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segunda-feira, 28 de agosto de 2017
O bolchevismo como problema moral - György Lukács
Por György Lukács
O artigo "O bolchevismo como problema moral" foi publicado em dezembro de 1918 no
órgão do Círculo Galileu, Szabad Gondolat (Livre Pensamento). Como se sabe, Lukács
aderiu ao PC Húngaro poucos dias depois da aparição deste ensaio contra o bolchevismo.
Alguns militantes do Partido ficaram impressionados com essa reviravolta e com a rapidez
com que Bela Kun e a direção do PC Húngaro aceitaram o recém-chegado e entregaram
responsabilidades importantes ao "antibolchevique" da véspera.¹
Algumas semanas mais tarde, Lukács, "convertido" ao bolchevismo, escreve Tática e Ética,
que constitui sua resposta comunista a suas hesitações morais em Szabad Gondolat.
Como procuramos mostrar (Cap. I), "O bolchevismo como problema moral" constitui o
último ponto do dualismo neo-kantiano em Lukács, da aposição rígida e sem
compromissos entre o dever-ser e o ser. Trata-se de um escrito eminentemente
"transitório", que recusa o bolchevismo na medida em que é atraído por sua "força
fascinante", e que deve ser examinado sobretudo como etapa decisiva na evolução
ideológica de Lukács, mesmo se ele procura elaborar uma concepção política coerente e
autônoma.
É muito provável que as críticas de Lukács endereçadas ao bolchevismo tenham sido,
direta ou indiretamente, inspiradas por Erving Szabo, que, em artigo publicado em junho
de 1918, no Szabad Gondolat, preconizava o princípio ético absoluto segundo o qual "a lata
por fins puros não podia tolerar meios impuros", e que manifestava a seus amigos mais
íntimos reservas e temores a respeito da política do poder soviético. Essas críticas estavam
também estreitamente ligadas à problemática ética do ensaio de Lukács sobre o idealismo
progressista.
György Lukács*
Não pretendemos ocupar-nos aqui das possibilidades de realização prática do
bolchevismo, nem das consequências úteis ou nocivas de seu eventual acesso ao poder.
Independentemente do fato de que o autor destas linhas não se sente em absoluto
competente para atacar esse gênero de problema, parece entretanto oportuno, a fim de
poder colocar claramente a questão, fazer completa abstração da reflexão sobre as
consequências práticas: a decisão é – como em toda questão importante – de natureza
ética cuja clarificação imanente, justamente do ponto de vista da ação pura, é a tarefa
atualmente primordial. De uma parte, este modo de pôr a questão se justifica pelo fato de
que o argumento frequentemente mais empregado na discussão em torno do bolchevismo,
a saber, se a situação econômica e política está suficientemente madura para sua realização
imediata, nos coloca, a priori, diante a um problema insolúvel; a meu ver, não pode existir
jamais uma situação que possamos reconhecê-la com toda certeza e por antecipação: a
vontade, que se dá como objetivo a realização imediata a qualquer preço, é parte
integrante da situação "madura" tanto quanto as condições objetivas. De outra parte, o
reconhecimento do fato de que a vitória do bolchevismo poderia eventualmente destruir
grandes valores culturais e civilizadores não pode jamais ser um contra-argumento
decisivo para aqueles que o adotam por razões éticas ou histórico-filosóficas. Esses
tomarão consciência desse fato, lamentando-o ou não, mas, percebendo seu caráter
inevitável, nada mudarão – com razão – do objetivo fixado. Porque sabem que tal
perturbação de valores de envergadura mundial não pode produzir-se sem o
aniquilamento de antigos valores, e porque sua vontade, dirigida para a criação de valores
novos, reconhece, em si mesma, forças suficientes para compensar largamente a
humanidade futura da perda dos outros.
Pareceria que depois disso, e para um socialista sério, não poderia sequer haver problema
ético, não restando dúvida quanto à decisão em favor do bolchevismo. Porque se a
imaturidade das condições e o aniquilamento dos valores não contam como obstáculos
essenciais, o problema, provavelmente, coloca-se assim: pode ser bom socialista aquele
que, nesse momento, nos propõe mais uma vez refletir, aguardar seja lá o que form, em
suma, quem nos fala de compromisso? E quando, diante disso, um não-bolchevique referese
ao princípio da democracia – que a ditadura da minoria exclui por natureza e
conscientemente –, os discípulos de Lenin, de acordo com uma das declarações de seu
chefe, reagem retirando do nome do programa de seu partido inclusive o termo
'democracia', e ser declaram simplesmente comunistas. A possibilidade mesma de pôr o
problema ético passa a depender da maneira pela qual se decide se a democracia faz parte
tão-somente da tática do socialismo (como instrumento de combate para o período em que
é minoritário, enquanto luta contra o terror organizado e ilegal das classes opressoras), ou
se é parte integrante dele, de tal modo que seja impossível suprimi-la sem que antes sejam
esclarecidas todas as suas consequências éticas e históricas. Porque, nesse último caso,
para todo socialista consciente e responsável, a ruptura com o princípio da democracia
seria um problema ético extremamente grave.
Raros foram os que tiveram discernimento suficiente para separar a filosofia da história de
Marx de sua sociologia. Do mesmo modo, frequentemente não se percebeu que os dois
pontos cardeais do sistema, a luta de classes e a ordem socialista, chamada a suprimir as
classes e toda opressão, por mais estreita que seja sua interdependência, não são produtos
do mesmo caminho conceitual. A primeira, uma constatação da sociologia marxiana que
fez época, a saber, que a ordem social sempre existiu e que necessariamente tem uma força
motriz, é dos princípios básicos mais importantes dos verdadeiros nexos que compõem a
realidade histórica. A segunda é um postulado utópicos na filosofia da história de Marx:
um programa ético para um mundo novo a vir. (O hegelianismo de Marx, que tem uma
tendência excessiva a colocar os diferentes elementos do real no mesmo plano, contribuiu
para ocultar essa diferença.) Portanto, a luta de classe do proletariado, chamado a conduzir
essa nova ordem social, enquanto luta de classes, não contém em si mesma a nova ordem.
Do único fato da liberação do proletariado, suprimindo a opressão da classe capitalista,
não decorre a destruição de toda opressão de classe, tanto quanto ela não decorria do
resultado das lutas libertadoras e vitoriosas da classe burguesa. Sobre o plano da
necessidade sociológica exclusivamente, isto significava apenas a mudança da estrutura de
classe, a transformação do antigo oprimido em opressor. Para que isso não se reproduza,
para que se chegue enfim à era da verdadeira liberdade sem opressores nem oprimidos, a
vitória do proletariado é, claro uma condição prévia indispensável – porque ela permite a
liberação da última classe oprimida –, mas ela não pode ser mais que uma condição prévia,
um fato negativo. – Para que ela se realize essa era de liberdade é necessário, além da
simples constatação dos fatos sociológicos e das leis dos quais não pode
derivar), querer esse mundo novo: o mundo democrático. Entretanto, esta vontade –
justamente por que não decorre de nenhuma verificação de fato sociológico – e um
elemento essencial da óptica socialista, que não pode ser descartado sem o risco de
derrocar todo o edifício. Porque é esta vontade que faz do proletariado o portador da
redenção social da humanidade, a classe messias da história do mundo. E sem
o pathos desse messianismo, a marcha triunfal sem paralelo da social-democracia teria
sido inconcebível. E se Engels via no proletariado o herdeiro da filosofia clássica alemã, o
fez com razão, porque desse modo se transformou finalmente em ação o idealismo ético e
Kant e de Fichte, que suprimia todo apego terrestre e que queria arrancar de seus eixos –
metafisicamente – o velho mundo. Somente assim pôde-se tornar ação aquilo que neles
era apenas pensamento: pode-se dirigir direto ao fim o que em Schelling, se desliga do
caminho do progresso pela estética, e em Hegel pela teoria do Estado, para se tornar no
fim das contas reacionário. Ainda que Marx tenha construído esse processo históricofilosófico
à maneira hegeliana (List der Idee)², a saber, que é lutando por seus interesses
de classe imediatos que o proletariado chegará a libertar o mundo de todo despotismo, no
instante da decisão – e este instante está aí – torna-se impossível não ver a separação entre
a árida realidade empírica e a vontade ética, utópica, humana. E ver-se-á, então, se o papel
redentor do socialismo consiste realmente em ser o portador ao mesmo tempo submisso e
voluntário da redenção do mundo – ou se não passa de um invólucro ideológico de
interesses de classe, mas que só se diferenciam de outros interesses de classe por seu
conteúdo, e não por sua qualidade ou força moral. (As teorias libertadoras da burguesia do
século XVIII proclamaram e acreditaram igualmente na redenção do mundo, por exemplo,
pela livre concorrência; mas o fato de que não se tratava senão de uma ideologia
construída a partir de interesses de classe, só foi descoberto em plena revolução francesa
no momento da decisão.)
Em consequência, se a ordem social sem opressão de classe – a social-democracia pura –
fosse apenas uma ideologia, então, não teria sentido falar neste momento de problema
moral, de dilema moral. O problema moral aparece precisamente pelo fato de que para a
social-democracia, o objetivo final de toda luta, o que decide e coroa tudo, encontra-se
misto: o sentido final da luta do proletariado é tornar impossível toda luta de classe
posterior, de criar uma ordem social tal que ela não possa aparecer mais, mesmo sob a
forma de pensamento. Eis aqui diante de nós, portanto, sedutora por sua proximidade, a
realização desse objetivo, e é de sua proximidade que nasce o dilema ético. Ou nós
assumirmos a ocasião para realizar esse objetivo, e então nos colocaremos
obrigatoriamente sobre o terreno da ditadura, do terror, da opressão de classe, o que nos
fará trocar a dominação das classes precedentes pela dominação de classe do proletariado,
acreditando que – Satã expulso por Belzebu – esta última dominação de classe, por sua
natureza mais cruel e aberta, se destruirá a si mesma e com ela toda dominação de classe,
ou, então, nós queremos que a nova ordem social seja realidade por meios novos, pelos
meios da verdadeira democracia (porque a verdadeira democracia não existiu até agora
senão como exigência, jamais como realidade, mesmo nos Estados mais democráticos).
Mas, neste caso arriscamo-nos a concluir que, como a grande maioria da humanidade
atualmente ainda não quer a nova ordem social, e nós mesmos não queremos dispor dela
contra sua vontade, devemos esperar, propagar a fé na expectativa, até que a própria
humanidade, dispondo livremente de si mesma e de sua vontade, faça enfim nascer a
ordem de há muito desejada pelos mais conscientes, para os quais era a única solução
possível. O dilema ético vem do fato de que cada atitude contém em si mesma a
possibilidade de crimes monstruosos e de erros incomensuráveis, mas que deverão ser
assumidos com plena consciência e responsabilidade por aqueles que se sintam obrigados
a escolher. O perigo que a segunda solução apresenta é perfeitamente claro: trata-se da
necessidade – provisória – de colaborar com as classes e os partidos que só estão de acordo
com a social-democracia sobre certos objetivos imediatos, mas que permanecem hostis ao
seu objetivo final. A tarefa, então, é encontrar uma forma tal que essa colaboração seja
possível sem que a pureza do objetivo, sem que o pathos de vontade de sua realização
percam seja o que for de sua essência. A possibilidade do erro e do perigo encontra-se no
fato de que é muito difícil, até impossível, sair do caminho direito e direto da realização de
uma convicção qualquer, sem que esse desvio assuma uma certa autonomia, sem que a
diminuição intencional do ritmo da realização opere sobre o pathos da vontade. O dilema,
diante do qual a exigência da democracia coloca o socialismo, é um compromisso externo,
que não deve tornar-se um compromisso interno.
A força fascinante do bolchevismo explica-se pela liberação que resulta da supressão desse
compromisso. Mas aqueles que são enfeitiçados por essa possibilidade nem sempre são
conscientes das responsabilidades que lhes cabem desde logo. Seu dilema torna-se então o
seguinte: pode-se atingir o que é bom por meio de maus procedimentos, pode-se chegar à
liberdade pela via da opressão? Pode nascer um mundo novo quando os meios utilizados
para realizá-lo não diferem senão tecnicamente dos meios detestados e desprezados, com
razão, do mundo antigo? Parece que é possível referir-se, neste caso, à constatação feita
pela sociologia marxista, a saber, que todo desenvolvimento da História consistiu na luta
dos oprimidos e opressores, e que consistirá sempre nisso; que mesmo a luta do
proletariado não pode subtrair-se a essa "lei". Mas se isso fosse verdade – como nós já o
dissemos –, então, todo o conteúdo espiritual do socialismo, excetuando a satisfação dos
interesses materiais imediatos do proletariado, não seria mais do que ideologia. E isto é
impossível. E porque é impossível, não se pode erigir uma constatação de fato histórico em
pilar do valor moral, da vontade de construir a nova ordem social. É preciso, então aceitar
o mal enquanto mal, a opressão enquanto opressão, a nova dominação de
classe enquanto dominação de classe. E é preciso acreditar – e é verdadeiramente credo
quia absurdum est - que dessa opressão não renasça mais uma vez a luta dos oprimidos
pelo poder (pela possibilidade de uma nova opressão), e em consequência de uma série
infinita de lutas eternas sem objetivo e sem razão, mas, ao contrário, que a opressão seja
ela mesma suprimida.
A escolha entre as duas atitudes é, portanto, como em toda questão de ordem moral, uma
questão de fé. Para um observador penetrante, mas talvez superficial nesse caso preciso, se
tantos velhos socialistas provados recusam a posição bolchevique, é porque sua fé no
socialismo estaria abalada. Confesso que não o creio. Porque não acredito que seja
necessário mais fé para o "rude heroísmo" da decisão bolchevique do que para a luta lenta,
aparentemente menos heróica, e entretanto carregada de responsabilidades profundas, a
luta que trabalha a alma, longa e pedagógica, daquele que assume até o fim a democracia.
A primeira atitude aparente de sua convicção imediata, enquanto na segunda, esta pureza
é sacrificada conscientemente para que, por meio desse auto-sacrifício, possa-se realizar a
social-democracia em sua totalidade e não apenas um de seus fragmentos, destacados de
seu centro. Repto: o bolchevismo baseia-se sobre a seguinte hipótese metafísica: o bem
pode surgir do mal, e é possível, como o diz Razoumikhine em Raskolnikov,³ chegar à
verdade mentindo. O autor dessas linhas é incapaz de partilhar essa fé, e isto porque vê um
dilema moral insolúvel na raiz mesma da atitude bolchevique, enquanto a democracia -
acredita – não exige daqueles que a querem realizar consciente e honestamente até o fim
senão uma renúncia sobre-humana e o sacrifício de si. E, entretanto, ainda que esta
solução exija uma força sobre-humana, no fundo não é insolúvel, como o é o problema
moral posto pelo bolchevismo.
_______________________________________________________
1. Cf. J. Lengyel, Visegrader Strasse, Berlim, Dietz Verlag, 1959, p. 140.
* A bolsevizmus mint erkölei problema (O bolchevismo como problema moral). Szabad
Gondolat, dezembro de 1918, reeditado em György Litvan, Laszlo Szucs, A Szociologia elsö
magyar mühelye. Valogatos, Budapest, Tarsadolomtydomanyi Könyvtor, Gondolat, 1973,
vol. II.
2. Em alemão no texto. Na realidade a expressão de Hegel é List der Vernunft, "a astúcia
da Razão".
3. Raskolnikos: título alemão do romance Crime e Castigo de Dostoievsky
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