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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

É preciso dizer não à paz entre os escombros

 

Flávio Ricardo Vassoler em Carta Maior

Divulgação

Caro leitor, cara leitora: quantas vezes vocês já se depararam com ruas de sua cidade chamadas General Fulano, Coronel Beltrano e Major Sicrano? Aqui em São Paulo, muitas vezes me sinto em uma parada militar ao transitar pelas ruas/casernas. Mal parece que, em 1964, os militares golpistas, como verdadeiros delegados do Departamento de Estado norte-americano e da Central Intelligence Agency, também conhecida como CIA, depuseram o então presidente João Goulart e as instituições democráticas. Sempre que passamos pelo centro da cidade, somos emparedados pelo Elevado (Artur da) Costa e Silva, o tenebroso Minhocão.

Mal parece que, no dia 13 de dezembro de 1968, durante o governo arbitrário do General Costa e Silva, foi decretado o Ato Institucional nº 5, instrumento que recrudesceu sobremaneira o cerceamento das liberdades políticas e civis.
Ora, a pergunta que desponta é inequívoca: se caminhamos para três décadas de democracia após o retorno dos militares golpistas aos quartéis, por que a sociedade brasileira ainda precisa conviver com os escombros da ditadura? O leitor e a leitora bem sabem que a elite brasileira, entre as mais truculentas e excludentes do planeta, lança mão da democracia apenas taticamente. Como o espectro vermelho que rondava a América Latina naufragou com a Guerra Fria, os EUA consentiram que o Brasil promulgasse a Constituição de 1988. No mais, que a mão invisível dos lobbies privados nacionais e internacionais emendem a “Constituição Cidadã” para que nossa democracia permita a mais plena liberdade de concorrência – e reincidência.

A elite brasileira, que por ora exercita uma mistura eclética de democracia e cinismo, apregoa as liberdades civis guarnecida por muros de 15 metros encimados por cercas de arame farpado. Seguranças munidos de fuzis sorriem para as criancinhas que brincam no playground. Eis por que a sociedade brasileira ainda precisa conviver com os escombros da ditadura. E o mal-estar em questão é narrado por Paulo Henrique Fontenelle, diretor do documentário Dossiê Jango (2013). Por que a milicada golpista ainda é homenageada pelas ruas e avenidas das cidades brasileiras enquanto se reitera a possível farsa histórica de que o presidente João Goulart morreu de ataque cardíaco?

Talvez pelo mesmo motivo que leva o visitante de primeira viagem que chega à Cidade Universitária da USP a ficar deslumbrado com os portões amplos da entrada principal. (O visitante incauto mal desconfia de que os mesmos portões amplos pelos quais milhares de carros passam todos os dias também convidam tanques de guerra para um passeio pelo campus. E tanto pior para os “comunas” da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, também conhecida como FFLCH, se o DOPS escolher o vão amplo da Faculdade de História para sentenciar o paternalismo militar: os estudantes devem estudar; os milicos e seus porões é que devem transgredir.)

Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart, líderes da Frente Ampla (e civil) que passou a se contrapor à ditatura militar. (Quando o oportunista Carlos Lacerda se dá conta de que os militares não lhe permitirão ser presidente do Brasil, “é preciso se opor à ditadura, eu não tenho compromisso com o erro, apoiei o golpe, mas agora vejo que os militares estão caminhando na direção errada”.) As três figuras civis pairavam como um espectro sobre a caserna. Que tal, então, se a Doutrina da Segurança Nacional começasse a silenciá-los?

Em agosto de 76, JK morre em um acidente de carro. O automóvel colidiu com outro veículo que não foi identificado – havia marcas de tinta preta sobre o que restou da porta do carro do ex-presidente. O motorista, por sua vez, sofreu uma perfuração na parte anterior do crânio por um objeto metálico de rápida aceleração. (Talvez por não ter morrido na hora, o motorista pode ter sido alvejado com um tiro na cabeça.) A autópsia chegou a atestar que um prego teria perfurado o crânio do motorista durante o acidente. (O cinismo respaldado por fuzis não precisa ter vergonha de si mesmo.)

Carlos Lacerda, em março de 77, foi tratar uma gripe em uma clínica próxima de sua residência na cidade do Rio de Janeiro. A gripe como causa mortis. (Haveria potássio no soro intravenoso de Lacerda?)

Jango, de fato, era cardíaco – eis a enfermidade que o acometeu em dezembro de 76. Mas seria esdrúxulo pensar que seus remédios haviam sido trocados? De vasodilatadores para vasoconstritores. Quando o corpo de Jango retornou da Argentina, onde o ex-presidente estava exilado, para o Brasil, militares escoltaram o séquito fúnebre e a autópsia foi terminantemente proibida. Desde então, o Brasil não sabe se o presidente que queria realizar fundamentais reformas de base no Brasil – nomeadamente, a reforma agrária – teve morte natural ou foi assassinado.

Dossiê Jango é um documentário pródigo no estabelecimento de ilações sobre as razões político-históricas para o possível assassinato de João Goulart. Para nós, brasileiros, desponta uma profunda indignação capitaneada por João Vicente Goulart, o filho de Jango que vem lutando há muito tempo para que a verdade sobre o falecimento de seu pai venha à tona. Que seja feita a autópsia e que exames idôneos e isentos possam atestar se Jango teve morte natural em decorrência de um ataque cardíaco ou se substâncias outras ocasionaram a sua morte. Nesse sentido, é preciso cobrar uma posição efetiva da Comissão da Verdade. Qual será, inclusive, o posicionamento da presidente Dilma Rousseff, que chegou a ser torturada pelos agentes da ditadura?

A elite reacionária que narra – e omite – a história do Brasil anistiou os presos e exilados políticos, assim como os algozes e torturadores. Mas a tortura é um crime imprescritível. Que dizer, então, do possível assassinato político de um ex-presidente democraticamente eleito? Enquanto países como Chile e Argentina põem atrás das grades seus ex-ditadores, generais e agentes dolosos, a importante Comissão da Verdade apura o que aconteceu no Brasil durante os 21 anos de ditadura militar (1964-85). A partir da descoberta e da denúncia dos crimes da ditadura, haverá punições efetivas para os criminosos da história brasileira? Saberemos se Jango foi assassinado? O dossiê vem sendo construído. Cabe aos movimentos sociais, aos partidos políticos de esquerda e a todos aqueles que têm vinculação com a transformação da realidade exigir que a verdade histórica venha à tona. Somente assim os escombros da ditadura serão efetivamente soterrados.

(*) Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.


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