de ozônio, ou ozonoterapia. Trata-se de terapias naturais que o resto do
mundo conhece mal ou pouco: algumas foram herdadas das tradições
asiáticas (acupuntura, qi gong etc.), outras vieram da Europa (florais
de Bach, homeopatia) e outras ainda se desenvolveram em Cuba, uma ilha
cujos habitantes viram que o mar, o sol, o lodo, a argila e as algas
poderiam ser terapêuticos (hidrologia, talassoterapia). “Desde 1995
temos em Cuba uma especialidade em medicina natural, mas também diplomas
para cada terapia. Por exemplo, um psiquiatra pode cursar uma formação
em ‘terapia de Bach’, ou um pediatra, um módulo de ‘homeopatia’. Agora
todos os estudantes de medicina recebem uma formação em MNT, pois para
nós não existe nenhum antagonismo entre MNT e a medicina moderna. As
duas se completam e uma é mais adaptada que a outra em função das
patologias e dos desejos do paciente. Alguns pacientes reclamam dos
métodos naturais; outros, por sua vez, não suportam as agulhas. Cabe a
nossos médicos se adaptarem”, conta Johan Pedromo, médico especialista
em MNT e responsável por esse setor no Ministério da Saúde em Havana.
Concretamente, a medicina natural está em todos os lugares e é acessível
a todos os cubanos: basta se dirigir a uma clínica de bairro para se
dar conta. No bairro de Alamar, a 10 quilômetros de Havana, o
consultório de medicina natural não fica mais vazio. Um médico
especialista recebe os pacientes em consulta, enquanto a enfermeira
administra os tratamentos. “Os cuidados são muito diferentes: esta manhã
recebi uma mulher muito deprimida, para quem administrei a terapia de
Bach. Na maior parte do tempo, porém, trato de dores com terapias
chinesas: acupuntura, ventosas, massagens. Sem essas terapias, seria
preciso administrar analgésicos”, explica a especialista Irma Plasencia
Fellové. Ao lado dos pacientes, um homem de 60 anos recebe esta manhã
sua terceira sessão de eletroacupuntura para uma inflamação no ombro:
“Já me tratei aqui diversas vezes e confesso que estava desconfiado no
começo se iria funcionar, mas, de fato, me faz bem”. A medicina natural
também é muito utilizada no hospital. O especialista em MNT Jorge Luis
Campistrous atende, em seu consultório no hospital universitário
Comandante Manuel Fajardo, em Havana, a consultas externas. Na verdade, a
medicina natural está presente em todos os serviços e em todos os
andares: desde as urgências até a geriatria. “Na semana passada, de 640
pacientes recebidos nas urgências, 240 foram tratados com medicina
natural, mas também 30% dos pacientes que estão em terapia intensiva,
32% em cirurgia, 50% que tiveram um infarto, e eu poderia continuar
falando sobre todos os serviços”, explica o médico. Além das terapias
naturais, o hospital utiliza produtos naturais fabricados em Cuba. Aí
também a lista é longa... Primeiro uma linha de produtos homeopáticos do
Instituto Finlay, óleos à base de ozônio e toda uma série de produtos à
base de plantas: para tratar a asma e os problemas respiratórios,
cuidar de micoses e feridas, contra a anemia, o colesterol, os problemas
de circulação etc. Alho, goiaba, laranja, xaropes de orégano ou Aloe
vera e os produtos das abelhas, como o própolis. Todos esses produtos
não dependem do Ministério da Saúde, e sim do da Agricultura. São
produzidos segundo regras estritas para obter uma eficiência máxima.
“Primeira regra: nenhum produto químico, tanto no cultivo quanto no
controle microbiológico. Aqui produzimos catorze plantas exclusivamente
para a medicina verde. Segunda regra: devemos respeitar o ciclo natural
das plantas. Por exemplo, a Aloe vera só pode ser colhida ao final de
dois anos na terra, para que a planta tenha todos os seus princípios
ativos”, explica Alberto Martinez, engenheiro agrícola na fazenda de
plantas medicinais UEB, em Jovellanos, na província de Santa Clara. A
alguns quilômetros dessa plantação, Isabel Maria Perez Vasquez,
professora da Universidade de Jovellanos, mostra o que resta da “unidade
agrobotânica experimental Ciro Redondo”, criada por Che no fim da
Revolução e a qual a universidade espera restaurar. “Che tinha entendido
a importância das plantas para o futuro. O objetivo da fazenda era
principalmente pesquisá-las para conhecer suas propriedades curativas.
Ele tinha enviado uma missão para buscar plantas na Amazônia brasileira,
principalmente a moringa, que o Instituto Finlay comercializa hoje como
complemento alimentar”, explica a professora de Economia. Concepción
Campa sorri diante dessa evocação de Che: “É verdade que a moringa é uma
planta excepcional e que Che nos deu um grande presente”. Suas folhas
são muito ricas em elementos nutritivos (vitaminas, minerais e
proteínas) e seus grãos purificam a água – dois aspectos fundamentais no
mundo atual. A medicina natural, que o Che vanguardista tinha imaginado
nos anos 1960, só conheceu um forte desenvolvimento em Cuba a partir do
“período especial”, os anos 1990 e o afundamento do bloco comunista,
uma época de penúria em Cuba, tanto em alimentos quanto em medicina. Em
2011, durante o sexto congresso do Partido Comunista Cubano, uma
diretiva indicava “dar a máxima atenção ao desenvolvimento da medicina
natural e tradicional”. “É a única que recebeu essa menção de ‘máxima
atenção’, o que dá uma ideia da importância desse tema para o governo.
Eu acho, porém, que seu desenvolvimento vai acontecer principalmente
graças à população. É uma tendência geral hoje procurar o natural. Eu
entendo que isso preocupe a indústria farmacêutica, pois é uma medicina
muito eficiente”, conclui com um sorriso Concepción Campa, ao mesmo
tempo que lembra que o desenvolvimento das vacinas homeopáticas foi
efetivamente uma má operação financeira para o Finlay, mas a saúde
contou mais do que o aspecto financeiro. Cuba não realizou estudos
econômicos sobre a medicina natural, mas parece evidente que seu custo é
bem menos elevado do que o da medicina dita moderna: um chá de alho
parece menos caro do que um medicamento. Para o doutor Johan Pedromo, é
evidente que essa medicina previne um dos problemas que teria um custo
para o sistema de saúde: “Tomem o exemplo do qi gong, uma ginástica
tradicional chinesa. Hoje sabemos que essa atividade melhora o estado
emocional, a coordenação e a estabilidade das pessoas idosas. Então, ao
praticá-lo vamos diminuir a taxa de suicídio e de depressão ligada à
velhice, mas vamos também melhorar a coordenação e o equilíbrio,
diminuir o risco de quedas e, por consequência, o número de fraturas da
bacia. Mais amplamente, é reconhecido atualmente que essas técnicas de
medicina natural melhoram a qualidade de vida dos pacientes. E isso não
tem preço!”. No mesmo bairro de Alamar, cerca de vinte pessoas idosas
praticam duas vezes por semana o qi gong. No final da prática, saúdam a
professora com um “saúde e vida, uma arma da Revolução”. Um dos
praticantes tem 88 anos... mas parece ter 70. E é fato: a saúde foi uma
arma tão eficaz da Revolução Cubana que o país deve hoje cuidar de uma
população idosa. Como em um país rico...
Nota:
1- Fonte: Estatísticas da Organização Mundial da Saúde e do Banco Mundial (2013).
Anne Vigna é jornalista e Gabriela Ordonez é acupunturista.
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