Em evento de balanço, CNV revelou documentos que comprovariam que a tortura era praticada pelo regime militar desde seu início, antes de existirem as organizações armadas de oposição; que ministros tinham o comando direto do aparato de repressão; e que a Marinha ocultou da presidência da República, já no período democrático, as informações que tinha sobre mortos pela repressão.
Vinicius Mansur
Brasília – Para o balanço de um ano
de seu trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) reservou a
revelação de provas contundentes sobre a brutalidade da ditadura militar
brasileira. O material foi apresentado terça-feira (21), em Brasília,
junto com um resumo repleto de dados sobre as atividades – sobretudo pesquisas documentais - realizadas pela CNV até o momento.
As revelações mais impactantes vieram da historiadora e pesquisadora vinculada à CNV, Heloísa Starling. O estudo liderado por ela, que segue em desenvolvimento, revelou documentos que comprovariam que: a tortura era praticada pelo regime militar desde seu início, antes de existir as organizações armadas de oposição; que os ministros militares participavam da linha de comando do enorme e capilarizado aparato de repressão montado; e que a Marinha ocultou da presidência da República, já no período democrático, as informações que tinha sobre mortos pela repressão.
Tortura antes da luta armada
Starling apresentou um mapa dos centros de detenção e tortura já existentes em 1964 e 1965. “Isso é suficiente para mostrar como a tortura se torna em padrão de repressão antes do início da luta armada no país”, afirmou.
Até o momento, são 36 centros destes já identificados pela CNV, localizados em sete estados do país: Bahia, Pernambuco, Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Os demais estados ainda precisam ser pesquisados.
A maior parte destes centros funcionavam em quartéis, porém eles também existiam dentro do Comando Militar da refinaria da Petrobrás de Mataripe (BA); da Secretaria de Segurança e da Cidade Universitária de Recife (PE); e, em São Paulo, da base aérea de Cumbica, Guarulhos, e do navio prisão Raul Soares, em Santos.
No Rio de Janeiro, estado com maior números de centros de tortura já identificados nesse período – são 16 no total - , um funcionava dentro da Universidade Federal Rural, em Seropédica, outro no navio prisão Princesa Leopoldina e outro no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que à época se localizava dentro do Ministério da Marinha.
Starling também afirmou que, apesar das leis de exceção que recrudesceram a repressão terem sido ditadas em 1968, já em 1967 o general Geisel foi chamado a se explicar no Supremo Tribunal Militar por contas das denúncias de tortura. “O Jornal do Brasil traz uma série de reportagens importantes sobre essa explicação”, informou.
A consciência do terror
A historiadora também apresentou o documento ultra-secreto de 1970 que criava o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do I Exército, cuja jurisdição compreendia os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.
Dentro desse documento, havia o organograma ao qual o Codi - o órgão encarregado do planejamento, controle e coordenação das ações de repressão política - estava submetido e nele estavam incluídos os ministros militares em sua linha de comando. O documento é assinado pelo então Chefe do Estado-Maior do I Exército Carlos Alberto Cabral Ribeiro. “Isso evidencia a responsabilidade do Estado brasileiro”, disse Starling.
Segundo a historiadora, trata-se de uma inovação para a bibliografia sobre a estrutura de repressão da ditadura, que até então só havia comprovado que o comando chegava até o segundo nível. “Nós temos muitos depoimentos que dizem que chegava [a linha de comando] até os ministros militares, mas não tínhamos ainda nenhum documento rubricado pelo Chefe do Estado-Maior que mostrasse [isso]”, explicou.
Outra novidade a bibliografia, segundo a pesquisadora, é que o comandante do Codi sempre é o comandante do Exército.
Ocultação pela Marinha
A partir da análise de um extenso prontuário de pessoas mortas produzido em dezembro de 1972 pelo Cenimar, a CNV descobriu que a Marinha ocultou informações dos poderes legislativo e executivo, em 1993.
Durante o governo Itamar Franco, o então ministro da Justiça, Maurício Correa, solicitou aos comandantes militares informações requisitadas pelo Congresso Nacional sobre a ditadura. A resposta dada pela Marinha, entretanto, oculta as mortes - que já haviam sido registradas por eles em 1972 - de 11 pessoas, entre elas o deputado federal Rubens Paiva.
Segundo Heloísa Starling, a Marinha havia produzido 12.072 páginas de prontuários referentes a estas 11 pessoas. “A Marinha brasileira ocultou deliberadamente informações e documentação do estado brasileiro já no período democrático. Ela ocultou essas informações da Presidência da República, do Ministério da Justiça e da Câmara dos Deputados”, sentenciou.
O ministro da Marinha de Itamar franco era Ivan Serpa.
Um ano de CNV
O relatório de atividades apresentados pela CNV resgata que a comissão instalada em 16 de maio de 2012 tem como missão descobrir e resgatar os fatos relacionados às graves violações dos direitos humanos entre 1946 e 1988, com especial atenção aos fatos decorrentes do regime instalado pelo golpe de 1964.
Para isso, uma das linhas de atuação da CNV é a pesquisa atualmente desenvolvida por 13 grupos de trabalho que contam 60 pessoas, entre assessores, consultores e pesquisadores ad-hoc. Outras 60 deverão ser incorporadas.
Outra linha de atuação são as coletas de depoimentos de testemunhas, vítimas e agentes institucionais. Para isto Já foram realizadas 15 audiências públicas em oito estados (Goiás, Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná, Rio Grand do Sul e São Paulo) e no Distrito Federal . Já foram coletados 268 depoimentos e foram levantados 337 novos nomes para depoimentos, dos quais 240 já se sabe que estão vivos e já foram localizados.
A CNV também já assinou 18 Acordos de Cooperação Técnica com Comissões da Verdade Estaduais.
Segundo o integrante da CNV, Paulo Sérgio Pinheiro, a comissão irá focar o trabalho de investigação é na reconstituição da estrutura dos órgãos de repressão do regime implantado em 1964 e no levantamento das mortes. “A comissão não tem vítimas VIP”, disse, rebatendo críticas e garantindo que a CNV se esforçará para abranger o maior número possível de pessoas afetadas pela ditadura.
Dados apresentados no relatório
- Já foram identificadas a existência, à época do regime militar, de 250 estruturas de informação instaladas em ministérios, autarquias, fundações, universidades e empresas públicas. Eram essas estruturas, chamadas de Divisões de Segurança e Informações e Assessorias de Segurança e Informações, que davam capilaridade ao Sistema Nacional de Informações (SISNI), cujo núcleo era o Serviço Nacional de Informações (SNI).
- Só na Divisão de Informações da Petrobras Foram localizados mais de 400 rolos de microfilme. Havia órgãos do tipo nos ministérios da Educação, Saúde, Comunicação, Minas e Energia, Agricultura, Justiça, Relações Exteriores, entre outros.
- O acervo de documentos disponíveis a CNV somam atualmente 19 milhões de página, que devem estar totalmente digitalizadas em julho.
- Há 202 documentos produzidos pela Aeronáutica no Arquivo Nacionalse que se referem à Guerrilha do Araguaia. Já o acervo do SNI teve 695 dossiês selecionados sobre o tema, ultrapassando as 21 mil páginas.
- Os primeiros levantamentos sugerem que cerca de 50 mil pessoas foram presas só em 1964 em operações que visavam localizar pessoas cujos nomes estavam em listas previamente preparadas. Só nos navios presídio “Raul Soares” e “Almirante Alexandrino” estiveram presas cerca de 600 pessoas.
- Cerca de 3,3 mil latino-americanos chegaram ai Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo político. Porém, apenas 1380 teriam conseguido o status de refugiados e todos eles teriam sido transferidos pelo Acnur a locais “seguros” a pedido do governo brasileiro, a grande maioria na Europa. 90% deles seriam argentinos e uruguaios.
- O serviço secreto do Uruguai conseguiu, com ajuda do Brasil e da Argentina, levar de volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos entre 1976 e 1979.
- Um levantamento inicial identificou 97 padres católicos e 3 pastores deportados pelo regime.
- Há 223 casos já identificados de violação dos direitos humanos contra camponeses com participação direta ou indireta de agentes da ditadura. Centenas de outras violações contra camponeses cometidos por fazendeiros, grileiros e jagunços, sem necessária participação de agentes da ditadura, estão em análise.
- O Relatório Figueiredo, produzido por uma Comissão de Inquérito Administrativo do Ministério do Interior, instalada em julho de 1967, é uma das principais referências sobre violação de direitos e até assassinato de índios durante a ditadura. O documento tem 7 mil páginas, foi dado por desaparecido por décadas e foi descoberto por parceiros da CNV, não revelados.
- A CNV está desenvolvendo um sistema próprio de softwares de mineração de textos, destinados a vasculhar as milhões de páginas. Também faz parte do projeto da comissão a construção de um Sistema de Informação, que reunirá, no futuro, o conjunto de informações produzidas, recebidas e pesquisadas pela CNV, tornando-se fonte pública de pesquisa.
Confira aqui o relatório completo da CNV
As revelações mais impactantes vieram da historiadora e pesquisadora vinculada à CNV, Heloísa Starling. O estudo liderado por ela, que segue em desenvolvimento, revelou documentos que comprovariam que: a tortura era praticada pelo regime militar desde seu início, antes de existir as organizações armadas de oposição; que os ministros militares participavam da linha de comando do enorme e capilarizado aparato de repressão montado; e que a Marinha ocultou da presidência da República, já no período democrático, as informações que tinha sobre mortos pela repressão.
Tortura antes da luta armada
Starling apresentou um mapa dos centros de detenção e tortura já existentes em 1964 e 1965. “Isso é suficiente para mostrar como a tortura se torna em padrão de repressão antes do início da luta armada no país”, afirmou.
Até o momento, são 36 centros destes já identificados pela CNV, localizados em sete estados do país: Bahia, Pernambuco, Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Os demais estados ainda precisam ser pesquisados.
A maior parte destes centros funcionavam em quartéis, porém eles também existiam dentro do Comando Militar da refinaria da Petrobrás de Mataripe (BA); da Secretaria de Segurança e da Cidade Universitária de Recife (PE); e, em São Paulo, da base aérea de Cumbica, Guarulhos, e do navio prisão Raul Soares, em Santos.
No Rio de Janeiro, estado com maior números de centros de tortura já identificados nesse período – são 16 no total - , um funcionava dentro da Universidade Federal Rural, em Seropédica, outro no navio prisão Princesa Leopoldina e outro no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que à época se localizava dentro do Ministério da Marinha.
Starling também afirmou que, apesar das leis de exceção que recrudesceram a repressão terem sido ditadas em 1968, já em 1967 o general Geisel foi chamado a se explicar no Supremo Tribunal Militar por contas das denúncias de tortura. “O Jornal do Brasil traz uma série de reportagens importantes sobre essa explicação”, informou.
A consciência do terror
A historiadora também apresentou o documento ultra-secreto de 1970 que criava o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do I Exército, cuja jurisdição compreendia os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.
Dentro desse documento, havia o organograma ao qual o Codi - o órgão encarregado do planejamento, controle e coordenação das ações de repressão política - estava submetido e nele estavam incluídos os ministros militares em sua linha de comando. O documento é assinado pelo então Chefe do Estado-Maior do I Exército Carlos Alberto Cabral Ribeiro. “Isso evidencia a responsabilidade do Estado brasileiro”, disse Starling.
Segundo a historiadora, trata-se de uma inovação para a bibliografia sobre a estrutura de repressão da ditadura, que até então só havia comprovado que o comando chegava até o segundo nível. “Nós temos muitos depoimentos que dizem que chegava [a linha de comando] até os ministros militares, mas não tínhamos ainda nenhum documento rubricado pelo Chefe do Estado-Maior que mostrasse [isso]”, explicou.
Outra novidade a bibliografia, segundo a pesquisadora, é que o comandante do Codi sempre é o comandante do Exército.
Ocultação pela Marinha
A partir da análise de um extenso prontuário de pessoas mortas produzido em dezembro de 1972 pelo Cenimar, a CNV descobriu que a Marinha ocultou informações dos poderes legislativo e executivo, em 1993.
Durante o governo Itamar Franco, o então ministro da Justiça, Maurício Correa, solicitou aos comandantes militares informações requisitadas pelo Congresso Nacional sobre a ditadura. A resposta dada pela Marinha, entretanto, oculta as mortes - que já haviam sido registradas por eles em 1972 - de 11 pessoas, entre elas o deputado federal Rubens Paiva.
Segundo Heloísa Starling, a Marinha havia produzido 12.072 páginas de prontuários referentes a estas 11 pessoas. “A Marinha brasileira ocultou deliberadamente informações e documentação do estado brasileiro já no período democrático. Ela ocultou essas informações da Presidência da República, do Ministério da Justiça e da Câmara dos Deputados”, sentenciou.
O ministro da Marinha de Itamar franco era Ivan Serpa.
Um ano de CNV
O relatório de atividades apresentados pela CNV resgata que a comissão instalada em 16 de maio de 2012 tem como missão descobrir e resgatar os fatos relacionados às graves violações dos direitos humanos entre 1946 e 1988, com especial atenção aos fatos decorrentes do regime instalado pelo golpe de 1964.
Para isso, uma das linhas de atuação da CNV é a pesquisa atualmente desenvolvida por 13 grupos de trabalho que contam 60 pessoas, entre assessores, consultores e pesquisadores ad-hoc. Outras 60 deverão ser incorporadas.
Outra linha de atuação são as coletas de depoimentos de testemunhas, vítimas e agentes institucionais. Para isto Já foram realizadas 15 audiências públicas em oito estados (Goiás, Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná, Rio Grand do Sul e São Paulo) e no Distrito Federal . Já foram coletados 268 depoimentos e foram levantados 337 novos nomes para depoimentos, dos quais 240 já se sabe que estão vivos e já foram localizados.
A CNV também já assinou 18 Acordos de Cooperação Técnica com Comissões da Verdade Estaduais.
Segundo o integrante da CNV, Paulo Sérgio Pinheiro, a comissão irá focar o trabalho de investigação é na reconstituição da estrutura dos órgãos de repressão do regime implantado em 1964 e no levantamento das mortes. “A comissão não tem vítimas VIP”, disse, rebatendo críticas e garantindo que a CNV se esforçará para abranger o maior número possível de pessoas afetadas pela ditadura.
Dados apresentados no relatório
- Já foram identificadas a existência, à época do regime militar, de 250 estruturas de informação instaladas em ministérios, autarquias, fundações, universidades e empresas públicas. Eram essas estruturas, chamadas de Divisões de Segurança e Informações e Assessorias de Segurança e Informações, que davam capilaridade ao Sistema Nacional de Informações (SISNI), cujo núcleo era o Serviço Nacional de Informações (SNI).
- Só na Divisão de Informações da Petrobras Foram localizados mais de 400 rolos de microfilme. Havia órgãos do tipo nos ministérios da Educação, Saúde, Comunicação, Minas e Energia, Agricultura, Justiça, Relações Exteriores, entre outros.
- O acervo de documentos disponíveis a CNV somam atualmente 19 milhões de página, que devem estar totalmente digitalizadas em julho.
- Há 202 documentos produzidos pela Aeronáutica no Arquivo Nacionalse que se referem à Guerrilha do Araguaia. Já o acervo do SNI teve 695 dossiês selecionados sobre o tema, ultrapassando as 21 mil páginas.
- Os primeiros levantamentos sugerem que cerca de 50 mil pessoas foram presas só em 1964 em operações que visavam localizar pessoas cujos nomes estavam em listas previamente preparadas. Só nos navios presídio “Raul Soares” e “Almirante Alexandrino” estiveram presas cerca de 600 pessoas.
- Cerca de 3,3 mil latino-americanos chegaram ai Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo político. Porém, apenas 1380 teriam conseguido o status de refugiados e todos eles teriam sido transferidos pelo Acnur a locais “seguros” a pedido do governo brasileiro, a grande maioria na Europa. 90% deles seriam argentinos e uruguaios.
- O serviço secreto do Uruguai conseguiu, com ajuda do Brasil e da Argentina, levar de volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos entre 1976 e 1979.
- Um levantamento inicial identificou 97 padres católicos e 3 pastores deportados pelo regime.
- Há 223 casos já identificados de violação dos direitos humanos contra camponeses com participação direta ou indireta de agentes da ditadura. Centenas de outras violações contra camponeses cometidos por fazendeiros, grileiros e jagunços, sem necessária participação de agentes da ditadura, estão em análise.
- O Relatório Figueiredo, produzido por uma Comissão de Inquérito Administrativo do Ministério do Interior, instalada em julho de 1967, é uma das principais referências sobre violação de direitos e até assassinato de índios durante a ditadura. O documento tem 7 mil páginas, foi dado por desaparecido por décadas e foi descoberto por parceiros da CNV, não revelados.
- A CNV está desenvolvendo um sistema próprio de softwares de mineração de textos, destinados a vasculhar as milhões de páginas. Também faz parte do projeto da comissão a construção de um Sistema de Informação, que reunirá, no futuro, o conjunto de informações produzidas, recebidas e pesquisadas pela CNV, tornando-se fonte pública de pesquisa.
Confira aqui o relatório completo da CNV
Publicado em Carta Maior
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