Mercado e saúde não têm se revelado uma boa combinação: custos elevados, mau atendimento, negativas de exames e de cirurgias. O setor público não se sai melhor. O corporativismo e uma política deliberada de privatização contribuem para isso. É nesse contexto que as reações ao Mais Médicos precisam ser analisadas
por Paulo de Tarso Soares, Ana Paula Paulino da Costa, José Paulo Guedes Pinto
Le Monde Diplomatique
O que ocorre na medicina não é diferente do que ocorre no resto da economia capitalista. A luta entre patrão e empregado, a tal luta de classes, faz que o trabalho direto seja substituído pelas máquinas. E esse processo não é indolor.
Os equipamentos médicos, em geral produzidos por empresas monopolistas, estão cada vez mais caros. Só são lucrativos se operados em grande escala. Clínicas e hospitais são uma resposta a isso. A centralização de capital ocorre também no lado da demanda, mediante os convênios de saúde que aglutinam pacientes. A monopolização (poder de mercado via cartelização) avança, com a omissão e mesmo com a cumplicidade das instâncias (Executivo, Legislativo e Judiciário) que, supostamente, deveriam coibi-la. Ela só não avança entre os médicos, que cada vez mais se transformam em assalariados (explícitos ou disfarçados).
Mercado e saúde não têm se revelado uma boa combinação: custos elevados, empobrecimento/assalariamento dos médicos, mau atendimento ao público, dificuldades para marcação de consultas, negativas de exames e de cirurgias. O setor público não se sai melhor. O corporativismo e uma política deliberada de privatização contribuem para isso. É nesse contexto que as reações ao Programa Mais Médicos precisam ser analisadas.
Como a profissão de médico é afetada pelo processo descrito? Excluindo os médicos que trabalham nos poucos centros de excelência, esse profissional, hoje, basicamente ouve as queixas dos pacientes, pede exames e receita remédios num modo simplificado. Ele não precisa mais de tanto estudo, de tanto conhecimento de doenças. A tal medicina baseada em evidências e os protocolos transferiram o conhecimento médico para o computador. Ele é quase um operador de computadores.
O fantasma da proletarização atemoriza os médicos. Mas convenhamos, a medicina que estão praticando facilita isso. Ouvir sintomas, inseri-los em um programa de computador que lhe devolve os exames a serem solicitados e os remédios a serem receitados − tais tarefas precisam mesmo de mais do que quinze a vinte minutos com cada paciente? Os convênios pagam mesmo tão pouco aos médicos? Com R$ 30 por consulta não dá mesmo para sonhar com riqueza e prestígio social, mas o médico que faz em média três consultas por hora, trabalhando oito horas por dia, durante vinte dias no mês, gera R$ 14.400 ao final do mês. Isso é pouco?
Ah, responderão os médicos, como amortizo/pago os elevados custos com a minha formação? Mais um personagem, então, entra em cena, pois a centralização de capital também ocorre na educação. Assim, além da monopolização dos equipamentos e dos convênios, a monopolização na educação também “espreme” os médicos.
Isso é tudo? Não! Com o conhecimento médico embutido no computador é preciso que todo e qualquer médico tenha mesmo tantos anos de estudo? Não se está colocando na graduação o que deveria estar na pós-graduação? Dito de outra forma: o perfil da demanda por saúde está de acordo com o perfil da oferta de saúde? É racional formar tantos médicos para lidar com doenças graves quando a maioria dos problemas é de simples resolução? Parece-nos que não! O país precisa muito mais de médicos de família do que médicos de hospital terciário.
Ir para o interior soluciona o problema do assalariamento/empobrecimento? Do ponto de vista privado, os dados indicam que não. Não há por que supor qualquer ilusão monetária nos médicos. A cidade grande é muito atrativa. Os custos de migração são altos, especialmente para as cidades pequenas.
Mas, se é assim, por que a reação histérica, descabida, contra a vinda de médicos estrangeiros, especialmente dos médicos cubanos? A resposta está em que o Programa Mais Médicos afronta a lógica perversa aqui descrita e mexe fundo na ideologia predominante.
Um estetoscópio, um termômetro, um medidor de pressão e outro de glicemia, com a formação adequada, são suficientes para atender a esmagadora maioria dos casos. A presença de mais médicos em locais carentes, sem dúvida, promove um salto quantitativo e qualitativo na saúde local, além de reduzir a pressão sobre os hospitais, que hoje vivem lotados de casos simples e de casos graves. Os controles de pressão e de diabetes mais a divulgação de noções de puericultura fazem isso. O atendimento básico a uma população carente não será feito consumindo os recursos milionários que a área da saúde tanto ambiciona.
O médico que não conseguiu ser uma estrela vê-se espremido por todos os lados. Ideologicamente, no entanto, ele só vê problema na proletarização, pois ela é a negação do sonho de ficar rico, de ascensão social etc. A formação especialista do médico não o ajuda a olhar para o contexto. Treinado em ciência à laGalileu, ele não procura as causas, não olha para o processo, apenas faz associação de eventos e, no caso, considera: evento A (proletarização) versusevento B (sonho de riqueza).
Interesses inconfessáveis e preconceitos afloram. Não se pode desprezar o temor de que os estrangeiros venham concorrer aqui nas grandes cidades. A história está cheia de exemplos de proletários lutando contra proletários. Os cubanos, ademais, remetem o imaginário para o socialismo, tão em baixa desde a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS. Médico cubano joga na cara a proletarização que tanto repugna o médico sonhador com riquezas e prestígio social.
A irracionalidade é flagrante. A medicina cubana, reconhecida como excelente pela Organização Mundial da Saúde, é acusada de ser de quinta categoria. Toma-se como demagógica uma política de saúde na qual se inclui o Programa Mais Médicos, a qual é diferente da irracionalidade prevalecente no Brasil: a formação de médicos assessórios dos monopólios que dominam a saúde é incompatível com a realidade financeira do nosso país. A prova “tipo OAB” para os médicos é veementemente recusada para os médicos nacionais, mas querem exigi-la (Revalida) dos cubanos, um corporativismo mascarado em defesa da lei (corporativa) e da saúde pública. Chegaram a chamar os cubanos de escravos de Fidel, pois eles receberão menos do que o governo brasileiro pagará à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que repassará os recursos ao governo de Cuba, mas esquece-se, omite-se, ignora-se, tapa-se a vista para o fato de que essa é a regra no capitalismo. Receber menos que o valor gerado, no capitalismo, é liberdade, mas no chamado socialismo é escravidão. Irônico? Não! Trágico.
Paulo de Tarso Soares
Doutor em Economia (FEA-USP)
Ana Paula Paulino da Costa
Mestre em Contabilidade e Controladoria (FEA-USP) e doutora em Administração – Estudos Organizacionais (EAESP/FGV-SP).
José Paulo Guedes Pinto
Professor doutor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Ilustração: Andre Dahmer
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