Publicado na Revista Mirante
Treze sugestões sobre o quadro político
Por Núcleo Celso Furtado
1- O sentido do processo – Abusando da dialética, o bardo inglês teve
a ocasião de afirmar: “tudo que vive, deve morrer”. Situação que, em
certo sentido, se aplica à atual conjuntura. Se fosse para eleger um
aspecto capaz de recortar, dentro de si, um emblema do movimento
histórico experimentado pela sociedade brasileira, na atual quadra, a
escolha recairia sobre a necessidade da ultrapassagem do legado do
presidente Lula. Não porque deu errado e, sim, por que deu certo. É em
torno das alternativas ao ciclo de transformações inaugurado em 2003 –
agora exibindo sinais de esgotamento – que se deslocam as ações e
análises dos participantes e observadores da vida pública. Refletindo a
heterogeneidade de interesses e aspirações envolvidas, a infinidade de
projetos se desloca na direção de três campos de gravitação política: I-
o espectro neoliberal, que pretende simplesmente o cancelamento do
legado de Lula e de sua passagem nas práticas e no imaginário social dos
brasileiros; II- os setores interessados na consolidação de um projeto
de crescimento econômico, sob a liderança do grande capital, afirmando a
ordem burguesa, com representação dentro e fora do nosso governo e;
III- as vertentes que pretendem construir hoje as fundações de um
projeto de nação cujo embrião está presente no texto da Carta de 1988.
2- Por projeto nacional – Entendemos a mobilização presente de
esforços no sentido de criar as bases teóricas, programáticas e
culturais para, numa dinâmica provavelmente associada ao longo prazo,
pôr em prática as transformações que a sociedade brasileira requer para
se transformar numa nação capaz de assegurar a todos os seus cidadãos o
exercício efetivo de direitos e garantias individuais e, sobretudo,
coletivos.
Entre as medidas a serem adotadas – ainda obstaculizadas pela
correlação de forças atual – se incluem: assegurar o caráter público e
universal à educação e à saúde; implantar o imposto sobre grandes
fortunas; taxar fortemente os lucros das empresas monopolistas; realizar
uma reforma agrária em grande escala combinada com a formação de uma
agroindústria ecológica; submeter o sistema bancário ao interesse
coletivo; assegurar o controle público das ações do Estado;
descriminalizar o aborto; democratizar os meios de comunicação em todos
os níveis; pôr fim à concentração fundiária urbana; garantir o domínio
do país sobre seus recursos materiais, sobretudo os de natureza hídrica;
intensificar os trabalhos de unificação política e econômica dos países
latino-americanos; proteger os biomas ameaçados pelos interesses
econômicos; mudar radicalmente o modelo de transporte público hoje
inviabilizado pela opção pelo aumento da frota de automóveis, entre
outros.
Conquistas, enfim, que deverão ser fruto da ação de uma nova maioria
política e cultural formada pelo proletariado urbano e rural, pelos
camponeses, camadas médias urbanas unidas aos movimentos sociais
expressão dos anseios de mudança da juventude, das mulheres, dos negros,
índios, grupos GLBT e populações quilombolas.
Por certo, tal articulação não se confunde com o atual projeto de
acumulação de capital no qual nosso governo e nosso partido tentam
negociar e inserir algumas reivindicações dos setores da base da
pirâmide social.
3- O ambiente externo – Qualquer projeto de nação tem, na abordagem
das relações entre países e organismos multilaterais, uma importante
ferramenta de compreensão da realidade. Contudo, indagar o papel do
Brasil no mundo não constitui tarefa simples. A cautela recomenda, num
texto de proporções reduzidas como este, a remissão a traços gerais.
Especialmente no que concerne ao ambiente de tensões no qual se opera a
presença do Brasil no cenário externo. A maior delas, a crise econômica
mundial iniciada em 2007. Evento com todas as condições de evoluir para
uma convulsão social e política (em especial na Europa), a crise acelera
a dinâmica de ascensão da China ao status de grande potência econômica.
Nas últimas décadas, o leste asiático se converteu no principal centro
manufatureiro mundial. Apesar da decadência relativa dos EUA como centro
geopolítico (ainda que fortemente agressivo, como atesta a intervenção
no Afeganistão e na Líbia), a economia norte-americana já mostra sinais
de recuperação. Ademais, os EUA continuam sendo a principal
superpotência militar do mundo. Ao Brasil, país semiperiférico situado
na área de influência do Gigante do Norte, mais que promover o
intercâmbio econômico, incumbe ampliar a cooperação diplomática e
cultural com nossos vizinhos da América Latina e da África, vedado o
recurso a protocolos de espoliação de nações mais pobres que a nossa.
4- Dilma e a crise – É no enfrentamento da turbulência causada pela
bolha financeira nos EUA e na Europa que mais transparecem semelhanças
entre as administrações petistas à frente do executivo nacional. Tanto
Dilma quanto Lula priorizaram uma estratégia de crescimento econômico
sem derivas recessivas tão a gosto dos neoliberais. De igual maneira, o
quadriênio inaugurado em 2011 viu expandir o alcance e a variedade dos
programas e políticas sociais. Tendo prosseguido, de igual sorte, as
propostas de correção dos desequilíbrios regionais responsáveis pelo
retorno das regiões Norte e Nordeste ao mapa da atividade econômica
brasileira. Acrescendo a uma lista de símbolos e marcas do governo Lula
que se projetaram no programa – e na ação – de sua sucessora não é
possível esquecer das iniciativas, inclusive as legislativas, para
recuperar e ampliar o poder de compra do salário-mínimo. Seria um ato de
injustiça, no entanto, deixar de observar, em meio a tanta preocupação
com a continuidade, o empenho de Dilma em criar ênfases próprias no que
se refere ao seu estilo de governar. Tais marcas estão visíveis. Elas se
manifestam em fenômenos como a mobilização da presidenta em favor de
uma derrubada consistente dos juros praticados pelas instituições
financeiras, um dreno que asfixia historicamente a economia do país. São
também pontos a contar a favor da atual gestão do executivo o combate –
mais explícito que em Lula – à corrupção no âmbito da administração
pública.
5- O risco de privatização da gestão pública – Sob a superfície da
tensão entre a continuidade e adoção de uma face própria, entretanto, já
afloram indícios de que alguns setores da atual administração vêm
tomando distância do conjunto de princípios e práticas daquilo que se
convencionou chamar de “modo petista de governar”. Os tópicos deste
ajuste são especialmente preocupantes. Entre outros sinais, incluem a
aceleração da transferência da gestão de áreas de atuação do poder
público para a iniciativa de particulares. Em especial, dissemina-se o
formato das chamadas PPPs (parcerias público-privadas) e OSs
(Organizações Sociais), instrumentos de ação cujo impacto sobre as
instituições ainda não foi de forma alguma avaliado. O que se pode
esperar disso? Ao que parece, o aumento da musculatura do grande capital
e sua margem de manobra para relegar o Estado à condição de repassador
de lucros privados. Aliás, diante das dificuldades de controle e
fiscalização de tais parcerias se torna fácil enxergá-las na condição de
mais uma estrela no firmamento da corrupção institucionalizada que
marca a trajetória patrimonialista brasileira.
Curiosamente, os riscos assumidos com a disseminação das PPPs e OSs
pela administração pública parecem distantes do modelo de Estado
originariamente preconizado pela presidenta. Tanto no que se refere ao
discurso quanto à prática. Por certo, Dilma acenou com uma outra agenda
(que está sendo posta em prática, mas de modo parcial). Esse agregado
inclui: profissionalização dos agentes da administração direta e
indireta; racionalização dos processos de gestão; aumento da
transparência das ações do Estado; fiscalização permanente sobre as
concessões e permissões delegadas a particulares; introdução de novos
recursos tecnológicos; e, sobretudo, a democratização do acesso e
controle da população – especialmente os mais pobres – sobre os bens e
serviços públicos. Não é difícil concluir que o eixo estruturante de um
conjunto de políticas assim passaria pelo combate à formação de
monopólios privados. E aí justamente o oposto ocorre.
Concebidos durante os anos de fastígio neoliberal, os mecanismos de
privatização da gestão pública – em especial as chamadas OSs e PPPs –
fazem parte de uma constelação de valores alheia ao pensamento econômico
da esquerda, em seus diversos matizes. Disso ninguém duvida. Mesmo
assim, a presença de tais institutos se acha perigosamente naturalizada
na paisagem da administração pública brasileira desde 1990, inclusive em
governos petistas. Em benefício da cidadania, chegou a hora de
controlar a intensidade e a extensão do uso de instrumentos de gestão
terceirizada. Só assim será possível conceber modelos de transição
capazes de impulsionar o Estado no rumo da afirmação do seu caráter
republicano.
6- O grande capital – Grande beneficiária de uma mudança na economia à
qual não deu causa e à qual, muitas vezes se opôs, a fração mais
endinheirada da classe dominante brasileira – aquela associada aos
interesses da fusão do capital financeiro e indústria, local e externo –
demorou a perceber as oportunidades que se abriam diante de si. Tanto
assim, que apostou duas vezes em candidaturas tucanas em 2006 e 2010.
Mantida à margem da iniciativa política, esse setor – quase tutelado por
Lula – agora aspira à autonomia. Em busca do tempo perdido celebra uma
pax produtiva para investir, com avidez, sobre os recursos públicos
postos à disposição pelas agências governamentais, a exemplo do BNDES
(outra nota preocupante, associada aos humores do “mercado”, acusa o
aumento de aquisição do controle de acionário de grandes empresas
nacionais por corporações transnacionais).
7- O governo e os movimentos sociais – Essa re-acomodação das
relações entre público e privado no âmbito das instituições brasileiras
de Estado coincide – e talvez não seja por acaso – com a deterioração
dos laços entre governo e os atores sociais mais à esquerda. Não à toa,
os movimentos sociais já se pronunciam de uma forma distinta do
comportamento adotado sob Lula. A parceria conflitiva deu lugar ao
dissenso. Definha o diálogo com os ambientalistas, povos da floresta,
coletivos feministas, entre outros grupos; ao mesmo tempo em que emerge
uma truculência inédita no trato das reivindicações dos grevistas da
área do funcionalismo público. Sintomaticamente, o representativo
Congresso Camponês em Brasília, no mês de setembro de 2012 – marco da
unificação de todas as entidades dedicadas aos interesses dos
trabalhadores rurais a exemplo do MST e da Contag – avançou para a
elaboração de um programa e uma prática de autonomia frente às
autoridades constituídas. Essa diretiva adotada pelos trabalhadores do
campo talvez sirva de baliza para o movimento sindical urbano,
atualmente dividido entre o apoio a uma reforma trabalhista destinada a
ceifar direitos historicamente consolidados e a afirmação do caráter
político da ação dos sindicatos.
8- O Congresso e a base aliada – Repercutindo a Crise da
Representação Política que assola a democracia em todos os quadrantes do
globo, o Poder Legislativo Brasileiro também exibe, no entanto,
distorções que lhe são particulares: a principal delas, o vínculo de
subordinação que mantém com executivo desde a época da ditadura militar.
Sinal dos tempos, a coalizão governista não pára de inchar, com a
incorporação, inclusive, de setores ferrenhamente oposicionistas até um
passado recente. Curiosamente, essa formação de maioria parlamentar
pouco ou nada contribui no sentido de dotar de nitidez e consistência o
debate político travado no Senado e na Câmara. A chamada base aliada –
fortemente atravessada pelos interesses corporativos do agronegócio e do
capital financeiro, sem falar dos pleitos gerados pelo conflito entre
diferentes unidades da Federação – frequentemente expõe o planalto a
derrotas em votações importantes, evidenciando a fragilidade das
estruturas e lideranças partidárias. Foi assim no episódio da aprovação
do Código Florestal e na divisão dos royalties do petróleo. Para o
Congresso Nacional, adotar um novo padrão de relacionamento com o
Executivo, figura entre as providências necessárias à recuperação da
Representação, sem a qual a democracia parlamentar se estiola.
9- A oposição liberal – Em seus vários segmentos, incorporou mais uma
tática a seu repertório de possibilidades. Não que tenha renunciado à
dissidência sistemática ou à orquestração dos ataques da mídia
monopolista ao PT e ao governo. No entanto, para além da atitude de
confronto, parte desses setores vêm aderindo à base aliada no Congresso
Nacional e ocupando espaços no executivo em pastas afeitas ao seus
interesses. Para potencializar suas pretensões, criaram um partido, o
PSD, do ex- prefeito Kassab. Aparentemente favorável aos objetivos da
ampliação da sustentação do governo, esse expediente apresenta alguns
problemas: entre os quais, de um lado, pode contribuir para minar os
esforços de reeleição de Dilma, “por dentro”; e, de outro, permite
exercer um discreto aceno a aliados do nosso governo, mesmo os mais à
esquerda, interessados em ampliar sua presença num novo arranjo de
forças, marcado pela exclusão do PT.
10- O Judiciário e o chamado Mensalão – Em sentido diametralmente
oposto ao Congresso, o Judiciário busca reafirmar sua independência e
inteireza moral de uma maneira infeliz. Pelo menos é isso que se
depreende do andamento da ação penal 470, o denominado Mensalão,
julgamento no qual o princípio da inocência presumida foi perigosamente
relativizado. Reagir diante desse equívoco significa, para o PT, além da
solidariedade aos companheiros atingidos por uma decisão de rigor
exagerado, mobilizar a sociedade em favor de uma reforma política cujos
elementos de maior relevo consistam no financiamento público de campanha
e a adoção do voto em lista partidária.
11- O Rio de Janeiro – Para nós, que vivemos e atuamos no Rio de
Janeiro, as modificações no quadro mais geral do país não apresentam
novidades. Um grande ensaio ocorreu por aqui. Tanto no nível da capital
quanto no estado, as tendências operaram no sentido do reforço da
privatização das estruturas da administração pública, sendo o principal
agente de tais processos o PMDB. Fatias inteiras das áreas de
transporte, contratação de pessoal e, principalmente, saúde foram
servidas ao apetite de grandes grupos empresariais. Uma resistência, no
entanto – ainda incipiente – começa a tomar forma. O percentual de votos
dirigido à candidatura de Marcelo Freixo indica o grau de erosão do
apoio às políticas privatistas. Sinaliza, de igual forma, as chances
concretas da candidatura de Lindberg Farias, consensual dentro do campo
petista, desde que seja capaz de articular a política de alianças e a
estrutura logística necessárias a um embate com um inimigo poderoso.
12- O papel do PT – Exibindo a crise mundial como espantalho, a velha
elite busca retomar a iniciativa do processo político e social
brasileiro. Sonha com a retomada do clima das décadas de 1980 e 1990. Já
não sente vergonha de falar abertamente em privatização, aumento de
juros e desnacionalização da economia. Será bem sucedida em seu intento?
Só o futuro dirá. O que se pode prever é que, em vista do predomínio de
setores democráticos e de esquerda no governo da Presidente Dilma, isso
sem falar da firmeza de propósitos da presidenta, é possível construir
uma lógica de construção republicana à frente da condução dos assuntos
de Estado. Entre os destacamentos a se apresentar ao combate, um se
distingue: o Partido dos Trabalhadores, agremiação da qual se espera a
recusa ao papel de homologador dos interesses da afirmação da ordem
burguesa no Brasil.
13- Concluindo – O ciclo de transformações inaugurado em 2003 –
marcado pela bem-sucedida incorporação de milhões de brasileiros mais
pobres ao mercado interno de consumo – atingiu seus limites. E, por
certo, não há receita pronta para dar prosseguimento a esta herança. No
entanto, pelo menos três princípios devem estar contemplados: o
alargamento do estágio de democratização da sociedade; a ativação dos
movimentos sociais; e a orientação do Estado no sentido da afirmação do
seu caráter republicano. Sem a reeleição de Dilma, em 2014, será muito
difícil alcançar esses objetivos.
Núcleo Celso Furtado é um coletivo de base do Partido dos
Trabalhadores – PT-RJ – dedicado à elaboração política e discussão
teórica
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