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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O bolchevismo como problema moral - György Lukács




Por György Lukács

O artigo "O bolchevismo como problema moral" foi publicado em dezembro de 1918 no
órgão do Círculo Galileu, Szabad Gondolat (Livre Pensamento). Como se sabe, Lukács
aderiu ao PC Húngaro poucos dias depois da aparição deste ensaio contra o bolchevismo.
Alguns militantes do Partido ficaram impressionados com essa reviravolta e com a rapidez
com que Bela Kun e a direção do PC Húngaro aceitaram o recém-chegado e entregaram
responsabilidades importantes ao "antibolchevique" da véspera.¹
Algumas semanas mais tarde, Lukács, "convertido" ao bolchevismo, escreve Tática e Ética,
que constitui sua resposta comunista a suas hesitações morais em Szabad Gondolat.
Como procuramos mostrar (Cap. I), "O bolchevismo como problema moral" constitui o
último ponto do dualismo neo-kantiano em Lukács, da aposição rígida e sem
compromissos entre o dever-ser e o ser. Trata-se de um escrito eminentemente
"transitório", que recusa o bolchevismo na medida em que é atraído por sua "força
fascinante", e que deve ser examinado sobretudo como etapa decisiva na evolução
ideológica de Lukács, mesmo se ele procura elaborar uma concepção política coerente e
autônoma.
É muito provável que as críticas de Lukács endereçadas ao bolchevismo tenham sido,
direta ou indiretamente, inspiradas por Erving Szabo, que, em artigo publicado em junho
de 1918, no Szabad Gondolat, preconizava o princípio ético absoluto segundo o qual "a lata
por fins puros não podia tolerar meios impuros", e que manifestava a seus amigos mais
íntimos reservas e temores a respeito da política do poder soviético. Essas críticas estavam
também estreitamente ligadas à problemática ética do ensaio de Lukács sobre o idealismo
progressista.

György Lukács*
Não pretendemos ocupar-nos aqui das possibilidades de realização prática do
bolchevismo, nem das consequências úteis ou nocivas de seu eventual acesso ao poder.
Independentemente do fato de que o autor destas linhas não se sente em absoluto
competente para atacar esse gênero de problema, parece entretanto oportuno, a fim de
poder colocar claramente a questão, fazer completa abstração da reflexão sobre as
consequências práticas: a decisão é – como em toda questão importante – de natureza
ética cuja clarificação imanente, justamente do ponto de vista da ação pura, é a tarefa
atualmente primordial. De uma parte, este modo de pôr a questão se justifica pelo fato de
que o argumento frequentemente mais empregado na discussão em torno do bolchevismo,
a saber, se a situação econômica e política está suficientemente madura para sua realização
imediata, nos coloca, a priori, diante a um problema insolúvel; a meu ver, não pode existir
jamais uma situação que possamos reconhecê-la com toda certeza e por antecipação: a
vontade, que se dá como objetivo a realização imediata a qualquer preço, é parte
integrante da situação "madura" tanto quanto as condições objetivas. De outra parte, o
reconhecimento do fato de que a vitória do bolchevismo poderia eventualmente destruir
grandes valores culturais e civilizadores não pode jamais ser um contra-argumento
decisivo para aqueles que o adotam por razões éticas ou histórico-filosóficas. Esses
tomarão consciência desse fato, lamentando-o ou não, mas, percebendo seu caráter
inevitável, nada mudarão – com razão – do objetivo fixado. Porque sabem que tal
perturbação de valores de envergadura mundial não pode produzir-se sem o
aniquilamento de antigos valores, e porque sua vontade, dirigida para a criação de valores
novos, reconhece, em si mesma, forças suficientes para compensar largamente a
humanidade futura da perda dos outros.
Pareceria que depois disso, e para um socialista sério, não poderia sequer haver problema
ético, não restando dúvida quanto à decisão em favor do bolchevismo. Porque se a
imaturidade das condições e o aniquilamento dos valores não contam como obstáculos
essenciais, o problema, provavelmente, coloca-se assim: pode ser bom socialista aquele
que, nesse momento, nos propõe mais uma vez refletir, aguardar seja lá o que form, em
suma, quem nos fala de compromisso? E quando, diante disso, um não-bolchevique referese
ao princípio da democracia – que a ditadura da minoria exclui por natureza e
conscientemente –, os discípulos de Lenin, de acordo com uma das declarações de seu
chefe, reagem retirando do nome do programa de seu partido inclusive o termo
'democracia', e ser declaram simplesmente comunistas. A possibilidade mesma de pôr o
problema ético passa a depender da maneira pela qual se decide se a democracia faz parte
tão-somente da tática do socialismo (como instrumento de combate para o período em que
é minoritário, enquanto luta contra o terror organizado e ilegal das classes opressoras), ou
se é parte integrante dele, de tal modo que seja impossível suprimi-la sem que antes sejam
esclarecidas todas as suas consequências éticas e históricas. Porque, nesse último caso,
para todo socialista consciente e responsável, a ruptura com o princípio da democracia
seria um problema ético extremamente grave.
Raros foram os que tiveram discernimento suficiente para separar a filosofia da história de
Marx de sua sociologia. Do mesmo modo, frequentemente não se percebeu que os dois
pontos cardeais do sistema, a luta de classes e a ordem socialista, chamada a suprimir as
classes e toda opressão, por mais estreita que seja sua interdependência, não são produtos
do mesmo caminho conceitual. A primeira, uma constatação da sociologia marxiana que
fez época, a saber, que a ordem social sempre existiu e que necessariamente tem uma força
motriz, é dos princípios básicos mais importantes dos verdadeiros nexos que compõem a
realidade histórica. A segunda é um postulado utópicos na filosofia da história de Marx:
um programa ético para um mundo novo a vir. (O hegelianismo de Marx, que tem uma
tendência excessiva a colocar os diferentes elementos do real no mesmo plano, contribuiu
para ocultar essa diferença.) Portanto, a luta de classe do proletariado, chamado a conduzir
essa nova ordem social, enquanto luta de classes, não contém em si mesma a nova ordem.
Do único fato da liberação do proletariado, suprimindo a opressão da classe capitalista,
não decorre a destruição de toda opressão de classe, tanto quanto ela não decorria do
resultado das lutas libertadoras e vitoriosas da classe burguesa. Sobre o plano da
necessidade sociológica exclusivamente, isto significava apenas a mudança da estrutura de
classe, a transformação do antigo oprimido em opressor. Para que isso não se reproduza,
para que se chegue enfim à era da verdadeira liberdade sem opressores nem oprimidos, a
vitória do proletariado é, claro uma condição prévia indispensável – porque ela permite a
liberação da última classe oprimida –, mas ela não pode ser mais que uma condição prévia,
um fato negativo. – Para que ela se realize essa era de liberdade é necessário, além da
simples constatação dos fatos sociológicos e das leis dos quais não pode
derivar), querer esse mundo novo: o mundo democrático. Entretanto, esta vontade –
justamente por que não decorre de nenhuma verificação de fato sociológico – e um
elemento essencial da óptica socialista, que não pode ser descartado sem o risco de
derrocar todo o edifício. Porque é esta vontade que faz do proletariado o portador da
redenção social da humanidade, a classe messias da história do mundo. E sem
o pathos desse messianismo, a marcha triunfal sem paralelo da social-democracia teria
sido inconcebível. E se Engels via no proletariado o herdeiro da filosofia clássica alemã, o
fez com razão, porque desse modo se transformou finalmente em ação o idealismo ético e
Kant e de Fichte, que suprimia todo apego terrestre e que queria arrancar de seus eixos –
metafisicamente – o velho mundo. Somente assim pôde-se tornar ação aquilo que neles
era apenas pensamento: pode-se dirigir direto ao fim o que em Schelling, se desliga do
caminho do progresso pela estética, e em Hegel pela teoria do Estado, para se tornar no
fim das contas reacionário. Ainda que Marx tenha construído esse processo históricofilosófico
à maneira hegeliana (List der Idee)², a saber, que é lutando por seus interesses
de classe imediatos que o proletariado chegará a libertar o mundo de todo despotismo, no
instante da decisão – e este instante está aí – torna-se impossível não ver a separação entre
a árida realidade empírica e a vontade ética, utópica, humana. E ver-se-á, então, se o papel
redentor do socialismo consiste realmente em ser o portador ao mesmo tempo submisso e
voluntário da redenção do mundo – ou se não passa de um invólucro ideológico de
interesses de classe, mas que só se diferenciam de outros interesses de classe por seu
conteúdo, e não por sua qualidade ou força moral. (As teorias libertadoras da burguesia do
século XVIII proclamaram e acreditaram igualmente na redenção do mundo, por exemplo,
pela livre concorrência; mas o fato de que não se tratava senão de uma ideologia
construída a partir de interesses de classe, só foi descoberto em plena revolução francesa
no momento da decisão.)
Em consequência, se a ordem social sem opressão de classe – a social-democracia pura –
fosse apenas uma ideologia, então, não teria sentido falar neste momento de problema
moral, de dilema moral. O problema moral aparece precisamente pelo fato de que para a
social-democracia, o objetivo final de toda luta, o que decide e coroa tudo, encontra-se
misto: o sentido final da luta do proletariado é tornar impossível toda luta de classe
posterior, de criar uma ordem social tal que ela não possa aparecer mais, mesmo sob a
forma de pensamento. Eis aqui diante de nós, portanto, sedutora por sua proximidade, a
realização desse objetivo, e é de sua proximidade que nasce o dilema ético. Ou nós
assumirmos a ocasião para realizar esse objetivo, e então nos colocaremos
obrigatoriamente sobre o terreno da ditadura, do terror, da opressão de classe, o que nos
fará trocar a dominação das classes precedentes pela dominação de classe do proletariado,
acreditando que – Satã expulso por Belzebu – esta última dominação de classe, por sua
natureza mais cruel e aberta, se destruirá a si mesma e com ela toda dominação de classe,
ou, então, nós queremos que a nova ordem social seja realidade por meios novos, pelos
meios da verdadeira democracia (porque a verdadeira democracia não existiu até agora
senão como exigência, jamais como realidade, mesmo nos Estados mais democráticos).
Mas, neste caso arriscamo-nos a concluir que, como a grande maioria da humanidade
atualmente ainda não quer a nova ordem social, e nós mesmos não queremos dispor dela
contra sua vontade, devemos esperar, propagar a fé na expectativa, até que a própria
humanidade, dispondo livremente de si mesma e de sua vontade, faça enfim nascer a
ordem de há muito desejada pelos mais conscientes, para os quais era a única solução
possível. O dilema ético vem do fato de que cada atitude contém em si mesma a
possibilidade de crimes monstruosos e de erros incomensuráveis, mas que deverão ser
assumidos com plena consciência e responsabilidade por aqueles que se sintam obrigados
a escolher. O perigo que a segunda solução apresenta é perfeitamente claro: trata-se da
necessidade – provisória – de colaborar com as classes e os partidos que só estão de acordo
com a social-democracia sobre certos objetivos imediatos, mas que permanecem hostis ao
seu objetivo final. A tarefa, então, é encontrar uma forma tal que essa colaboração seja
possível sem que a pureza do objetivo, sem que o pathos de vontade de sua realização
percam seja o que for de sua essência. A possibilidade do erro e do perigo encontra-se no
fato de que é muito difícil, até impossível, sair do caminho direito e direto da realização de
uma convicção qualquer, sem que esse desvio assuma uma certa autonomia, sem que a
diminuição intencional do ritmo da realização opere sobre o pathos da vontade. O dilema,
diante do qual a exigência da democracia coloca o socialismo, é um compromisso externo,
que não deve tornar-se um compromisso interno.
A força fascinante do bolchevismo explica-se pela liberação que resulta da supressão desse
compromisso. Mas aqueles que são enfeitiçados por essa possibilidade nem sempre são
conscientes das responsabilidades que lhes cabem desde logo. Seu dilema torna-se então o
seguinte: pode-se atingir o que é bom por meio de maus procedimentos, pode-se chegar à
liberdade pela via da opressão? Pode nascer um mundo novo quando os meios utilizados
para realizá-lo não diferem senão tecnicamente dos meios detestados e desprezados, com
razão, do mundo antigo? Parece que é possível referir-se, neste caso, à constatação feita
pela sociologia marxista, a saber, que todo desenvolvimento da História consistiu na luta
dos oprimidos e opressores, e que consistirá sempre nisso; que mesmo a luta do
proletariado não pode subtrair-se a essa "lei". Mas se isso fosse verdade – como nós já o
dissemos –, então, todo o conteúdo espiritual do socialismo, excetuando a satisfação dos
interesses materiais imediatos do proletariado, não seria mais do que ideologia. E isto é
impossível. E porque é impossível, não se pode erigir uma constatação de fato histórico em
pilar do valor moral, da vontade de construir a nova ordem social. É preciso, então aceitar
o mal enquanto mal, a opressão enquanto opressão, a nova dominação de
classe enquanto dominação de classe. E é preciso acreditar – e é verdadeiramente credo
quia absurdum est - que dessa opressão não renasça mais uma vez a luta dos oprimidos
pelo poder (pela possibilidade de uma nova opressão), e em consequência de uma série
infinita de lutas eternas sem objetivo e sem razão, mas, ao contrário, que a opressão seja
ela mesma suprimida.
A escolha entre as duas atitudes é, portanto, como em toda questão de ordem moral, uma
questão de fé. Para um observador penetrante, mas talvez superficial nesse caso preciso, se
tantos velhos socialistas provados recusam a posição bolchevique, é porque sua fé no
socialismo estaria abalada. Confesso que não o creio. Porque não acredito que seja
necessário mais fé para o "rude heroísmo" da decisão bolchevique do que para a luta lenta,
aparentemente menos heróica, e entretanto carregada de responsabilidades profundas, a
luta que trabalha a alma, longa e pedagógica, daquele que assume até o fim a democracia.
A primeira atitude aparente de sua convicção imediata, enquanto na segunda, esta pureza
é sacrificada conscientemente para que, por meio desse auto-sacrifício, possa-se realizar a
social-democracia em sua totalidade e não apenas um de seus fragmentos, destacados de
seu centro. Repto: o bolchevismo baseia-se sobre a seguinte hipótese metafísica: o bem
pode surgir do mal, e é possível, como o diz Razoumikhine em Raskolnikov,³ chegar à
verdade mentindo. O autor dessas linhas é incapaz de partilhar essa fé, e isto porque vê um
dilema moral insolúvel na raiz mesma da atitude bolchevique, enquanto a democracia -
acredita – não exige daqueles que a querem realizar consciente e honestamente até o fim
senão uma renúncia sobre-humana e o sacrifício de si. E, entretanto, ainda que esta
solução exija uma força sobre-humana, no fundo não é insolúvel, como o é o problema
moral posto pelo bolchevismo.
_______________________________________________________
1. Cf. J. Lengyel, Visegrader Strasse, Berlim, Dietz Verlag, 1959, p. 140.
* A bolsevizmus mint erkölei problema (O bolchevismo como problema moral). Szabad
Gondolat, dezembro de 1918, reeditado em György Litvan, Laszlo Szucs, A Szociologia elsö
magyar mühelye. Valogatos, Budapest, Tarsadolomtydomanyi Könyvtor, Gondolat, 1973,
vol. II.
2. Em alemão no texto. Na realidade a expressão de Hegel é List der Vernunft, "a astúcia
da Razão".
3. Raskolnikos: título alemão do romance Crime e Castigo de Dostoievsky

domingo, 27 de agosto de 2017

Advogado acusa amigo do juiz Moro de vender favores na Lava Jato


Investigado na Lava Jato, o advogado Rodrigo Tacla Duran, que tem cidadania espanhola e não foi extraditado ao Brasil, acusa o advogado Carlos Zucolotto Júnior, amigo do juiz Sergio Moro, de vender favores na Operação Lava Jato, como a redução de penas e multas; ele diz ter em seus arquivos correspondências de Zucolotto que comprovariam a intermediação de vantagens; em nota, Moro afirmou que Zucolotto, que foi com ele recentemente a um show do Skank, é um profissional sério e negou qualquer tipo de triangulação; a advogado também afirmou que a acusação é absurda; Tacla Duran está escrevendo um livro em que pretende contar sua versão dos fatos

Brasil 247
Investigado na Lava Jato, o advogado Rodrigo Tacla Duran, que tem cidadania espanhola e não foi extraditado ao Brasil, acusa o advogado Carlos Zucolotto Júnior, amigo do juiz Sergio Moro, de vender favores na Operação Lava Jato, como a redução de penas e multas.
É o que a aponta a jornalista Mônica Bergamo, em reportagem publicada neste domingo na Folha de S. Paulo.
“O advogado Rodrigo Tacla Duran, que trabalhou para a Odebrecht de 2011 a 2016, acusa o advogado trabalhista Carlos Zucolotto Junior, amigo e padrinho de casamento do juiz Sergio Moro, de intermediar negociações paralelas dele com a força-tarefa da Operação Lava Jato. O advogado é também defensor do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima em ação trabalhista que corre no STJ (Superior Tribunal de Justiça)”, diz Mônica.
Tacla Duran diz ter em seus arquivos correspondências de Zucolotto que comprovariam a intermediação de vantagens. Segundo a reportagem, Zucolotto seria pago por meio de caixa dois e o dinheiro serviria para ‘cuidar’ das pessoas que o ajudariam na negociação.
Em nota, Moro afirmou que Zucolotto, que foi com ele recentemente a um show do Skank, é um profissional sério e negou qualquer tipo de triangulação.  “A alegação de Rodrigo Tacla Duran de que o sr. Carlos Zucolotto teria prestado alguma espécie de serviço junto à força-tarefa da Lava Jato ou qualquer serviço relacionado à advocacia criminal é falsa”, disse o magistrado. “O sr. Carlos Zucolotto é pessoa conhecida do juiz titular da 13ª Vara Federal [o próprio Moro] e é um profissional sério e competente”, afirma ainda.
O advogado também afirmou que a acusação é absurda. “Não tem o mínimo de verdade nisso. Não existe”, diz Zucolotto. “Eu não conheço ninguém [da força-tarefa]. Nunca me envolvi com a Lava Jato. Sou da área trabalhista. Não tenho contato com procurador nenhum”, diz.
Tacla Duran, por sua vez, está escrevendo um livro em que pretende contar sua versão dos fatos. “Carlos Zucolotto então iniciou uma negociação paralela entrando por um caminho que jamais imaginei que seguiria e que não apenas colocou o juiz Sergio Moro na incômoda situação de ficar impedido de julgar e deliberar sobre o meu caso, como também expôs os procuradores da força-tarefa de Curitiba”, escreveu Duran, num dos trechos obtidos por Mônica Bergamo.
Leia, abaixo, a íntegra da nota de Moro, enviada ao 247:
Nota oficial
Sobre a matéria “Advogado acusa amigo de Moro de intervir em acordo” escrita pela jornalista Mônica Bérgamo e publicada em 27/08/2017 pelo Jornal Folha de São Paulo, informo o que segue:
– o advogado Carlos Zucoloto Jr. é advogado sério e competente, atua na área trabalhista e não atua na área criminal.
– o relato de que o advogado em questão teria tratado com o acusado foragido Rodrigo Tacla Duran sobre acordo de colaboração premiada é absolutamente falso;
– nenhum dos membros do Ministério Público Federal da Força Tarefa em Curitiba confirmou qualquer contato do referido advogado sobre o referido assunto ou sobre qualquer outro porque de fato não ocorreu qualquer contato;
– Rodrigo Tacla Duran não apresentou à jornalista responsável pela matéria qualquer prova de suas inverídicas afirmações e o seu relato não encontra apoio em nenhuma outra fonte;
– Rodrigo Tacla Duran é acusado de lavagem de dinheiro de milhões de dólares e teve a sua prisão preventiva decretada por este julgador, tendo se refugiado na Espanha para fugir da ação da Justiç
– o advogado Carlos Zucoloto Jr. é meu amigo pessoal e lamento que o seu nome seja utilizado por um acusado foragido e em uma matéria jornalística irresponsável para denegrir-me; e
– lamenta-se o crédito dado pela jornalista ao relato falso de um acusado foragido, tendo ela sido alertada da falsidade por todas as pessoas citadas na matéria.
Curitiba, 27 de agosto de 2017
Sergio Fernando Moro
Juiz Federal

OPERAÇÃO MILITAR DO BRASIL COM OS EUA NA AMAZÔNIA TEM A VENEZUELA COMO ALVO .


.Por Brasil 247

Em novembro, uma tropa do Exército dos Estados Unidos vai participar de um exercício militar inédito, com duração de dez dias, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia, do qual participarão também os dois últimos países. Em maio, o Ministério da Defesa informou que a iniciativa e o convite partiram do Brasil. Mas, segundo artigo do jornalista venezuelano Manuel José Montañez, a operação foi uma imposição americana ao governo de Temer, através do embaixador Peter McKinsey, com vistas ao estudo do teatro de operações no sul da Venezuela; o articulista menciona ainda uma resistência do comandante do Exército brasileiro, general Vilas-Boas , ao modelo da operação, que por isso estaria enfrentando pressões para renunciar ao posto
Em novembro, uma tropa do Exército dos Estados Unidos vai participar de um exercício militar inédito, com duração de dez dias, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia, do qual participarão também os dois últimos países. Em maio, o Ministério da Defesa informou que a iniciativa e o convite partiram do Brasil. Mas, segundo artigo do jornalista venezuelano Manuel José Montañez, publicado no sitewww.Aporrea.org , a operação foi uma imposição americana ao governo de Temer, através do embaixador Peter McKinsey, com vistas ao estudo do teatro de operações no sul da Venezuela. O objetivo não seria uma invasão militar mas o estímulo à ocupação de uma porção do território venezuelano por narcotraficantes, mercenários e “forças irregulares” que atuam na região da Cabeça do Cachorro , na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Perú, abrindo caminho para a criação de uma “zona ocupada”, no mesmo modelo que foi aplicado na Líbia, para desestabilizar o governo Kadafi, e depois na Síria.
O ministro da Defesa Raul Jungmann e Temer.Segundo o site venezuelano, participarão das manobras pelo menos 800 homens das Forças Especiais, denominadas SEAL , das forças armadas norte-americanas. Recentemente, recorda o autor da matéria, depois do agravamento da crise venezuelana e das declarações de Donald Trump, dizendo não descartar a “solução militar” contra o governo de Nicolás Mauro, seu assessor de segurança Herbert McMaster esclareceu que os Estados Unidos não pensavam em ação militar direta, mas em apoiar qualquer iniciativa que partisse de nações do continente “para resgatar o povo venezuelano” do governo bolivariano. A operação militar conjunta, denominada América Unida, pode coincidir com a realização de eleições para governador nas províncias da Venezuela, marcadas para o início de dezembro, momento em que a temperatura política pode subir ainda mais na Venezuela.
“Ainda que do ponto de vista estratégico estas manobras não representem o início de uma invasão militar, na realidade, por detrás delas esconde-se um objetivo mais perverso, geopoliticamente falando. Ou seja, permitir um “melhor estudo” do teatro de operações sul-venezuelano para, no momento oportuno, empurrar para nosso território a maior quantidade possível de forças irregulares que contribuiriam para aprofundar o caos e a crise delinquencial neste espaço geográfico, com a possibilidade de criação de uma espécie de território sem autoridade, no qual operaria um “exército difuso” contra o governo central da Venezuela. Este é o formato que foi utilizado por eles no Norte da África, contra a Libia, e depois contra a Siria, hoje mergulhados no caos”, diz o artigo.
O articulista menciona ainda uma resistência do comandante do Exército brasileiro, general Vilas-Boas, ao modelo da operação, que por isso estaria enfrentando pressões para renunciar ao posto.
23/Agosto/2017
Ver também:
www.aporrea.org/oposicion/a250809.html
www.brasil247.com/…
Brasil abre suas selvas e fronteiras aos EUA por ter um governo ilegítimo, pária, colonizado, subalterno, covarde e de ladrões
O original encontra-se em www.brasil247.com/…
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 12 de agosto de 2017

A crítica de Bukhárin à economia política do rentista.






Aparecido Francisco Bertochi


RESUMO
Este artigo busca analisar a crítica formulada pelo teórico bolchevique Nikolai Bukhárin à economia marginalista e ao parasitismo dos estratos rentistas das burguesias capitalistas européias no início do século XX. Tentaremos entender quais os fatores que contribuíram em sua refutação metodológica às escolas histórica alemã e a - histórica austríaca de economia. Examinamos assim alguns dos elementos constitutivos de seu pensamento em economia política. Dentre eles destacam-se o surgimento desses estratos rentistas e do capital financeiro, enquanto agentes do processo de internacionalização do capital, por meio do capital financeiro imperialista.

Foi no exílio em Viena, na Áustria, que Bukhárin se propôs a um objetivo teórico de fôlego: estudar toda a economia política desenvolvida depois da morte de Karl Marx, em 1883. Após compulsar a literatura econômica moderna, inclusive a das correntes marxistas, decidiu escrever entre 1912-1913, uma de suas mais consistentes obras, que ainda mantém atualidade, A economia política do rentista: crítica da economia marginalista, publicada em 1919. Nela, Bukhárin fundamentava a sua crítica à economia burguesa marginalista e à teoria da utilidade marginal, por meio da análise psíco-sociológica e marxista do indivíduo em relação à produção e ao papel improdutivo exercido na economia pelo burguês rentista, que ao viver somente de juros e de aplicações financeiras não contribui com a produção material da sociedade.
O que motivou Bukhárin a escrever este livro foi dar continuidade à refutação de um artigo de Eugen Böhm-Bawerk, de 1904, no qual criticava O Capital de Karl Marx, atacando os fundamentos da análise marxista da economia capitalista em seu ponto mais vulnerável, a teoria do valor-trabalho, e afirmava a sua própria teoria da utilidade marginal, cujo valor não é determinado pelo trabalho investido no produto, mas pela utilidade que o produto tem para seus compradores. Marx, todavia, partia do valor-trabalho para compreender o lucro e a acumulação capitalistas, visando demonstrar cientificamente a natureza exploradora do capitalismo. Na época este artigo fora respondido pelo economista Rudolf Hilferding, mas, a sua resposta manteve-se no necessário à defesa da doutrina econômica marxista, o que fez Bukhárin entender que era necessário tecer uma crítica interna profunda ao sistema lógico e teórico que sustentava a teoria marginalista.
Na economia política burguesa da época Bukhárin distinguiu duas correntes principais, a escola histórica alemã de Roscher, Hildebrandt, Knies, Karl Bucher, Gustav Schmoller e List, baseada no protecionismo da burguesia alemã diante da concorrência da indústria inglesa no mercado mundial; e a escola marginalista austríaca abstrata de Karl Menger, Frederick von Wiser e Eugen Böhm-Bawerk, voltada à elaboração de abstrações teóricas descoladas da realidade concreta. Ele explicava que a escola histórica por basear-se no protecionismo rejeitava as abstrações e formulações de leis universais, opondo-se aos economistas clássicos, como David Ricardo e Adam Smith, e só tendo por legítimas monografias de caráter empírico. Mas, a escola marginalista austríaca se situava num nível mais alto de abstração teórica, pela utilização de formulações matemáticas. Resultando disto, seu caráter a histórico e a sua preferência por elaborar leis universais sem basear-se na realidade concreta das diferentes épocas históricas.
Ambas alternativas expressam, conquanto sob forma diametralmente oposta, o fracasso da Economia Política burguesa. A primeira fracassou porque adotou uma atitude negativa diante de toda teoria abstrata em geral. A segunda, porque se satisfez com a elaboração de uma teoria puramente abstrata e ofereceu, dessa maneira, uma série de pseudo-explicações habilmente imaginadas, porém inúteis no referente aos problemas em cuja abordagem o marxismo demonstrou ser particularmente uma teoria eficaz: os relativos à dinâmica da sociedade capitalista atual (Bukhárin, 1974:46).
Segundo Bukhárin (1974), esta escola histórica alemã surge enquanto reação à perpetuação e ao cosmopolitismo dos clássicos, porque a Economia Política clássica, especialmente a inglesa, formulou leis gerais, de validade universal, com forte caráter teórico-abstrato dedutivo. Ele buscava demonstrar também, que a diferença metodológica, entre os clássicos ingleses e a moderna escola histórica alemã, possuía profundas raízes econômicas e sociais. O que se ocultava nessa discussão era o fato de que os economistas clássicos, como David Ricardo, formularam leis gerias abstratas de caráter universal baseadas no processo de desenvolvimento teórico da economia, fomentado pela indústria inglesa. Este cosmopolitismo refletia o desenvolvimento industrial da Inglaterra, a partir de 1750, e sua superioridade tecnológica e teórica em relação ao desenvolvimento capitalista industrial na França e Holanda, que apenas décadas depois se iniciou. Mas, a importação deste modelo industrial para Alemanha e Itália só tardiamente ocorreria com o processo de unificação territorial e a formação de seus Estados nacionais, após 1861-1873.
Neste cenário de desenvolvimento capitalista tardio no continente europeu, no início do século XX, a Alemanha possuía um caráter agrário e atrasado diante da Inglaterra. A indústria metalúrgica alemã, por exemplo, enfrentava a concorrência inglesa nos mercados interno e mundial. Foi essa diferença econômico-industrial que propiciou o surgimento da escola histórica alemã, devido à necessidade prática e teórica da burguesia alemã proteger sua nascente indústria com a adoção de políticas tarifárias e aduaneiras protecionistas pelo Estado Imperial. No campo teórico, por meio da escola histórica, esta necessidade de proteção da indústria alemã ganha outros matizes. Os seus estudos deveriam refletir as circunstâncias e condições materiais concretas da realidade e apontar as reais perspectivas de crescimento da indústria em meio às salvaguardas protecionistas do Estado. Por isso, a refutação desta escola da validade universal das teorias econômicas e de suas leis de caráter geral, desenvolvidas pelos clássicos ingleses.
Se a burguesia inglesa estava dispensada de enfatizar as particularidades nacionais, a burguesia alemã, pelo contrário, devia se mostrar atenta à originalidade e autonomia da evolução alemã e servir-se delas a fim de demonstrar teoricamente a necessidade de um protecionismo para o desenvolvimento. O interesse teórico se concentrava, com efeito, no historicamente concreto e nacionalmente limitado. A teoria servia exclusivamente para pôr em evidência estes aspectos específicos da vida econômica. De um ponto de vista sociológico, a escola histórica foi a expressão ideológica deste processo de crescimento da burguesia alemã que, temerosa da concorrência inglesa, buscou apoio para a indústria nacional e, por isso, salientou as particularidades nacionais e históricas da Alemanha e outrossim, generalizando o procedimento, as de outros países (Bukhárin, 1974:46).
Num quadro econômico histórico amplo, estas posições divergentes teoricamente, a clássica inglesa e da escola histórica alemã, poderiam ser genérica e comparativamente semelhantes nalguns aspectos, pois refletiam os seus posicionamentos teóricos no contexto do processo de desenvolvimento da industrialização capitalista nacional. Mas, o lugar ocupado pela Inglaterra, pioneira no processo de desenvolvimento industrial capitalista, permitiu que as leis gerais abstratas da Economia Política ganhassem importância e contornos universais.
Isso se justifica, porque o modelo inglês foi transplantado aos países europeus e as colônias. Esse foi o caso da Alemanha, que também importou dos ingleses seu modelo industrial, que, devido às peculiaridades dum país agrário atrasado, necessitou depois criar suas bases materiais para acelerar esse desenvolvimento visando sobreviver à competição no mercado mundial. Foi esse processo, destinado ao desenvolvimento industrial nacional autônomo que levou ao surgimento da escola histórica na Alemanha, para pensar e justificar a importância, nessa realidade local-nacional, das políticas protecionistas que resguardassem as suas frágeis bases industriais, como elucida Bukhárin:
De um ponto de vista genérico-social, tanto a escola histórica como a clássica são nacionais, na medida em que ambas são o produto de uma evolução histórica e localmente limitada. De um ponto de vista lógico, não obstante, os clássicos são cosmopolitas e os partidários da escola histórica são nacionais (idem).
Portanto, o pensamento econômico clássico inglês só se universalizou devido ao pioneirismo do desenvolvimento capitalista naquele país. Mas, substancialmente, foi fruto dum desenvolvimento industrial nacional semelhante ao que, décadas depois, ocorreu na Alemanha. O fator diferenciador, neste caso, está na não-aceitação da validade teórica universal das teorias e leis gerais abstratas, formuladas no século XIX pelos clássicos ingleses, pelos teóricos da escola histórica alemã, pois estava em jogo o desenvolvimento industrial alemão e a sua sobrevivência diante da concorrência inglesa e dos países industrializados anteriormente. Por isso Bukhárin atrela o processo de desenvolvimento da escola histórica alemã ao protecionismo, pois a sua vocação empirista monográfica dava o suporte e a legitimação teórico-lógica para, a partir da realidade nacional, justificar medidas protecionistas do Estado, exigidas pela burguesia industrial alemã. Para Bukhárin, a constituição dessa escola estava desde o início ligada ao protecionismo nacional: “o movimento protecionista alemão converteu-se, assim, no berço da escola histórica”(1974:47).
Tal fato foi responsável por engendrar o surgimento de tendências de vários tipos e diferentes características teóricas. Porém, particularmente, fomentou a sua principal corrente de pensamento, representante da conservadora burguesia rural alemã, a escola histórica nova ou histórico-ética, idealizada por Gustav Schmoller. O que caracterizava essa escola era a atitude negativa face à teoria abstrata, que segundo Bukhárin: “parecia aos cientistas como sinônimo de absurdo” (1974:47), gerando o repúdio a produção de teorias e leis de caráter abstrato ou geral na Economia Política. Por isso, validava apenas estudos com caráter estreitamente empírico e monográfico refratário a toda generalização.
Isso, no entanto, o levou a incidir num erro teórico, que depois geraria polêmicas com os stalinistas e teria repercussões negativas à sua carreira política. Seu erro foi prever o fim da Economia Política, que deixaria de ser uma disciplina de estudos específicos autônoma e seria substituída na sociedade socialista, por um tipo de geografia econômica e por uma política econômica da base material da sociedade. Segundo Bukhárin, “a rejeição da teoria geral constitui precisamente a negação da Economia Política como disciplina teórica autônoma, a declaração de sua bancarrota” (1974:48).
Noutra análise, argumenta contra a escola a-histórica austríaca, visando responder suas críticas ao marxismo. Tal teoria era ministrada no curso de Economia da Universidade de Viena por Böhm-Bawerk, Karl Menger e Wieser, no qual, Bukhárin participou como ouvinte. Uma das características dessa escola é a sua rejeição ao historicismo, pois seus teóricos consideram necessário observar os fenômenos típicos e as leis gerais da Economia Política. Ou seja, de maneira empirista, aos cientistas dessa corrente de pensamento, era necessário se desenvolver férreas leis exatas, como se isso fosse epistemologicamente possível no campo da economia capitalista.
Bukhárin, por meio da obra Der bourgeois, de Werner Sombart, faz uma análise histórica e psicológica sobre o espírito burguês em seu aspecto decadente, nas principais formações econômico-sociais capitalistas dos séculos XVII e XVIII. Dessa forma, buscava as origens do surgimento duma fração rentista no interior das classes burguesas dedicadas as altas finanças durante o ancien régime na Inglaterra, França e Holanda. Inferiu assim, que esta decadência não levou uma camada dessas classes ao processo de refeudalização, como em outros países europeus. Este espírito capitalista burguês decadente os transformou numa fração rentista, separada da burguesia ativa e produtiva. Uma parcela das classes burguesas voltadas às finanças passou a viver de aplicações financeiras, sobretudo, em letras do tesouro nacional dos países, sem vínculo direto com a produção social material das sociedades em que viviam.
Transplantar sua análise à modernidade não foi difícil para ele, pois a evolução capitalista sofreu profunda aceleração no processo de acumulação de capital, nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Tal processo resultou na transformação da economia de livre concorrência em monopolista, em sua fase imperialista, por meio da fusão dos capitais industrial e bancário e gerou o capital financeiro. Esse capital engendrou os grandes cartéis e trusts que passaram a concorrer no mercado mundial. Portanto, estas transformações contribuíram para acelerar o crescimento desta fração rentista na sociedade capitalista mundial, facilitado com o surgimento das empresas de sociedades anônimas, do sistema de créditos e empréstimos a países pobres e da especulação em bolsas de valores.
O número destes indivíduos cresce, a ponto de chegar a formar uma classe social: a dos rentistas. Este estrato da burguesia, ainda que não constitua uma classe no sentido específico da palavra, senão um grupo com características próprias no interior da burguesia capitalista, apresenta certas notas distintivas que o caracterizam e que derivam de sua psicologia social. A expansão das sociedades anônimas e dos bancos e a crescente influência da Bolsa engendram e consolidam este grupo social. Sua atividade econômica se exerce essencialmente no plano da circulação, sobretudo de títulos e valores, e nas transações da Bolsa. É significativo o fato de que, no interior deste estrato social, que vive de rendas produzidas por estes valores, existam diferentes matizes. O caso limite é representado pela camada situada fora não só da produção como também do próprio processo de circulação (Bukhárin, 1974:49).
Ao analisar as características principais desse novo estrato social, os rentistas, ele ressalta seu caráter parasitário, pois sua atividade se exerce no campo do consumo. “A vida inteira do rentista se baseia no consumo e a psicologia do consumo em estado puro, constitui seu estilo particular de vida”(BUKHARIN,1974:50). Ainda, baseando-se em Sombart, conclui que as características psicológicas deste estrato rentista aparentam-se às da nobreza decadente e às da aristocracia financeira de fins do ancien régime (idem). Bukhárin tece uma comparação entre os modos de vida do proletariado e dos rentistas e indica que a principal característica desse estrato rentista é a sua completa separação de todo o processo de vida econômica da sociedade. Por isso, para essa parcela rentista, o trabalho produtivo concreto seria algo fortuito e à margem de seu horizonte visual, que se limita apenas ao presente.
Para ele, isso reforçaria a característica psicológica do rentista como consumidor passivo que não possui, como o proletariado que vive na esfera da produção social, uma mentalidade ativa de produtor socialmente útil, e concluía que a segunda característica importante do estrato rentista seria o seu individualismo crescente. Bukhárin (1974:52), afirma que a terceira característica deste estrato rentista seria, como no caso da burguesia em geral, o seu temor ao proletariado e o medo às eminentes catástrofes sociais.
Na sua concepção, tais aspectos da consciência social do rentista, derivados de seu ser social, determinam a sua consciência no aspecto teórico e no nível das idéias científicas. Para Bukhárin a psicologia seria a base da lógica, pois os sentimentos e as propensões determinariam a orientação geral do pensamento e a perspectiva pela qual se considera a realidade antes de submetê-la à lógica. Por isso, se a análise duma frase isolada de uma teoria qualquer não desvenda a sua infra-estrutura social, um estudo das características distintivas e do aspecto geral do sistema permitiria observar essa infra-estrutura. Portanto, para ele cada frase teria um sentido novo, se configuraria na trama de todo encadeamento, traduzindo a experiência duma determinada classe ou de um grupo social dado (1974:52). Retomando a análise da escola austríaca, enfatiza sua característica lógica distintiva procedendo à comparação metodológica entre a escola austríaca e o marxismo, e afirma que, diferentemente de Marx, cuja análise parte da produção capitalista como categoria histórica específica, o objetivo principal do rentista é a solução do problema do consumo, e que essa constitui a posição teórica fundamental e característica da escola austríaca.
A partir disso, inferiu que as teses da escola austríaca e da marginalista tinham por base comum o subjetivismo e o individualismo do sujeito econômico, e que elas pouco se diferiam das teorias, baseadas na análise da utilidade e do valor de uso dos bens, dos pensadores do século XIX, como Adam Smith. Os mesmos procedimentos teóricos e metodológicos se expressavam nas primeiras décadas do século XX, na escola anglo-americana, cujo expoente era J.B.Clark. Essas teorias embasam o pensamento econômico neoliberal atual de globalização econômica ditada pelo FMI e Consenso de Washington. O que demonstra a atualidade da crítica formulada por Bukhárin, no início do século XX.
Um aspecto importante de A economia do rentista é não fazer uma análise crítica superficial à escola austríaca e a marginalista. Ao contrário, ele aprofundou sua crítica metodológica da economia burguesa moderna a partir da comparação com a teoria marxista. Desta forma, pôde caracterizar no interior da burguesia como classe social, o estrato dos rentistas, demonstrando a sua ligação teórica estreita com o subjetivismo e o individualismo atomístico de Böhm-Bawerk. Bukhárin comprovou metodologicamente que as teses da escola austríaca partiam das análises das motivações psicológicas do indivíduo isolado e das análises das motivações dos sujeitos econômicos, fazendo abstração de toda correlação social. Por isso, as refuta cientificamente, alegando que essas teorias, ao partir de uma análise do indivíduo social atomizado, não refletiriam a realidade econômica concreta do modo de produção capitalista, pois se fundavam em uma formulação errônea ao fazer da consciência individual do sujeito econômico, o ponto de partida de sua análise teórica e o centro gravitacional de sua argumentação a-histórica.
Com efeito, enquanto “Marx concebe o movimento social como um processo histórico-natural regido por leis que não somente são independentes da vontade, da consciência e da intenção dos homens, senão que, ademais, determinam sua vontade, consciência e intenções [...]” (trecho da crítica de Kaufmann citado pelo próprio Marx), Böhm-Bawerk faz da consciência individual do sujeito econômico o ponto de partida de sua análise (Bukhárin, 1974:57).
Essa oposição entre método objetivo e subjetivo, segundo Bukhárin, caracteriza a oposição entre o método social e o método individualista. Por isso, sublinha, como Marx, a independência com relação à vontade, à consciência e às intenções humanas; para, em segundo lugar, buscar definir com precisão esse sujeito econômico, do qual parte a escola austríaca em suas análises econômicas. A sociedade moderna capitalista anárquica, objeto de estudo da Economia Política, em cujo mercado atuam forças elementares como a concorrência, flutuação dos preços, bolsas de valores etc., comprova que o produto social governa seus criadores e que o resultado dos motivos geradores da ação dos sujeitos econômicos individuais, mas não isolados, não correspondem a esses motivos e, em certos casos, encontra-se em violenta oposição a eles.
Recorrendo à análise da mercadoria de Marx no livro primeiro de O Capital, Bukhárin afirma que metodologicamente “este fenômeno expressa o caráter irracional, elemental, do processo econômico desenvolvido nos marcos da economia de mercado e aparece claramente na psicologia do fetichismo das mercadorias” (1974:58). Uma vez que se produz no interior da economia mercantil o processo de reificação (Verdinglichung) das relações humanas, em que tais expressões coisificadas (Dingausdrücke) têm existência autônoma independente, submetida a leis específicas próprias apenas deste tipo de existência, enquanto conseqüência do caráter elemental do próprio desenvolvimento capitalista.
Bukhárin quer dizer que o método dialético consiste em determinar quais sãos as leis reguladoras das relações entre os diferentes fenômenos sociais capitalistas. Marx analisa as leis da dinâmica do desenvolvimento do sistema capitalista, que regem os resultados das vontades particulares, mas sem examinar estas vontades como tais, sem analisá-las como vontades individuais. Ele analisa essas leis que governam os fenômenos sociais, abstraindo sua relação com os fenômenos dependentes da consciência individual. Portanto, o método de Marx é conceitualmente diferente da forma metodológica com que Böhm-Bawerk analisa os sujeitos econômicos como átomos isolados, abstraindo das correlações sociais resultantes da própria determinação da infra-estrutura econômica da sociedade capitalista, nas quais este indivíduo, por mais isolado que estivesse, encontrava-se imerso, pelo fato dos homens viverem em sociedade. Por isso, avalia que Böhm-Bawerk se equivoca metodologicamente ao tomar como centralidade teórica o sujeito econômico isolado.
Böhm-Bawerk escamoteava o cerne da questão metodológica, que era desenvolver uma análise sobre o que caracterizava o intercâmbio capitalista, pois o capitalismo constitui a atual forma historicamente desenvolvida da produção de mercadorias. Era esta relação capitalista de intercâmbio historicamente situada e determinada que deveria ser objeto de sua análise e não o intercâmbio indistinto, a-histórico e desconectado de qualquer formação sócio-econômica histórica e especificamente determinada, como o era e continua a ser o sistema capitalista. Bukhárin realçava a diferença metodológica entre os fundamentos das escolas histórica empírica alemã de List e Schomoller e da austríaca abstrata matemática a-histórica, baseada na teoria de Böhm-Bawerk, porque essa caracterizaria a antítese da ideologia proletária, objetivismo versus o subjetivismo, o ponto de vista histórico versus a perspectiva a-histórica, o ponto de vista da produção versus o do consumo.
Precisamente porque corresponde à ideologia de um tipo marginal da burguesia, a escola austríaca constitui a antítese perfeita da ideologia proletária: objetivismo versus subjetivismo, ponto de vista histórico versus perspectiva a-histórica, ponto de vista da produção versus ponto de vista do consumo - esta é a diferença metodológica, tanto dos fundamentos da própria teoria como de toda a construção teórica de Böhm-Bawerk (Bukhárin,1974:54).
Porém, nunca será demais reafirmar a atualidade desta obra bukhariniana, nem que consiste numa das críticas mais profundas aos equívocos metodológicos das escolas histórica alemã e a-histórica austríaca e, também, da teoria marginalista, que embasam o pensamento econômico e anti-científico pós-moderno capitalista atual. Escolas estas cujas raízes teóricas e metodológicas fundamentam as teorias econômicas que intentam legitimar o projeto de dominação mundial capitalista de globalização econômica, baseado no ideário neoliberal do FMI e do Consenso de Washington, imposto às nações do mundo visando o saqueio de suas riquezas naturais e a superexploração de sua força de trabalho. Sobretudo, em relação ao emprego do capital financeiro de natureza especulativa desse estrato rentista da sociedade capitalista mundial que Bukhárin, ainda em 1914, desvendou a existência parasitária.

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Marília – SP. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste do Paraná - UNIOESTE - Campus de Francisco Beltrão - PR

Referências bibliográficas
BUKHARIN, N. La economía política del rentista: crítica da economía marginalista. Córdoba: Pasado y Presente, 1974.
COHEN, S. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
GORENDER, J.(Org.). Bukhárin - História. São Paulo:Ática, 1988.
HEITMAN, S. Nikolai I. Bukharin: bibliography. Stanford: Hoover Institution, 1968.
HILFERDING, Rudolf. El capital financiero. Madrid: Techos, 1973.
____________. La crítica de Böhm-Bawerk a Marx. In: BÖHM-BAWERK, Eugen von et ali. Economia burguesa y economia marxista. II ed. México: Pasado y Presente, 1978.

LÖWY, A.G. El comunismo de Bujarin. Barcelona, México:Grijalbo, 1973

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O establishment dos EUA contra o resto do mundo

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Thierry Meyssan
A classe dirigente norte-americana acha-se ameaçada pelas mudanças internacionais impulsionadas pelo Presidente Trump. Ela acaba de se movimentar para o colocar sob a tutela do Congresso. Numa lei aprovada quase por unanimidade, instaurou sanções contra a Coreia do Norte, o Irão e a Rússia e rebentou os negócios da União Europeia e da China. Trata-se para ela de parar a política de cooperação e de desenvolvimento do Presidente e de regressar à doutrina Wolfowitz, de confrontação e de suserania.
Rede Voltaire | Beirute (Líbano) 
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É um escândalo sem precedente. O Secretário-geral da Casa Branca, Reince Priebus, fazia parte do complô encarregue de desestabilizar o Presidente Trump e de preparar a sua destituição. Ele alimentava as fugas de informação quotidianas que perturbam a vida política norte-americana, nomeadamente as do pretenso conluio entre a equipa Trump e o Kremlin [1]. Ao despedi-lo, o President Trump entrou em conflito com o “establishment” do Partido Republicano, do qual Priebus foi ex-presidente.
Saliente-se, de passagem, que nenhuma destas fugas sobre as agendas e os contactos de uns e outros trouxe a menor prova das alegações avançadas.
A reorganização da equipe Trump que se seguiu, deu-se exclusivamente em detrimento de personalidades republicanas e em proveito de militares opostos à tutela do Estado profundo. A aliança que fora concluída, fazendo das tripas coração, pelo Partido Republicano com Donald Trump aquando da convenção de investidura, em 21 de Julho de 2016, está morta. Está-se, portanto, dentro da equação de partida : de um lado o presidente outsider da «América Profunda», do outro toda a classe dominante em Washington apoiada pelo “Estado Profundo” (quer dizer, a parte da administração encarregada da continuidade do Estado para além das alternâncias políticas).
É evidente que esta coligação é apoiada pelo Reino Unido e Israel.
O que tinha de acontecer aconteceu : os líderes Democratas e Republicanos entenderam-se para contrariar a política estrangeira do Presidente Trump e preservar as suas vantagens imperiais.
Para a por em prática, eles adoptaram no Congresso uma lei com 70 páginas instaurando oficialmente sanções contra a Coreia do Norte, contra o Irão e contra a Rússia [2]. Este texto força, unilateralmente, todos os outros Estados do mundo a respeitar essas interdições comerciais. Estas sanções aplicam-se, pois, tanto à União Europeia e à China como aos Estados oficialmente visados.
Apenas cinco parlamentares se demarcaram desta coligação (coalizão-br) e votaram contra esta lei: os Representantes Justin Amash, Tom Massie e Jimmy Duncan, e os Senadores Rand Paul eBernie Sanders.
Disposições específicas desta lei interditam, de uma forma ou outra, o Executivo de afrouxar as sanções comerciais, seja sob que forma for. Donald Trump está, teoricamente, de mãos e pés atados. Claro, ele poderá opor o seu veto, mas segundo a Constituição, bastaria ao Congresso voltar a votar o texto nos mesmos termos para poder impô-lo ao Presidente. Este irá, portanto, assiná-lo sem levar em conta a afronta de ser posto à margem pelo Congresso. Nos próximos dias vai começar uma guerra inédita.
Os partidos políticos dos E.U. querem estoirar a «doutrina Trump», segundo a qual os Estados Unidos se devem desenvolver mais rápido do que outros afim de conservar a liderança global. Eles pretendem, pelo contrário, restabelecer a «doutrina Wolfowitz» de 1992, segundo a qual Washington deve conservar o seu avanço sobre o resto do mundo abrandando para tal o desenvolvimento de qualquer potencial concorrente [3].
Paul Wolfowitz é um trotzkista que se colocou ao serviço do republicano Bush Sr para lutar contra a Rússia. Ele tornou-se Secretário-adjunto da Defesa, dez anos mais tarde, sob Bush Jr, depois Presidente do Banco Mundial. No ano passado, apoiou a Democrata Hillary Clinton. Em 1992, ele escrevera que o competidor mais perigoso dos Estados Unidos era a União Europeia e que Washington a devia destruir politicamente, ou seja economicamente.
A lei põe em causa tudo o que Donald Trump tem feito durante os últimos seis meses, nomeadamente a luta contra os Irmãos Muçulmanos e as suas organizações jiadistas, a preparação da independência do Donbass (Malorossiya), e o restabelecimento da Rota da Seda.
Numa primeira retaliação, a Rússia pediu a Washington para reduzir o pessoal da sua embaixada em Moscovo para o nível do da sua própria embaixada em Washington, quer dizer para 455 pessoas, expulsando 755 diplomatas. Desta maneira, Moscovo pretende lembrar que se “interferiu” na política dos EUA, tal não teria nível equivalente com a importância da ingerência dos EUA na sua própria via política.
A este propósito, só a 27 de Fevereiro último é que o Ministro da Defesa, Sergei Choïgou, anunciou na Duma que os Exércitos russos são agora capazes, eles também, de organizar «revoluções coloridas», com 28 anos de atraso em relação aos Estados Unidos.
Os Europeus percebem, com espanto, que os seus amigos de Washington (os Democratas Obama e Clinton, os Republicanos McCain e McConnell) acabam de terminar, de foram clara, comqualquer esperança de crescimento na União. O choque é certamente brutal, no entanto eles continuam a não admitir que o pretensamente «imprevisível» Donald Trump é, na realidade, o seu melhor aliado. Completamente atordoados por esta votação, sobrevinda durante as suas férias de verão, os Europeus continuam em modo de espera.
Salvo reacção imediata, as empresas que investiram na solução da Comissão Europeia para o abastecimento energético da UE estão arruinadas. A Wintershall, a E.ON Ruhrgas, a N. V. Nederlandse Gasunie, e a Engie (ex-GDF Suez) envolveram-se na duplicação do gasoduto North Stream, agora interdito pelo Congresso. Elas perdem não só o direito de competir em concursos nos EUA como todos os seus bens nos Estados Unidos. Elas são interditas de aceder ao crédito de bancos internacionais e não poderão continuar as suas actividades fora da União.
De momento, apenas o governo alemão exprimiu o seu mal-estar. Não se sabe se vai conseguir convencer os seus parceiros europeus e virar a União contra o seu suserano Americano. Jamais aconteceu uma tal crise e, por conseguinte, não existe nenhum termo de comparação para poder antecipar o desenrolar dos acontecimentos. É provável que alguns Estados-Membros da União acabem defendendo os interesses dos EUA, tal como concebidos pelo Congresso, contra os seus parceiros europeus.
Os Estados Unidos, como qualquer Estado, podem interditar as suas empresas de comerciar com Estados estrangeiros e as sociedades estrangeiras de comerciar com eles. Mas, de acordo com a Carta das Nações Unidas, eles não podem impor as suas próprias escolhas nesta matéria aos seus aliados e parceiros. Mas, no entanto, é o que eles têm feito desde as suas sanções contra Cuba. À época, sob a liderança de Fidel Castro —que não era comunista—, o Governo revolucionário cubano lançara uma reforma agrária à qual Washington entendeu opor-se [4]. Os membros da OTAN, que não tinham nada com esta pequena ilha das Caraíbas, seguiram, então, a onda. Progressivamente, o Ocidente, cheio de si mesmo, considerou como normal matar à fome os Estados que resistiam ao seu poderoso suserano. Eis que, pela primeira vez, a União Europeia é atingida pelo sistema que ela própria ajudou a por em prática.
Mais do que nunca, o conflito Trump / Establishment toma uma forma cultural. Ele opõe os descendentes dos imigrantes em busca do «sonho americano» aos dos puritanos doMayflower [5]. Daí, por exemplo, a denúncia pela imprensa internacional da linguagem vulgar do novo responsável de comunicação da Casa Branca, Anthony Scaramucci. Até aqui Hollywood acomodava-se perfeitamente aos modos dos homens de negócio nova-iorquinos, mas, subitamente, essa linguagem de carroceiro é apresentada como incompatível com o exercício do Poder. Só o Presidente Richard Nixon se exprimia assim. Ele foi forçado à demissão pelo FBI, o qual montou o escândalo Watergate contra si. No entanto, todos concordam em reconhecer que foi um grande presidente, tendo posto fim à Guerra do Vietname e reequilibrando as relações internacionais com a China Popular face à URSS. É espantoso ver a imprensa da velha Europa retomar o argumento puritano, religioso, contra o vocabulário de Scaramucci para julgar a competência política da equipe Trump; e o Presidente Trump, ele próprio, o ter demitido ainda mal o havia nomeado.
Por trás daquilo que pode parecer apenas uma luta de clãs joga-se o futuro do mundo. Seja quanto às relações de confrontação e de dominação, quer quanto às de cooperação e de desenvolvimento. 

Thierry Meyssan
Tradução Alva

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Elementos de filosofia materialista - De onde vem a religião?




Por Valdir Pereira


Engels deu-nos, sobre este assunto, uma resposta muito clara: «A religião nasce das concepções restritas do homem». (Restrito é tomado, aqui, no sentido de limitado.)
Para os primeiros homens, esta ignorância é dupla: ignorância da natureza, ignorância deles próprios. É preciso pensar constantemente nessa dupla ignorância, quando se estuda a história dos homens primitivos.
Na antiguidade grega, que consideramos já como uma civilização avançada, tal ignorância parece-nos infantil, por exemplo, quando se vê que Aristóteles pensava que a terra era imóvel, que era o centro do mundo, e à sua volta giravam planetas. (Estes, que via em número de 46, estavam fixos, como pregos num teto, e era esse conjunto que girava à volta da terra...)
Os Gregos pensavam, também, que havia quatro elementos: a água, a terra, o ar e o fogo, e que não era possível decompô-los. Sabemos que tudo isso é falso, uma vez que decompomos, agora, a água, a terra e o ar, não considerando o fogo como um corpo da mesma ordem.
Acerca do próprio homem, os Gregos eram também muito ignorantes, uma vez que não conheciam a função dos nossos órgãos, e consideravam, por exemplo, o coração como o centro da coragem!
Se a ignorância dos sábios gregos, que consideramos já como mais avançados, era tão grande, como seria, então, a dos homens que viveram milhares de anos antes deles? As concepções que os homens primitivos tinham da natureza e deles próprios eram limitadas pela ignorância. Mas tentavam, apesar de tudo, explicar as coisas. Todos os documentos que possuímos sobre os homens primitivos dizem-nos que estavam muito preocupados com os sonhos. Vimos, como tinham resolvido este problema dos sonhos pela crença na existência de um «duplo» do homem. No início, atribuíam a esse duplo uma espécie de corpo transparente e leve, com uma consistência ainda material. Só muito mais tarde, nascerá no seu
espírito a concepção de que o homem tem nele um princípio imaterial, que lhe sobrevive, um princípio espiritual (a palavra vem de espírito, que, em latim, quer dizer sopro, o sopro que se vai com o último suspiro, quando se entrega a alma a Deus, só subsistindo o «duplo»). É, então, a alma que explica o pensamento, o sonho.
Na idade média, tinha-se concepções bizarras sobre a alma. Pensava-se que, num corpo gordo, havia uma
alma diminuta e, num corpo franzino, uma grande alma; é por isso que, nessa época, os ascetas faziam longos e frequentes jejuns, para ter uma grande alma, fazer uma morada grande para ela.
Admitindo, sob a forma do duplo transparente, depois sob a da alma, princípio espiritual, a sobrevivência do homem após a morte, os homens primitivos criaram os deuses.
Acreditando, primeiramente, em seres mais poderosos do que os homens, existindo sob uma forma ainda material, chegaram, insensivelmente, à crença em deuses, existindo sob a forma de uma alma superior à nossa. E é deste modo que, depois de ter criado uma multidão de deuses, cada um com a sua função definida, como na antiguidade grega, chegaram à concepção de um só Deus. Então, foi criada a religião monoteísta atual. Assim, vemos que, na origem da religião, mesmo sob a sua forma atual, esteve à ignorância.
O idealismo nasce, pois, das concepções limitadas do homem, da sua ignorância; enquanto que o materialismo, pelo contrário, do recuo desses limites.
Vamos assistir, no decurso da história da filosofia, a essa luta contínua entre o idealismo e o materialismo.
Este quer fazer recuar as fronteiras da ignorância, e isto será uma das suas glórias e um dos seus méritos. O idealismo, pelo contrário, e a religião que o alimenta fazem todos os esforços para manter a ignorância e tirar proveito desta ignorância das massas, para lhes fazer admitir a opressão, a exploração econômica e social.


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Princípios Fundamentais de Filosofia - Final


O MATERIALISMO DIALÉTICO E AS IDEOLOGIAS
Aplicação do método dialético às ideologias

I. — Qual é a importância das ideologias para o marxismo?
II. — O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos.)
III. — Estrutura econômica e estrutura ideológica.
IV. — Consciência verdadeira e consciência falsa.
V. — Ação e reação dos fatores ideológicos.
VI. — Método de análise dialética.
VII. — Necessidade da luta ideológica.
VII— Conclusão.

I. — Qual é a importância das ideologias para o marxismo?
Costuma ouvir-se dizer que o marxismo é uma filosofia materialista que nega o papel das ideias na história, o papel do fator ideológico, e apenas quer considerar as influências econômicas.
Isso é falso. O marxismo não nega o papel importante que o espírito, a arte, as ideias têm na vida. Bem pelo contrário, dá uma importância particular a essas formas ideológicas, e vamos terminar este estudo dos princípios elementares do marxismo, examinando como o método do materialismo dialético se aplica às ideologias; vamos ver qual é o papel das ideologias na história, a ação do fator ideológico e o que é a
forma ideológica.
Esta parte do marxismo que vamos estudar é a mais desconhecida de tal filosofia. A razão é que, durante muito tempo, tratou-se e difundiu-se, sobretudo, a parte do marxismo que estuda a economia política.
Procedendo assim, separava-se arbitrariamente esta matéria, não só do grande «todo» que forma o marxismo, mas também das suas bases; porque o que permitiu fazer da economia política uma verdadeira ciência foi o materialismo histórico, que é, como vimos, uma aplicação do materialismo dialético.
Pode assinalar-se, de passagem, que esta maneira de proceder provém, na verdade, do espírito metafísico, que conhecemos e de que temos tanto mal para nos corrigirmos. É, repetimo-lo, na medida em que isolamos as coisas, em que as estudamos de uma maneira unilateral, que cometemos erros.
As más interpretações do marxismo provêm, pois, de não se ter insistido suficientemente no papel das ideologias na história e na vida. Separamos-la do marxismo, e, fazendo-o, separamos o marxismo do materialismo dialético, isto é, dele próprio!
É com prazer que vemos que, desde há alguns anos, graças, em parte, ao trabalho da Universidade Operária de Paris, à qual muitos milhares de alunos devem o conhecimento do marxismo, graças, também, ao trabalho dos nossos camaradas intelectuais que contribuíram com os seus trabalhos e livros, o marxismo reconquistou
o seu rosto verdadeiro e o lugar a que tem direito.

II. — O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos.)
Vamos abordar este capítulo, consagrado ao papel das ideologias, por algumas definições.
A que chamamos uma ideologia? Quem diz ideologia, diz, antes de mais, ideia. A ideologia é um conjunto de ideias que forma um todo, uma teoria, um sistema ou mesmo, por vezes, simplesmente um estado de espírito.
O marxismo é uma ideologia que forma um todo e oferece um método de resolução de todos os problemas.
Uma ideologia republicana é um conjunto de ideias que encontramos no espírito de um republicano. Mas, uma ideologia não é só um conjunto de ideias puras, que se suporiam separadas de todo o sentimento (esta seria uma concepção metafísica); uma ideologia comporta necessariamente sentimentos, simpatias, antipatias, esperanças, crenças, etc. Na ideologia proletária, encontramos os elementos ideais da luta de
classes, mas, também, sentimentos de solidariedade para com os explorados do regime capitalista, os «aprisionados», sentimentos de revolta, de entusiasmo, etc... Ê tudo isso que faz uma ideologia.
Vejamos, agora, aquilo a que se chama fator ideológico: é a ideologia considerada como uma causa ou uma
força que age, que é capaz de influenciar, e é por isso que se fala da ação do fator ideológico. As religiões, por exemplo, são um fator ideológico que devemos ter em conta; têm uma força moral que age de maneira importante.
Que se entende por forma ideológica? Designa-se assim um conjunto de ideias particulares que formam uma ideologia num domínio especializado. A religião, a moral são formas da ideologia, do mesmo modo que a ciência, a filosofia, a literatura, a arte, a poesia. Se quisermos, pois, examinar qual é o papel da história da ideologia, em geral, e de todas as suas formas, em particular, conduziremos este estudo não separando a ideologia da história, isto é, da vida das sociedades, mas situando o papel da ideologia, dos seus fatores e das suas formas na e a partir da sociedade.

III. — Estrutura econômica e estrutura ideológica.
Vimos, ao estudar o materialismo histórico, que a história das sociedades se explica pelo seguinte encadeamento: os homens fazem a história pela sua ação, expressão da sua vontade. Esta é determinada pelas ideias. Vimos que o que explica as ideias dos homens, isto é, a sua ideologia, é o meio social onde se 'manifestam as classes, que são, por sua vez, elas próprias determinadas pelo fator econômico, isto é, no fim
de contas, pelo modo de produção.
Vimos, também, que entre o fator ideológico e o social se encontra o político, que se manifesta na luta ideológica como expressão da luta social.
Se, portanto, examinarmos a estrutura da sociedade à luz do materialismo histórico, vemos que, na base, se encontra a estrutura econômica, depois, acima dela, a social, que sustenta a política, e, por fim, a estrutura ideológica.
Verificamos que, para os materialistas, a estrutura ideológica é o resultado, a cúpula do edifício social, enquanto que, para os idealistas, a estrutura ideológica é a base.
Na produção social da sua existência, os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre que se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social [isto é, formas ideológicas]. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral80.
Vemos, por conseguinte, que é a estrutura econômica a base da sociedade. Diz-se, também, que é a infraestrutura (o que significa a estrutura inferior).
A ideologia, que compreende todas as formas: a moral, a religião, a ciência, a poesia, a arte, a literatura, constitui a supra — ou superestrutura (que significa: estrutura que está no cimo).
Sabendo, como o demonstra a teoria materialista, que as ideias são o reflexo das coisas, que é o nosso ser social que determina a consciência, diremos, pois, que a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis um exemplo de Engels, que o demonstra bem:
O dogma calvinista respondia às necessidades da burguesia mais avançada da época. A sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que, no mundo comercial da concorrência, o sucesso e o insucesso não dependem, nem da atividade nem da habilidade do homem, mas de circunstâncias independentes do seu controle. Estas não dependem nem daquele que quer nem do que trabalha, estão à mercê de forças econômicas superiores e desconhecidas; e isso é particularmente verdadeiro numa época de revolução econômica, quando todos os antigos centros de comércio e todas as estradas comerciais eram substituídos por outros, as Índias e a América abertas ao mundo e os artigos de fé econômica mais respeitáveis pela sua antiguidade — o valor relativo do ouro e da prata — começavam a oscilar e a desmoronar-se81
Com efeito, que se passa na vida econômica para os mercadores? Estão em concorrência. Os mercadores, os burgueses fizeram a experiência desta concorrência, em que há vencedores e vencidos. Muitas vezes, os mais desembaraçados, os mais inteligentes são vencidos pela concorrência, por uma crise que sobrevém e os
abate. Tal crise é, para eles, uma coisa imprevisível, parece-lhes uma fatalidade, e é esta ideia de que, sem razão, os menos astutos sobrevivem, por vezes, à crise, que é transposta na religião protestante. É esta constatação, a que alguns «chegam» por acaso, que alimenta a ideia da predestinação, segundo a qual os homens devem suportar um destino fixado por Deus, para toda a eternidade.
Vemos, depois deste exemplo de reflexo das condições econômicas, de que maneira a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis, ainda, um outro exemplo: consideremos a mentalidade de dois operários não sindicalizados, isto é, não desenvolvidos politicamente; um trabalha numa grande fábrica, em que o trabalho é racionalizado, o outro, numa pequena oficina. É certo que ambos terão uma concepção diferente do patrão. Para um, ele será o explorador feroz, característico do capitalismo; o outro vê-lo-á como um trabalhador, certamente abastado, mas trabalhador, não tirano.
É, na verdade, o reflexo da sua condição de trabalho que determinará a sua maneira de compreender o patronato.
Este exemplo, que é importante, leva-nos, por ser necessário, a fazer algumas Observações.

IV. — Consciência verdadeira e consciência falsa.
Acabamos de dizer que as ideologias são o reflexo das condições materiais da sociedade, que é o ser social que determina a consciência social. Poderia deduzir-se disso que um proletariado deve ter, automaticamente, uma ideologia proletária.
Mas, uma tal suposição não corresponde à realidade, porque há operários que não têm uma consciência de operário.
É preciso, pois, estabelecer uma distinção: as pessoas podem viver em determinadas condições, mas a consciência que possuem pode não corresponder à realidade. É ao que Engels chama: «ter uma consciência falsa».
Exemplo: certos operários são influenciados pela doutrina do corporativismo, que é um regresso à idade média, ao artesanato. Neste caso, há consciência da miséria dos operários, mas não justa e verdadeira. A ideologia é bem um reflexo das condições de vida social, mas não fiel, exato.
Na consciência das pessoas, o reflexo é muitas vezes um reflexo «ao inverso». Constatar o fato da miséria é um reflexo de condições sociais, mas tal reflexo torna-se falso quando se pensa que num retorno ao artesanato será a solução do problema. Constatamos, aqui, uma consciência em parte verdadeira, em parte falsa.
O operário que é monárquico tem, também, uma consciência há um tempo verdadeira e falsa. Verdadeira, porque quer suprimir a miséria que constata; falsa, porque pensa que um rei pode fazer isso. E, simplesmente porque raciocinou mal e escolheu mal a sua ideologia, esse operário pode tornar-se, para nós, um inimigo de classe, ainda que, no entanto, seja da nossa classe. Assim, ter uma consciência falsa é enganar-se ou ser enganado acerca da sua verdadeira condição.
Diremos, pois, que a ideologia é o reflexo das condições de existência, mas não é um reflexo FATAL.
É-nos preciso, aliás, constatar que tudo se preparou para nos dar uma consciência falsa e desenvolver a influência da ideologia das classes dirigentes sobre as exploradas. Os primeiros elementos que recebemos de uma concepção da vida, a nossa educação, a nossa instrução, dão-nos uma consciência falsa. Os nossos laços
na vida, um fundo de provincianismo em alguns, a propaganda, a imprensa, a rádio falseiam também, por vezes, a nossa consciência.
Por conseguinte, o trabalho ideológico tem, pois, para nós, marxistas, uma extrema importância. É preciso destruir a consciência falsa, para adquirir uma verdadeira, não podendo, sem o trabalho ideológico, realizar se essa transformação.
Os que consideram e dizem que o marxismo é uma doutrina fatalista não têm razão, uma vez que pensamos, na verdade, que as ideologias desempenham um grande papel na sociedade, e que é preciso ensinar e aprender essa filosofia que é o marxismo, para a fazer desempenhar o papel de um instrumento e de uma arma eficaz
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V. — Ação e reação dos fatores ideológicos.
Vimos, pelos exemplos de consciência verdadeira e de consciência falsa, que não é preciso querer explicar sempre as ideias pela economia e negar que tenham uma ação. Proceder assim, seria interpretar o marxismo de uma maneira errada.
É certo que as ideias se explicam, em última análise, pela economia, mas também têm uma ação que lhes é própria.
...Depois da concepção materialista da história, o fator determinante nesta é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos outra coisa. Se, depois, alguém deturpa isso, até dizer que o fator econômico é o único determinante, transforma esta proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas as diversas partes da superestrutura... exercem igualmente a sua ação no decurso das lutas históricas,, e determinam, de maneira preponderante, a forma, em muitos casos. Há ação e reação de todos esses fatores no seio dos quais o movimento econômico acaba por abrir o seu caminho, como qualquer coisa de forçado, através da multidão infinita de acasos82.
Vemos, pois, que nos é preciso examinar tudo antes de procurar a economia, e que, se esta é a causa em última análise, é necessário pensar sempre que não é a única.
As ideologias são os reflexos e os efeitos das condições econômicas, mas a relação entre elas não é simples, porque constatamos, também, uma ação recíproca das ideologias sobre a infraestrutura.
Se quisermos estudar o movimento de massas que se desenvolveu, em França, depois de 6 de Fevereiro de 1934, fá-lo-emos, ao menos, sob dois aspectos, para demonstrar o que acabamos de escrever.
1. Alguns explicam essa corrente, dizendo que a sua causa era a crise econômica. É uma explicação materialista, mas unilateral. Tem em conta apenas um fator: o econômico, aqui: a crise.
2. Este raciocínio é, pois, parcialmente exato, mas com a condição de que se lhe acrescente, como fator de explicação, o que pensam as pessoas: a ideologia. Ora, nessa corrente de massas, as pessoas são «antifascistas», eis o fator ideológico. E, se as pessoas são antifascistas, é graças à propaganda que deu origem à Frente popular. Mas, para que esta propaganda fosse eficaz, era preciso um terreno favorável, e o que se pôde fazer em 1936 não era possível em 1932. Enfim, sabemos como, em seguida, esse movimento de massas e a sua ideologia influenciaram, por sua vez, a economia, pela luta social que desencadearam.
Vemos, portanto, neste exemplo, que a ideologia, que é o reflexo das condições sociais, se toma, por sua vez, uma causa dos acontecimentos.
O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., assenta no desenvolvimento econômico. Mas todos reagem igualmente uns sobre os outros, do mesmo modo que sobre a base econômica. Isso não é assim, porque a situação econômica é a causa, só ela é ativa, e tudo o resto é apenas ação passiva. Há, pelo contrário, ação e reação na base da necessidade econômica, que sempre prevalece em última instância83.
É assim, por exemplo, que a base do direito sucessório, suportando a igualdade do estádio de desenvolvimento da família, é uma base econômica. Todavia, será difícil demonstrar que em Inglaterra, por exemplo, a liberdade absoluta de testamentar, e, em França, a sua grande limitação não têm, em todas as suas particularidades, senão causas econômicas. Mas, de maneira muito importante, ambas reagem sobre a economia, pelo fato de influenciarem a repartição da fortuna84.
Para tomar um exemplo mais atual, retomaremos o dos impostos. Todos temos uma ideia sobre eles.
Os ricos querem-nos reduzidos, sendo partidários dos impostos indiretos; os trabalhadores e as classes médias querem, pelo contrário, um sistema fiscal baseado no imposto direto e progressivo. Assim, pois, a ideia que fazemos dos impostos, e que é um fator ideológico, tem a sua origem na situação econômica de cada um, e foi criada, imposta pelo capitalismo. Os ricos querem conservar os seus privilégios, lutando por conservar o modo atual de imposição e reforçar as leis nesse sentido. Ora, estas, que vêm das ideias, reagem sobre a economia, porque matam o pequeno comércio e os artesãos, e precipitam a concentração capitalista:
Vemos, por conseguinte, que as condições econômicas engendram as ideias, mas que estas engendram, também, modificações nas condições econômicas, e é tendo em conta esta reciprocidade das relações que devemos examinar as ideologias, todas as ideologias; e é só em última análise, na raiz, que vemos as necessidades econômicas predominarem sempre.
Sabemos que são os escritores e os pensadores que têm por missão propagar, senão defender as ideologias.
Os seus pensamentos e escritos nem sempre são muito caracterizados, mas, de fato, mesmo nos que têm o aspecto de ser simples contos ou novelas, reencontramos sempre, pela análise, uma ideologia. Esta análise é uma operação muito delicada, e devemos fazê-la com muita prudência. Vamos indicar um método de análise dialética, que será de grande utilidade, mas, para que não se seja mecanicista nem queira explicar o que não é explicável, é preciso prestar muita atenção.
VI. — Método de análise dialética.
Para aplicar bem o método dialético, é necessário conhecer muitas coisas, e, se desconhecemos o seu objeto, é preciso estudá-lo minuciosamente, sem o que se chega, simplesmente, a fazer caricaturas de julgamento.
Para proceder à análise dialética de um livro ou de um conto literário, vamos indicar um método, que poderá ser aplicado a outros assuntos. .
a) É preciso, primeiro, prestar atenção ao conteúdo do livro ou do conto a analisar. Examiná-lo independentemente de toda a questão social, porque nem tudo vem da luta de classes e das condições econômicas.
Há influências literárias, e devemos ter isso em conta. Tentar ver a que «escola literária» pertence a obra. Ter em conta o desenvolvimento interno das ideologias. Praticamente, seria bom fazer um resumo do assunto a analisar e anotar o que mais impressionou.
b) Observar, em seguida, os tipos sociais dos heróis da intriga. Procurar a classe a que pertencem, examinar a ação das personagens e ver se, de qualquer maneira, o que se passa no romance pode ligar-se a um ponto de vista social.
Se tal não for possível, se, razoavelmente, não puder fazer-se isso, então vale mais abandonar a análise do que inventar. Não deve nunca inventar-se uma explicação.
c) Quando se encontrar qual é ou quais são as classes em jogo, é preciso procurar a base econômica, isto é, quais são os meios de produção e a maneira de produzir no momento em que se passa a ação do romance.
Se, por exemplo, for nos nossos dias, a economia é o capitalismo. Veem-se, atualmente, inúmeros contos e romances que criticam, combatem o capitalismo. Mas, há duas maneiras de o fazer:
1. Como revolucionário, que se atira para a frente.
2. Como reacionário, que quer voltar ao passado; é muitas vezes esta forma que se encontra nos romances modernos: tem-se saudades dos tempos de outrora.
d) Uma vez que obtivemos tudo isso, podemos, então, procurar a ideologia, isto é, ver quais são as ideias, os sentimentos, qual é a maneira de pensar do autor.
Ao procurar a ideologia, pensaremos no papel que desempenha, a sua influência no espírito das pessoas que leem o livro.
e) Poderemos, então, chegar a conclusão da nossa análise, dizer porquê um tal conto ou romance foi escrito em tal momento. E denunciar ou louvar, conforme o caso, as suas intenções (muitas vezes inconscientes no autor).
Este método de análise só pode ser bom se nos lembrarmos, ao aplicá-lo, de tudo o que foi dito anteriormente. É preciso pensar que a dialética, se nos trás uma nova maneira de conceber as coisas, exige, também, a quem fala delas e as analisa, o seu perfeito conhecimento.
É-nos necessário, por conseguinte, agora que vimos em que consiste o nosso método, tentar, nos estudos, na nossa vida militante e pessoal, ver as coisas no seu movimento, na sua mudança, nas suas contradições e na sua significação histórica, e não no estado estático, imóvel, vê-las e estudá-las também sob todos os seus aspectos, não de uma maneira unilateral. Numa palavra, aplicar, em tudo e sempre, o espírito dialético
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VII. — Necessidade da luta ideológica.
Sabemos melhor agora o que é o materialismo dialético, forma moderna do materialismo, fundado por Marx e Engels, e desenvolvido por Lenine. Servimo-nos, nesta obra, de textos de Marx e Engels, mas não podemos terminar estes cursos sem assinalar, particularmente, que a obra filosófica de Lenine é considerável85. E por
isso que se fala hoje de marxismo-leninismo.
Marxismo-leninismo e materialismo dialético estão indissoluvelmente unidos, e só o conhecimento do materialismo dialético permite medir toda a extensão, todo o alcance, toda a riqueza do marxismo-leninismo.
Isso leva-nos a dizer que o militante só está verdadeiramente armado ideologicamente se conhecer o conjunto desta doutrina.
A burguesia, que compreendeu bem isso, esforça-se por introduzir, lançando mão de todos os meios, a sua própria ideologia na consciência dos trabalhadores. Sabendo perfeitamente que, de todos os aspectos do marxismo-leninismo, é o materialismo dialético o menos conhecido atualmente, a burguesia organizou contra ele a conspiração do silencio. É penoso constatar que o ensino oficial ignore um tal método, e continue a ensinar-se, nas escolas e universidades, da mesma maneira que há cem anos.
Se, antigamente, o método metafísico dominou o dialético, era, vimo-lo, por causa da ignorância dos homens. Hoje, a ciência deu-nos os meios para demonstrar que o método dialético é o que convém aplicar às pesquisas científicas, e é escandaloso que se continue a ensinar aos nossos filhos, a pensar, a estudar com o método proveniente da ignorância.
Se os sábios, nas suas investigações científicas, já não podem estudar, na sua especialidade, sem ter em conta a interpretação das ciências, aplicando, por tal motivo e inconscientemente, uma parte da dialética, nelas empregam muitas vezes a formação de espírito que lhes foi dada, e que é a de um espírito metafísico. Que
progressos os grandes sábios, que deram já grandes coisas à humanidade — pensamos em Pasteur, Branly, que eram idealistas, crentes—, não teriam realizado, ou permitido realizar, se tivessem tido .uma formação dialética!
Mas, existe uma forma de luta contra o marxismo-leninismo ainda mais perigosa do que esta campanha de silêncio: são as falsificações que a burguesia tenta organizar, mesmo no interior do movimento operário.
Vemos, neste momento, aparecer numerosos «teóricos», que se apresentam como «marxistas» e pretendem «renovar», «rejuvenescer» o marxismo. As campanhas deste gênero escolhem muitas vezes como ponto de apoio os aspectos do marxismo que são menos conhecidos, e, muito particularmente, a filosofia materialista.
Assim, por exemplo, há pessoas que declaram aceitar o marxismo no que respeita à concepção da ação revolucionária, mas não no que se refere à concepção geral do mundo. Declaram que se pode ser perfeitamente marxista sem aceitar a filosofia materialista. De acordo com esta atitude geral, desenvolvem-se diversas tentativas de contrabando. Pessoas que se dizem sempre marxistas querem introduzir, no marxismo, concepções que são incompatíveis com a sua própria base, isto é, com a filosofia materialista. Houve tentativas deste gênero no passado. É contra elas que Lenine escreveu o seu livro «Materialismo e empiriocriticismo». Assiste-se atualmente, num período de larga difusão do marxismo, ao reaparecimento e multiplicação dessas tentativas. Como reconhecer, desmascarar as que, precisamente, atacam o marxismo no seu aspecto filosófico, e se  ignorar a verdadeira filosofia do marxismo?

VIII. — Conclusão.
Felizmente, observa-se desde há alguns anos, na classe operária, em particular, um formidável entusiasmo pelo estudo do conjunto do marxismo e um interesse crescente precisamente pelo estudo da filosofia materialista. Isso é um sinal que indica, na situação atual, que a classe operária sentiu perfeitamente a exatidão das razões que demos, no princípio, a favor do estudo da filosofia materialista. Os trabalhadores
aprenderam, pela sua própria experiência, a necessidade de ligar a prática à teoria e, ao mesmo tempo, a de levar o estudo teórico tão longe quanto possível. A tarefa de cada militante deve consistir em reforçar esta corrente, e dar-lhe uma direção e um conteúdo justos. Estamos contentes por ver que, graças à Universidade Operária de Paris, vários milhares de homens aprenderam o que é o materialismo dialético, e, se isso ilustra, de uma maneira impressionante, a nossa luta contra a burguesia, mostrando de que lado está a ciência, indica-nos também o nosso dever. É preciso estudar. É preciso conhecer e fazer conhecer o marxismo em todos os meios. Paralelamente à luta na rua e no local de trabalho, os militantes devem conduzir a luta
ideológica. O seu dever é defender a nossa ideologia contra todas as formas de ataque, e, ao mesmo tempo, conduzir a contraofensiva pela destruição da ideologia burguesa na consciência dos trabalhadores. Mas, para dominar todos os aspectos desta luta, é preciso estar armado. O militante só o estará verdadeiramente
pelo conhecimento do materialismo dialético.
Tentar edificar uma sociedade sem classes, em que nada impeça o desenvolvimento das ciências, eis uma parte essencial do nosso dever.

Os capítulos foram extraídos da obra do mestre Georges Politzer o fundador, com outros mestres, da Universidade dos Operários de Paris, em 1932. Politzer, morreu no combate  aos invasores alemães, em 1939. A Universidade Operária de Paris voltou a funcionar após o término da Guerra Mundial, mas teve vida curta.