TERCEIRA LEI: A CONTRADIÇÃO
I. — A vida e a
morte.
II. — As coisas
transformam-se na sua contrária.
III. — Afirmação,
negação e negação da negação.
IV. — Recapitulemos.
V. — A unidade das
contrárias.
VI. — Erros a evitar.
VII. — Consequências
práticas da dialética.
Vimos que a dialética
considera as coisas como estando em perpétua mudança, evoluindo continuamente,
numa palavra, sofrendo um movimento dialético (1.ª Lei).
Este movimento é
possível, porque toda e qualquer coisa não é mais do que o resultado, no
momento em que a estudamos, de um encadeamento de processos, isto é, de fases
que saem umas das outras. E, levando o nosso estudo mais adiante, vimos que
esse encadeamento se desenvolve necessariamente no tempo num movimento
progressivo, «apesar dos retrocessos momentâneos».
Chamamos a esse
desenvolvimento um «desenvolvimento histórico» ou «em espiral», e sabemos que
se gera a si mesmo, por autodinamismo.
Mas, quais são,
agora, as leis do autodinamismo? Quais as que permitem às fases sair umas das
outras?
Chamam-se as «leis do
movimento dialético».
A dialética
ensina-nos que as coisas não são eternas:
têm um começo, uma maturidade, uma velhice, que termina num fim, a morte.
Todas as coisas
passam por essas fases: nascimento, maturidade, velhice, fim. Por que acontece
assim? Por que não são as coisas eternas?
Eis uma velha
pergunta que sempre apaixonou a humanidade. Por que é preciso morrer? Não se
compreende esta necessidade, e os homens, no decurso da história, sonharam com
a vida eterna, com os meios de mudar tal estado de coisas, na idade média, por
exemplo, inventando bebidas mágicas (elixires de juventude ou da vida).
Por que é que o que
nasce é, portanto, obrigado a morrer? Eis uma grande lei da dialética, que
deveremos confrontar, para bem a compreender, com a metafísica.
1—
A vida e a morte.
Do ponto de vista
metafísico, consideram-se as coisas de um modo isolado, tomadas em si mesmas,
e, porque a metafísica as estuda assim, considera-as de uma maneira unilateral,
isto é, de um só lado. É por isso que se pode dizer, dos que as vêem de um só
lado, que são metafísicos. Em poucas palavras, quando um metafísico examina o
fenômeno a que se chama vida, fá-lo sem o relacionar a qualquer outro. Vê a
vida, por
si e em si, de uma
maneira unilateral. Vê-a de um só lado. Se examinar a morte, fará a mesma
coisa; aplicará o seu ponto de vista unilateral, e concluirá dizendo: a vida é
a vida, a morte é a morte. Entre ambas, nada de comum; não se pode estar ao
mesmo tempo vivo e morto, porque são duas coisas opostas, inteiramente
contrárias uma à outra.
Ver assim as coisas,
é fazê-lo de uma maneira superficial. Se as examinarmos um pouco mais de perto,
veremos, primeiro, que não as podemos opor uma à outra, não podemos mesmo
separá-las tão brutalmente, uma vez que a experiência e a realidade nos mostram
que a morte continua a vida, que a morte vem do vivo.
E a vida, pode sair
da morte? Sim. Porque os elementos do corpo morto vão transformar-se para dar
origem a outras vidas e servir de adubo à terra, que será mais fértil, por
exemplo. A morte, em muitos casos, auxiliará a vida, permitirá a esta nascer;
e, nos próprios corpos vivos, a vida só é possível porque há uma contínua
substituição das células que morrem por outras que nascem53.
Portanto, a vida e a
morte transformam-se continuamente uma na outra, e, em todas as coisas,
constatamos a constância desta grande lei: por
toda a parte, as coisas transformam-se na sua contrária.
II.
— As coisas transformam-se na
sua contrária.
Os metafísicos opõem
as contrárias, mas, a realidade demonstra-nos que estas se
transformam uma na outra, que as coisas não permanecem elas próprias, se
transformam nas suas contrárias.
Se examinarmos a
verdade e o erro, pensamos: não há nada de comum entre eles. A verdade é a
verdade, um erro é um erro. Este o ponto de vista unilateral, que opõe
brutalmente as duas contrárias, como se oporia a vida e a morte.
E, todavia, se
dizemos: «Olha, chove!», acontece que, por vezes, ainda não acabamos de o dizer
e já não chove. Essa frase era exata, quando a começamos, e transformou-se em
erro. (Os Gregos já tinham constatado isso, e diziam que, para não errar, era
preciso não dizer nada!)
Do mesmo modo, retomemos
o exemplo da maçã. Vê-se na terra uma maçã madura, e diz-se: «Eis uma maçã
madura». Contudo, estando na terra há um certo tempo, já começa a decompor-se,
de tal forma que a verdade se transforma em erro.
Também as ciências
nos dão numerosos exemplos de leis consideradas, durante muitos anos, como
«verdades», que se revelaram, num dado momento, após os progressos científicos,
como «erros».
Vemos, portanto, que
a verdade se transforma em erro. Mas, será que o erro se transforma em verdade?
No início da civilização,
os homens imaginavam, sobretudo no Egipto, combates entre os deuses, para
explicar o nascer e o pôr do sol; era um erro, na medida em que se dizia que os
deuses empurravam ou puxavam o sol, para
o fazer mover. Mas, a ciência dá parcialmente razão a esse raciocínio, dizendo
que há, efetivamente, forças (puramente físicas, aliás) que fazem mover o sol.
Veremos, pois, que o erro não está
nitidamente oposto à
verdade.
Se, portanto, as
coisas se transformam na sua contrária, como é isso possível? Como se
transforma a vida na morte?
Se houvesse apenas
vida, a vida cem por cento, ela nunca poderia ser a morte, e se a morte fosse
totalmente ela própria, a morte cem por cento, seria impossível que uma se
transformasse na outra. Mas, já existe morte na vida e, por conseguinte, vida
na morte.
Observando de perto,
veremos que um ser vivo é composto de células, que estas se renovam,
desaparecem e reaparecem no mesmo lugar. Vivem e morrem continuamente num ser
vivo, onde existe, portanto, vida e morte.
Sabemos, também, que
a barba de um morto continua a crescer. O mesmo acontece com as unhas e os
cabelos. Eis fenômenos nitidamente caracterizados, que provam que a vida
continua na morte.
Na Rússia,
conserva-se, em condições especiais, sangue de cadáveres, que serve para fazer
transfusões: assim, com o sangue de um morto, refaz-se um vivo. Podemos dizer
que, por conseguinte, no seio da morte há a vida.
A
vida é, pois, igualmente uma contradição «existente nas coisas e nos fenômenos
em si», uma contradição que, constantemente, se apresenta e resolve; logo que a
contradição cessa, a vida cessa também, intervém a morte54.
Assim, as coisas não
só' se transformam umas nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela
própria, mas outra que é a sua contrária, porque
cada coisa contém a
sua contrária.
Toda a coisa é, ao
mesmo tempo, ela própria e a sua contrária.
Se se representa uma
coisa por um círculo, teremos uma força que a impelirá para a vida, empurrando
do centro para o exterior, por exemplo (expansão); mas teremos, também, forças
que a impelirão numa direção oposta, forças de morte, empurrando do exterior
para o centro (compressão).
Assim, no interior de
cada coisa, coexistem forças opostas, antagonismos.
Que se passa entre
essas forças? Lutam. Por conseguinte, uma coisa não é apenas movida por uma
força agindo num só sentido, mas toda a coisa é, realmente, movida por duas
forças de direções opostas. Para a afirmação e
para a negação das coisas, para a vida e para a morte.
Que significa: afirmação e negação das coisas?
Existem, na vida,
forças que a mantêm, que tendem para a sua afirmação. Além dessas, também
existem nos organismos outras que tendem para a negação. Em todas as coisas, há
forças que tendem para a afirmação e outras para a negação, e, entre a afirmação
e a negação, há
contradição.
Portanto, a dialética
constata a mudança; mas, por que mudam as coisas? Porque não estão de acordo
consigo próprias, porque há luta entre as forças, entre os antagonismos
internos, porque há contradição. Eis a terceira lei da dialética: As
coisas mudam, porque contêm em si mesmas a contradição.
(Se somos obrigados,
por vezes, a empregar palavras mais ou menos complicadas (como dialética,
autodinamismo, etc.) ou termos que parecem contrários à lógica tradicional e
difíceis de compreender, não é pelo prazer de complicar às coisas, e, nisso,
imitar a burguesia. Não.
Mas, este estudo, embora elementar, pretende ser tão completo quanto possível e
permitir ler, em seguida, mais facilmente, as obras filosóficas de Marx-Engels
e Lenine, que empregam esses termos. Em todo o caso, uma vez que devemos
empregar uma linguagem que não é usual, procuraremos, no âmbito deste estudo,
torná-la compreensível a todos.)
III.
— Afirmação, negação e negação
da negação.
É necessário
fazermos, aqui, uma distinção entre o que se chama a contradição verbal
—que significa responder «não», quando alguém vos diz «sim»
— e a que acabamos de ver, a chamada contradição dialética, isto é, nos
fatos, nas coisas.
Quando falamos da
contradição que existe no seio da sociedade capitalista, isso não significa
que, sobre certas teorias, uns dizem sim, outros não; quer dizer que há uma
contradição nos fatos, forças reais que se combatem: primeiro, uma força que
tende a afirmar-se, é a classe burguesa que procura
manter-se; depois, uma segunda força social que tende para a negação
da classe burguesa, é o proletariado. A contradição está,
pois, nos fatos, porque a burguesia não pode existir sem criar a sua contrária,
o proletariado. Como disse Marx, “antes de tudo» a burguesia
produz os seus próprios coveiros55.
Para impedir isso,
seria necessário que a burguesia renunciasse a ser ela própria, o que seria
absurdo. Por conseguinte, afirmando-se, criou a sua própria negação.
Tomemos o exemplo de
um ovo que é posto e chocado por uma galinha: constatamos que, nele, se
encontra o germe que, a uma certa temperatura e em certas condições, se
desenvolve. Desenvolvendo-se, dará um pintinho: deste modo, o germe é já a
negação do ovo. Veremos que, sem dúvida, no ovo há duas forças: a que tende
para que permaneça um ovo e a que tende a que se torne pintinho. O ovo está,
portanto, em desacordo consigo próprio, e todas as coisas o estão consigo
mesmas.
Isto pode parecer
difícil de compreender, porque estamos habituados ao modo de raciocinar
metafísico, e é por isso que devemos fazer um esforço para nos habituar a ver,
novamente, as coisas na sua realidade.
Uma coisa começa por
ser uma afirmação que sai da negação.
O pintinho é uma afirmação resultante da negação do ovo. É
esta uma fase do processo.
Mas a galinha será,
por sua vez, a transformação do pintinho, havendo, no centro desta
transformação, uma contradição entre as forças que lutam para que o pintinho se
torne galinha e as que lutam para que permaneça pintinho. A galinha será, pois,
a negação do pintinho, que vinha, por sua vez, da negação do ovo.
A galinha será, por
conseguinte, a negação da negação. E isso é a marcha geral das fases da
dialética.
1. Afirmação diz-se
também Tese.
2. Negação ou
Antítese.
3. Negação da negação
ou Síntese.
Estas três palavras
resumem o desenvolvimento dialético. Empregam-se para representar o
encadeamento das fases, para indicar que cada uma é a destruição da precedente.
A destruição é uma
negação. O pintinho é a negação do ovo, uma vez que, nascendo, o destrói. A
espiga de trigo é, da mesma maneira, a negação do grão de trigo. O grão, na
terra, germinará; essa germinação é a negação do grão de trigo, que dará a
planta, que, por sua vez, florirá e dará uma espiga; esta será a negação da
planta ou a negação da negação.
Vemos, pois, que a
negação de que fala a dialética é uma maneira resumida de falar da destruição.
Há a negação do que desaparece, do que é destruído.
1. O feudalismo foi a
negação do escravagismo.
2. O capitalismo é a
negação do feudalismo.
3. O socialismo é a
negação do capitalismo.
Assim como para a
contradição, em que fizemos uma distinção entre contradição verbal e lógica,
devemos compreender bem o que é a negação verbal, que diz «não», e a dialética,
que quer dizer «destruição».
Mas, se a negação
significa destruição, não se trata de qualquer destruição, mas de uma
destruição dialética.
Assim, quando
esmagamos uma pulga, ela não morre por destruição interna, por negação
dialética. A sua destruição não é o resultado de fases autodinâmicas; é o de
uma mudança puramente mecânica.
A destruição só é uma
negação se for um produto da afirmação, se dela sair. Assim: o ovo chocado,
sendo a afirmação do que o ovo é, origina a sua negação - torna-se pintinho, e
este simboliza a destruição ou negação do ovo, rompendo, destruindo a casca.
No pintinho, vemos
duas forças adversas: «pintinho» e «galinha»; no decurso deste desenvolvimento
do processo, a galinha porá ovos, nova negação da negação. Destes, partirá,
então, um novo encadeamento do processo.
Para o trigo, vemos,
também, uma afirmação, depois, uma negação e uma negação da negação.
Como outro exemplo,
daremos o da filosofia materialista.
No início,
encontramos um materialismo primitivo, espontâneo, que, por ignorante, cria a
sua própria negação: o idealismo. Mas este, negando o antigo materialismo, será
negado pelo moderno ou dialético, porque a filosofia se desenvolve e provoca,
com as ciências, a destruição do idealismo. Também aqui, portanto, temos;
afirmação, negação e negação da negação.
Constatamos,
igualmente, tal ciclo na evolução da sociedade.
Verificamos, no
começo da história, a existência de uma sociedade de comunismo primitivo, sem
classes, baseada na propriedade comum do solo. Mas, tal forma de propriedade
torna-se um entrave ao desenvolvimento da produção, criando, por isso mesmo, a
sua própria negação: a sociedade com classes, baseada na propriedade privada e
na exploração do homem pelo homem. Mas, essa sociedade traz também
consigo a sua própria
negação, porque um desenvolvimento superior dos meios de produção leva à
necessidade de negar a divisão da sociedade em classes, a propriedade privada,
e regressamos, assim, ao ponto de partida: a necessidade da sociedade
comunista, mas num outro plano; no
início, tínhamos uma falta de produtos; hoje, temos uma capacidade de produção
muito elevada.
Observamos, a este
respeito, por todos os exemplos que demos, que regressamos sempre ao ponto de
partida, mas num outro plano (desenvolvimento em espiral), um
plano mais elevado.
Vemos, pois, que a
contradição é uma grande lei da dialética. Que a evolução é uma luta de forças
antagonistas. Que não só as coisas se transformam umas nas outras, mas, também,
cada uma na sua contrária.
Que as coisas não
estão de acordo consigo próprias, porque há, nelas, luta entre forças opostas,
uma contradição interna.
Nota.
Devemos prestar bem atenção a isto: a afirmação, a negação,
a negação da negação são apenas expressões resumidas das várias fases da
evolução dialética, não sendo preciso correr mundo para encontrar essas três
fases por toda a parte. É certo que não as encontraremos sempre todas; mas, por
vezes, só a primeira ou a segunda, não estando a evolução terminada, É
desnecessário, pois, querer ver, mecanicamente, em todas as coisas, essas
mudanças tal qual. Fixemos, sobretudo, que a contradição é a grande lei da
dialética. É o essencial.
IV.
— Recapitulemos.
Sabemos já que a
dialética é um método de pensar, raciocinar, analisar, que permite fazer boas
observações e estudar bem, porque nos obriga a procurar a origem das coisas e a
descrever a história.
Certamente, o antigo
método de pensar, vimo-lo, teve a sua necessidade no seu tempo. Mas, estudar
com o método dialético é constatar, repetimo-lo, que todas as coisas, na
aparência imóveis, são apenas um encadeamento de processos onde tudo tem um
começo e um fim, onde em tudo, finalmente, apesar de todos os insucessos
aparentes e retrocessos momentâneo um desenvolvimento progressivo acaba por se
fazer hoje56.
Só a dialética nos
permite compreender o desenvolvimento, a evolução das coisas; só ela nos
permite compreender a destruição das antigas e o nascimento das novas. Só a
dialética nos faz compreender todos os desenvolvimentos nas suas
transformações, conhecendo-os como todos formados de contrárias. Porque, para a
concepção dialética, o desenvolvimento natural das coisas, a evolução, é uma
luta contínua de forças e princípios opostos.
Assim, pois, para a
dialética, a primeira lei é a constatação do movimento e da mudança: «Nada
permanece o que é, nada fica onde está» (Engels). Sabemos, agora, que a
explicação desta lei reside em que as coisas mudam, não só transformando-se
umas nas outras, mas, também, nas suas contrárias. A contradição é, portanto,
uma grande lei da dialética.
Estudamos o que é, do
ponto de vista dialético, a contradição, mas é necessário insistir ainda, para
fazer certas precisões e, também, para assinalar alguns erros que é preciso não
cometer.
É bem certo que,
primeiro, é necessário familiarizarmo-nos com esta afirmação, que está de
acordo com a realidade: a transformação das coisas nas suas contrárias.
Certamente, ela fere o entendimento, admira-nos, porque estamos habituados a
pensar com o velho método metafísico. Mas, vimos porque é assim; vimos, de uma
maneira detalhada, por meio de exemplos, que isso está
na realidade e porquê as
coisas se transformam nas suas contrárias.
É por isso que se
pode dizer e afirmar que, se as coisas se transformam, mudam, evoluem, é porque
estão em contradição com elas próprias, trazem em si a sua contrária, contêm a
unidade das contrárias.
V.
— A unidade das contrárias.
Cada coisa é uma
unidade de contrárias.
Afirmar isso parece,
à primeira vista, um absurdo. «Uma coisa e a sua contrária nada têm de comum»,
eis o que se pensa em geral. Mas, para a dialética, toda a coisa é, ao mesmo
tempo, ela própria e a sua contrária, uma unidade de contrárias, e é preciso
explicar bem isso.
A
unidade das contrárias, para um metafísico, é
uma coisa impossível: Para ele, as coisas são feitas de uma só peça, de acordo
com elas próprias, e eis que afirmamos o contrário, ao saber que são feitas de
duas peças — elas próprias e as suas contrárias — e que nelas há duas forças
que se combatem, porque as coisas não estão de acordo com elas próprias, se
contradizem a si mesmas.
Se tomarmos o exemplo
da ignorância e da ciência, isto é, do saber, sabemos que, do ponto de vista
metafísico, são duas coisas totalmente opostas e contrárias uma à outra. O que
é ignorante não é um sábio, e o que é um sábio não é um ignorante,
No entanto, se
olharmos os fatos, vemos que não dão lugar a uma oposição tão rígida. Vemos
que, primeiramente, reinou a ignorância, depois é que veio a ciência; e, aí,
verificamos que uma coisa se transforma na sua contrária: a ignorância em
ciência.
Não há ignorância sem
ciência, não há ignorância cem por cento. Um indivíduo, por muito ignorante que
seja, sabe reconhecer, pelo menos, os objetos, a sua alimentação; não
há nunca ignorância absoluta; existe sempre uma percentagem de
ciência na ignorância. A ciência está já, em germe, na ignorância; é, pois,
justo afirmar que a contrária de uma coisa está na coisa em si.
Vejamos, agora, a
ciência. Pode haver ciência cem por cento? Não. Ignora-se sempre qualquer
coisa. Disse Lenine: «O objeto do conhecimento é inesgotável»; o que significa
que há sempre que aprender. Não há ciência absoluta. Todo
o saber, toda a ciência contém uma parte de ignorância57.
O que existe, na realidade, é uma ignorância e uma
ciência relativas, uma mistura de ambas.
Não é, portanto, a transformação
das coisas nas suas contrárias que constatamos neste
exemplo, mas, é, na mesma coisa, a
existência das contrárias ou a unidade das contrárias.
Poderíamos retomar os
exemplos que já vimos: a vida e a morte, a verdade e o erro, e constataríamos
que, num e noutro caso, como em todas as coisas, existe uma unidade das
contrárias, isto é, que cada uma contém, ao mesmo tempo, ela própria e a sua
contrária. É por isso que Engels dirá: Se, na pesquisa, nos inspirarmos
constantemente neste ponto de vista, deixa-se, de uma vez para sempre, de
procurar soluções definitivas e verdades eternas; tem-se sempre consciência do
caráter necessariamente limitado de todo o conhecimento adquirido, da sua
dependência acerca das condições nas quais foi adquirido; não mais deixar-se
iludir pelas antinomias, irredutíveis para a velha metafísica sempre em uso, do
verdadeiro e do falso, do bem e do mal, do idêntico e do diferente, do fatal e
do fortuito; sabe-se que
estas
têm apenas um valor relativo, que o que é conhecido agora como verdadeiro tem o
seu lado falso escondido, que aparecerá mais tarde, assim como o que é
atualmente reconhecido como falso tem o seu lado verdadeiro, graças ao qual
pôde, anteriormente, ser considerado como verdadeiro58.
Este texto de Engels
mostra-nos bem como é preciso compreender a dialética e o sentido verdadeiro da
unidade das contrárias.
VI.
— Erros a evitar.
É preciso explicar
bem essa grande lei da dialética que é a contradição, para não criar
mal-entendidos.
Primeiro, é-nos
necessário compreendê-la de uma maneira mecânica. É desnecessário pensar que,
em todo o conhecimento, existe a verdade mais o
erro, ou o verdadeiro mais o
falso.
Se se aplicasse essa
lei assim, dar-se-ia razão aos que dizem que, em todas as opiniões, há uma
parte de verdadeiro mais uma
parte de falso, e que: «retiremos o que é falso, ficará o verdadeiro, o que é
bom». Diz-se isso em certos meios pretensamente marxistas, em que se pensa que
o marxismo tem razão em mostrar que, no capitalismo, há fábricas, monopólios,
bancos que têm nas mãos a vida econômica, que têm razão para dizer que esta
caminha mal; mas, o que é falso no marxismo, acrescente-se, é a luta de
classes: deixemos de lado a teoria da luta de classes, e teremos uma boa
doutrina. Diz-se, também, que o marxismo, aplicado ao estudo da sociedade, é
justo, verdadeiro, «mas, para quê misturar-lhe a dialética? Eis o lado falso,
retiremos esta, e guardemos como verdadeiro o resto do marxismo!».
São estas
interpretações mecânicas da unidade das contrárias.
Eis, ainda, um outro
exemplo: Proudhon pensava, depois de ter tomado conhecimento da teoria das
contrárias, que, em cada coisa, havia um lado bom e outro mau. Também, ao
constatar que, na sociedade, existe a burguesia e o proletariado, dizia:
Retiremos o que é mau: o proletariado! E é assim que põe de pé o seu sistema de
créditos, que deviam criar a propriedade parcelar, isto é, permitir aos
proletários tornar-se proprietários; dessa maneira, só haveria burgueses, e a
sociedade seria boa.
Sabemos bem, no
entanto, que não há proletariado sem burguesia
e que esta só existe pelo proletariado:
são duas contrárias inseparáveis. Tal unidade é interna, verdadeira: é uma
união inseparável. Não basta, pois, para as suprimir, separar uma da outra.
Numa sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, existem,
obrigatoriamente, duas classes antagônicas: amos e escravos, na antiguidade,
senhores e servos, na idade média, burguesia e proletariado, nos nossos dias.
Para suprimir a
sociedade capitalista, criar a sociedade sem classes, é preciso suprimir a
burguesia e o proletariado — para permitir aos homens livres criar uma
sociedade mais evoluída, material e intelectualmente, para caminhar para o
comunismo na sua forma superior, e não para, como pretendem os adversários,
criar um comunismo «igualitário na miséria».
Devemos, portanto,
prestar bem atenção quando explicamos ou aplicamos, a um exemplo ou a um
.estudo, a unidade das contrárias. Devemos evitar querer, em tudo e sempre,
encontrar e aplicar mecanicamente, por exemplo, a negação da negação, a unidade
das contrárias, porque os nossos conhecimentos são, em geral, muito limitados,
e isso pode levar-nos a situações críticas.
O que conta é o
princípio: a dialética e as suas leis obrigam-nos a estudar as coisas para
descobrir a evolução e as forças, as contrárias que determinam essa evolução.
É-nos preciso, pois, estudar a unidade das contrárias contida nas coisas, e
esta equivale a dizer que uma afirmação não é nunca
uma afirmação absoluta, uma vez que contém, em si mesma, uma
parte de negação. E isso é o essencial: é por
as coisas conterem a sua própria negação que se transformam. A
negação é o «dissolvente»: se não existisse, as coisas não mudariam. Como, de
fato, estas se transformam, é preciso, na verdade, que contenham um princípio
dissolvente. Podemos, de antemão, afirmar que existe, uma vez que vemos as
coisas evoluir,
mas, não podemos
descobrir tal princípio sem um estudo minucioso da própria coisa, porque ele
não tem o mesmo aspecto em todas as coisas.
VII.
— Consequências práticas da
dialética.
Praticamente,
portanto, a dialética obriga-nos a considerar sempre, não apenas um lado das
coisas, mas ambos: não considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a
ignorância. O grande erro da metafísica é, justamente, considerar só um dos
seus lados, julgar de uma maneira unilateral, e se cometemos muitos erros é
sempre na medida em que vemos apenas um lado das coisas, é porque temos, muitas
vezes,
raciocínios
unilaterais.
Se a filosofia
idealista afirma que o mundo existe só nas ideias dos homens, é preciso
reconhecer que há, com efeito, coisas que não existem senão no nosso
pensamento. Isso é verdade. Mas o idealismo é unilateral, vê apenas esse
aspecto. Vê só o homem que inventa coisas que não estão na realidade, e, daí,
conclui que nada existe fora das nossas ideias. O idealismo tem razão em
sublinhar essa faculdade do homem, mas, aplicando apenas o critério da prática,
não vê senão isso.
O materialismo
metafísico também se engana, porque vê apenas um lado dos problemas. Vê o
universo como uma mecânica. A mecânica existe? Sim! Desempenha um papel
importante? Sim! O materialismo metafísico tem, pois, razão em afirmar isso,
mas, é um erro ver só o
movimento mecânico.
Naturalmente, somos
levados a ver um só lado das coisas e das pessoas. Se julgamos um camarada,
vemos, quase sempre, apenas o seu lado bom ou o mau. É preciso ver um e outro,
sem o que não seria possível ter quadros nas organizações. Na prática política,
o método do julgamento unilateral leva ao sectarismo. Se encontramos um
adversário pertencente a uma organização reacionária, julgamo-lo segundo os
seus chefes.
E, no entanto, não é
mais, talvez, que um modesto empregado revoltado, descontente, e não o devemos
julgar como a um importante patrão fascista. Pode, da mesma maneira, aplicar-se
este raciocínio aos patrões, e compreender que, se nos parecem maus, é, muitas
vezes, porque eles próprios são dominados pela estrutura da sociedade, e que, noutras
condições sociais, seriam, talvez, diferentes.
Se atendermos à
unidade das contrárias, consideraremos as coisas sob os seus múltiplos
aspectos. Veremos, portanto, que esse reacionário é reacionário, por um lado,
mas, por outro, é um trabalhador, havendo nele uma contradição. Investigando,
verificaremos porque aderiu a essa organização, procurando, ao mesmo tempo,
indagar porque deveria não ter aderido. E, então, julgaremos e discutiremos,
assim, de uma maneira menos sectária.
Devemos, pois, de
acordo com a dialética, considerar as coisas sob todos os ângulos que se lhe
possam distinguir.
Para resumir, e como
conclusão teórica, diremos: as coisas mudam, porque encerram uma contradição
interna (elas próprias e as suas contrárias). As contrárias estão em conflito,
e as mudanças nascem desses conflitos; assim, a mudança é a solução
do conflito.
O capitalismo contém
esta contradição interna, esse conflito entre o proletariado e a burguesia; a
mudança explica-se por tal conflito, e a transformação da sociedade capitalista
em socialista é a sua supressão.
Há mudança,
movimento, onde haja contradição. Esta é a negação da afirmação, e quando o
terceiro termo, a negação da negação, se alcança, aparece a solução, porque,
nesse momento, a razão da contradição é eliminada, ultrapassada.
Pode, pois, dizer-se
que, se as ciências: a química, a física, a biologia, etc., estudam as leis da
mudança que lhes são particulares, a dialética estuda as mais gerais. Engels
disse: A dialética é apenas a ciência das leis gerais do movimento e do
desenvolvimento da natureza, da sociedade humana o do pensamento59.
53
«Enquanto consideramos as coisas como em repouso e sem vida, cada uma por si,
uma ao lado e após a outra, não nos apercebemos, certamente, de qualquer
contradição entre elas. Encontramos certas propriedades que são, em parte,
comuns, em parte, diversas, até contraditórias, mas que, neste caso, são
repartidas por coisas diferentes, não contendo, portanto, contradição em si
mesmas. Nos limites deste domínio de observação, ficamo-nos pelo modo de pensar
corrente, o metafísico. Mas procederemos de maneira diferente, se considerarmos
as coisas nos seus movimento, mudança, vida, ação recíproca uma sobre a outra.
Aí, caímos imediatamente nas contradições.» (Fríedrích ENGELS: «Anti-Duhring»)
54
Friedrich ENGELS:
«Anti-Duhring»
55
Karl MARX e
Friedrich ENGELS:
«Manifesto do Partido comunista», Ed. Avante
56
Friedridh ENGELS,
«Ludwig Feuerbach»
57
«A história das ciências é a da eliminação progressiva do erro, isto é, da sua
substituição por um erro novo, mas cada vez menos absurdo.» (ENGELS)
58
Friedrich ENGELS:
«Ludwig Feuerbach»
LEITURAS
ENCELS:
«Anti-Dühring», capítulo XIII: Dialética. Negação da negação, p.
161. Capítulo XIV: Conclusão, p. 175.
LÉNINE:
«Karl Marx e a sua doutrina»: A dialética.
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