Privatizá-las-ei porque são públicas!
O governo Temer pretende marcar
uma declaração de intenções, um compromisso mais explícito de sua parte
para com a agenda liberal desmontista.
Por Paulo Kliass*
“Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia”
(frase atribuída ao ex Presidente Jânio Quadros)
Tudo foi realizado de modo a seguir
exatamente o roteiro que estava previsto e prescrito no famoso documento
“Ponte para o futuro”, apresentado ainda durante o ano passado pela
Fundação Ulysses Guimarães, vinculada ao PMDB. À época, a entidade era –
e ainda continua sendo – presidida por Wellington Moreira Franco, que
foi nomeado no final de maio pelo chefe de governo para ocupar a
Secretaria Executiva do estratégico “Programa de Parcerias de
Investimento” (PPI), ligado à Presidência da República.
Vale ressaltar o registro de que esse
importante órgão de formulação do peemedebismo já foi presidido pelos
seguintes dirigentes do partido ao longo dos últimos 17 anos: i) Renan
Calheiros (1999/2001); ii) Moreira Franco (2001/2007); iii) Eliseu
Padilha (2007/2015); e iv) Moreira Franco (2015/atualmente). Essa lista
dá a relevância do cargo e a capacidade de influenciar a formulação de
políticas públicas.
O documento foi apresentado como uma
alternativa de programa de governo, ainda durante o primeiro ano do
segundo mandato da presidenta Dilma, com o intuito explícito de operar
como uma tentativa de qualificação do então vice-presidente junto aos
setores mais vinculados ao sistema financeiro e ao grande capital. A
estratégia do impeachment estava em marcha e a legitimação do postulante
a ocupar o Palácio do Planalto se materializava nas proposições
apresentadas ao longo do texto.
Por ali se lançavam as intenções de
romper com a política de relações diplomáticas e de comércio exterior do
período anterior, escancarando a preferência unilateral de submissão
aos interesses dos Estados Unidos. No mesmo material estavam lançadas as
bases para a reforma fiscal envolvendo congelamento das despesas de
natureza social, com o intuito único de recuperar uma mitológica relação
idealizada entre endividamento público e PIB. Além disso, a necessidade
de uma reforma previdenciária limitadora das despesas da União se
combina à sugestão de desvinculação de tais políticas da sistemática de
reajuste do salário mínimo. No documento também podem ser encontradas as
referências para uma necessária reforma trabalhista, com retirada de
direitos históricos dos trabalhadores, em nome de uma suposta redução do
tão criticado quanto desconhecido “custo Brasil”.
Finalmente, à página 18 encontramos a senha para privatização:
(…) “executar uma política de
desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de
transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas
em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para
complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior
de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de
preferência”(…).
A primeira etapa do PPI prevê a entrega de 25 projetos de natureza
variada ao setor privado. A lista é longa e envolve um conjunto amplo de
setores, sendo a grande parte associada a atividades de infraestrutura e
logística. O registro tragicômico se deve ao fato de que a maioria dos
projetos estava na fila para serem lançados ainda durante a gestão
anterior, de quem o governo atual sempre se disse crítico, pretendendo
guardar uma distância e uma suposta diferença.
Os projetos estão assim distribuídos:
– aeroportos – 4
– terminais de carga – 2
– rodovias – 2
– ferrovias – 3
– campos de petróleo (vários)
– ativos da Cia Pesquisa de Recursos Minerais (vários)
– empresas de distribuição de energia – 6
– usinas hidroelétricas – 3
– empresas de água e saneamento – 3
Durante a cerimônia não foi adiantada
nenhuma informação relativa aos editais nem mesmo a respeito das
condições previstas para os processos de privatização. Apenas foram
mencionadas as datas estimadas em que o governo pretende apresentar os
editais e realizar os leilões. Como os 4 aeroportos já estavam com seus
processos bem avançados, as datas previstas para esses leilões caem no
primeiro semestre do ano que vem. Todos os demais foram agendados
preventivamente para o segundo semestre de 2017 e início de 2018.
A equipe encarregada pelo PPI anunciou
que os projetos deverão contar com uma generosa disponibilidade de
recursos públicos. Um total estimado em R$ 30 bilhões para financiamento
será colocado à disposição dos interessados do capital privado para
viabilizar seus empreendimentos. A origem do montante será distribuída
entre o BNDES, a CEF e o FI-FGTS. Durante o evento nada foi mencionado a
respeito, mas é sabido que tais linhas de financiamento contam com
taxas de custeio bastante subvencionadas, fato esse que deve
sobrecarregar ainda mais os custos financeiros do Tesouro Nacional. Essa
era, aliás, uma das mais pesadas críticas que os atuais integrantes da
equipe econômica faziam ao governo anterior.
Por outro lado, nada foi dito tampouco a
respeito do detalhamento das regras de realização dos leilões e do
estabelecimento de condições mínimas para a aceitação das proposições.
Afinal, é mais do que reconhecida a tendência à minimização dos valores
dos ativos patrimoniais em momentos de recessão econômica. Como os
contratos preveem duração de 30 anos ou mais, aquilo que pode se
converter em bom negócio para o empreendedor privado nesse momento tende
a se revelar uma péssima opção para o Estado.
A esse respeito vale a pena também
observar outra passagem do documento do PMDB. Aqui se observa a intenção
de oferecer todo o tipo de vantagem e garantia ao capital privado, seja
em termos de condições financeiras para a realização dos investimentos,
seja para retirar obstáculos de natureza jurídica, administrativa ou
ambiental á realização plena da acumulação de capital. Na verdade,
trata-se de uma operação muito delicada, envolvendo claramente um
elevado risco para o próprio Estado e para a Nação a médio e longo
prazos.
(…) “promover a racionalização dos
procedimentos burocráticos e assegurar ampla segurança jurídica para a
criação de empresas e para a realização de investimentos, com ênfase nos
licenciamentos ambientais que podem ser efetivos sem ser
necessariamente complexos e demorados” (…)
Ao que tudo indica, tal operação
pretende marcar uma declaração de intenções do chefe do governo, um
compromisso mais explícito de sua parte para com a agenda liberal
desmontista. O governo Temer passa por um momento de crise em sua base
de apoio, onde os setores do capital financeiro não mais parecem
dispostos a oferecer todo e qualquer apoio às medidas encaminhadas pelo
Executivo. Há uma cobrança cada vez mais generalizada pelos meios de
comunicação a respeito de um suposto relaxamento com a questão fiscal,
um mui temido descontrole dos gastos orçamentários. Por outro lado, os
grupos do conservadorismo mais radical reclamam do pouco empenho do
governo e de sua base no Congresso Nacional em avançar as propostas de
reforma previdenciária, de teto para o gasto público e da flexibilização
trabalhista.
Na verdade, em uma conjuntura marcada
pela crise e pela recessão como a atual, não é nada recomendável
promover a venda de patrimônio público. Mesmo sob a lógica liberal, é
sabido que os ganhos para as finanças públicas são muito reduzidos em
razão do rebaixamento patrimonial generalizado que se observa por toda
parte. O único argumento plausível seria a ilusão com a tal das
“expectativas dos empresários”. Mas esses só fazem mover seu instinto
animal caso vislumbrem retornos elevados para seus investimentos. Com a
atual política monetária que nos mantém como campeões mundiais absolutos
no quesito “ganho financeiro”, o capital só irá para atividade
produtiva se contar com mais benesses e generosidades por parte do setor
público. E isso significa maiores gastos por parte do Estado ou menores
receitas pra o fisco com tais operações de privatização.
Assim, face a uma eventual indagação a
respeito de qual a verdadeira razão para transferir esse patrimônio, a
única resposta que resta ao dirigente político no atual momento é aquela
do tipo janista: “Ora, privatizo porque são públicas”. Pano rápido e
ponto final!
*Paulo Kliass é doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Carta Maior
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