∗Michael Löwy∗∗
.
Neste estranho final de século de
um mundo deixado aos nacionalismos mortíferos, às “faxinas étnicas”, às guerras
tribais e à rivalidade feroz dos tubarões financeiros pelo controle do mercado
mundial, é interessante aproveitar o aniversário de 1917 para revisitar o sonho
dos revolucionários de Outubro: uma livre federação socialista de república s
autônomas. Como foi elaborada a reflexão dos bolcheviques sobre a questão
nacional e em que medida sua prática, nos primeiros anos da União Soviética,
esteve à altura dos princípios expressos ?
A herança marxiana, à exceção de
algumas grandes linhas estratégicas – a unidade internacionalista dos
trabalhadores, a recusa da opressão de um povo sobre outro – era bastante
limitada nesse terreno.
Mesmo que se faça abstração dos
preocupantes deslizes de Engels em 1848-1850 – a teoria dos “povos sem
história” (eslavos do sul) – , faltava aos fundadores do socialismo moderno uma
reflexão mais aprofundada sobre a questão nacional e suas implicações para o
movimento operário. É verdade que se bateram pela independência da Polônia, mas
não é evidente que o tenham feito em nome de um
princípio geral – direito à
autodeterminação dos povos – ou simplesmente porque os poloneses lutavam contra
a Rússia czarista, principal fortaleza da reação na Europa. Mais interessantes
sãos seus escritos sobre a Irlanda, que parecem – após hesitação inicial –
esboçar uma perspectiva mais ampla: somente a libertação nacional do povo
oprimido permite ultrapassar a divisão e os ódios nacionais e unir os operários
das duas nações contra seus inimigos comuns, os capitalistas
1. A primeira grande obra marxista sobre a questão
nacional é, sem dúvida, La question des natinalités et la social-démocratie 2(1917) de Otto Bauer (1987). Ao definir a nação como produto inacabado
de um processo histórico constantemente em andamento, o pensador
austro-marxista deu uma importante contribuição ao combate à fetichização do
fato nacional e aos mitos reacionários da “nação eterna”, pretensamente
enraizada no “sangue e no solo”. Seu programa de autonomia nacional cultural
era uma proposta rica e construtiva, mas ficava num impasse frente a uma
questão política capital: o direito democrático de cada nação se separar e
constituir um Estado independente.
Alguns marxistas do Império
russo, como os militantes judeus do Bund3 e alguns
movimentos socialistas caucasianos ou bálticos, manifestaram muito interesse
pelas teses de Otto Bauer e de seus amigos austro-marxistas. Mas este não foi o
caso das
correntes majoritárias do Partido
Operário Social-Democrata Russo. Sua posição comum, adotada durante o congresso
do POSDR de 1903 – antes da cisão! – afirma, no item 9, o direito à autodeterminação
das nações do Império Russo.
Rosa Luxemburgo era bastante
reservada no que se refere a essa concepção. Hostil ao separatismo nacional – e
concretamente à palavra de ordem de independência da Polônia, que ela
considerava, por razões econômicas, como “utópica” – preconizava, como programa
de uma revolução contra o Império czarista, a autonomia regional, concebida
como auto-administração de cada província, região ou município no contexto de
um Estado democrático multinacional. Ela distinguia sua posição da defendida
pelos austro-marxistas que, segundo Rosa, ergueriam barreiras entre as
nacionalidades.
Leon Trotsky, na sua brochura de
1914, La Guerre et l’Internationale, parece hesitar entre uma postura de tipo
economicista, que deduz da internacionalização da economia o iminente
desaparecimento dos Estados nacionais, e um procedimento mais político que
reconhece no direito à autodeterminação das nações a condição da paz entre os
povos. Na mesma época, num artigo sobre “Nation et économie” (1915), reconhece
explicitamente a importância histórica do fator nacional: “ a nação constitui
um fator ativo e permanente da cultura humana. E no regime socialista a nação, liberada
da corrente da dependência política e econômica, será chamada a desempenhar um
papel fundamental no desenvolvimento histórico...” (Trotsky, 1975: 48).
Antes de entrar no debate, Lênin
envia, em 1913, um bolchevique georgiano, Joseph
Vissarionovitch Djugashvili, a
Viena, para elaborar um texto que exporia, de modo sistemático, a posição de
seu partido, fiel à resolução de 1903 do POSDR Contrariamente a uma lenda tenaz
– para a qual o próprio Trotsky contribuiu, ao fazer a biografia de Stalin – a
brochura do georgiano em questão não foi escrita sob a inspiração direta de
Lênin. Este parece ter ficado um pouco decepcionado com o resultado, pois só a
cita, nos seus numerosos textos sobre a questão nacional, uma única vez, en
passant, e entre parênteses, num artigo de 28 de dezembro de
1913. Sem dúvida, a brochura de
Stalin defendia a tese central dos bolcheviques: o direito à separação das
nações do Império russo. Mas, sobre um número de questões importantes, estava
em contradição direta com as idéias de Lênin, tais como serão
desenvolvidas ao longo dos anos
seguintes4.
Para citar apenas dois exemplos:
1. Stalin só reconhecia como
nações os povos com uma comunidade de língua, de território, de vida econômica
e de “formação psíquica”. É inútil procurar tal visão a-histórica, dogmática,
rígida e petrificada da nação em Lênin – que, aliás,rejeitava explicitamente o
conceito de “caráter nacional” ou particularidade psicológica” das nações,
emprestado de Otto Bauer por Stalin.
2. Stalin não fazia distinção
entre nacionalismo de opressores e de oprimidos, isto é, entre o nacionalismo
grão-russo do Estado czarista e o dos povos oprimidos – poloneses, judeus,
tártaros, georgianos, etc. Os dois caminham lado a lado, como
manifestações de um “chauvinismo
grosseiro”. Ora, como veremos, esta distinção ocupa um lugar central na reflexão de Lênin.
O ponto de partida de Lênin, como
o de Marx, Rosa Luxemburgo ou Trotsky, era o
internacionalismo proletário. É
com relação a esta premissa política básica que aborda a questão nacional. Mas,
ao contrário de alguns de seus camaradas, Lênin percebe o laço dialético entre
o objetivo internacionalista e os direitos nacionais. Antes de tudo, porque –
para utilizar uma metáfora que o fundador do partido bolchevique gostava muito
– só o direito ao divórcio garante o livre casamento: somente a liberdade de
separação torna possível uma livre e voluntária união, associação ou fusão
entre as nações. Em seguida, porque – como Marx e Engels haviam compreendido no
que se refere à Irlanda – só o reconhecimento, pelo movimento
operário da nação dominante, do direito à autodeterminação da nação dominada,
permite eliminar o ódio e a desconfiança dos oprimidos e unir os proletários
das duas nações num combate comum contra a burguesia.
A insistência de Lênin sobre o
direito à separação não significa de modo algum que fosse favorável ao
separatismo e à divisão infinita dos Estados conforme as linhas de fratura
nacional.
Ao contrário, espera que, graças
à livre disposição que os povos têm de seu destino, os Estados multinacionais
se mantenham: “quanto mais o regime democrático de um Estado se aproxima da
inteira liberdade de separação, mais serão raras e fracas, na prática, as
tendências à separação, pois as vantagens dos grandes Estados, tanto do ponto
de vista do progresso econômico como dos interesses da massa, são
indubitáveis...” (Lenin, 1968: 160).
O que distingue Lênin da maioria
de seus contemporâneos é que ele dá ênfase – tanto no que diz respeito à
questão nacional como em outros domínios – ao aspecto propriamente político da
contradição. Enquanto os outros marxistas vêem sobretudo a dimensão econômica,
cultural ou “psíquica” do problema, Lênin insiste, em seus artigos dos anos de
1913 a 1916, no fato de que a questão do direito das nações a disporem de si
próprias “remete inteira e exclusivamente ao campo da Democracia política”, ou seja, ao campo do direito à
separação política, à constituição de um Estado nacional independente (Lenin,
1968: 158).
É inútil dizer que o aspecto
político da questão nacional, para Lênin, não é o mesmo dos chanceleres,
diplomatas, e, após 1914, dos exércitos em guerra. Para ele, é indiferente
saber se uma ou outra nação terá ou não um Estado independente, ou quais serão
as fronteiras entre dois Estados. Seu objetivo é a democracia e a unidade
internacionalista do proletariado, que exigem ambas o reconhecimento do direito
à autodeterminação das nações. Com este objetivo, defende com insistência a
unificação, num mesmo partido, dos trabalhadores e dos marxistas de todas as nações
que viviam no âmbito de um mesmo Estado, o Império Czarista – russos,
ucranianos, poloneses, judeus, georgianos... – para poder lutar contra o
inimigo comum: a autocracia, as classes dominantes.
A principal objeção que se
poderia formular à posição de Lênin, sobre a questão nacional é a recusa total
da problemática austro-marxista da autonomia nacional cultural – defendida na
Rússia sobretudo pelo Bund. A proposta leninista de autonomia administrativa
local pelas nações não dava conta dos problemas das nacionalidades
extraterritoriais como, por exemplo, os judeus5.
A hesitante política praticada
pelos diferentes governos “burgueses” que se sucederam após a Revolução de
Fevereiro de 1917, incapazes de romper com a herança do czarismo, favoreceu a
captação dos sentimentos nacionais pelos bolcheviques: como escreveu Trotsky,
na História da Revolução Russa, a torrente nacional, assim como a agrária,
desembocava no rio da Revolução de Outubro”.
Em que medida a prática de Lênin
e de seus camaradas no poder esteve conforme aos princípios enunciados nos
textos teóricos e nas resoluções partidárias? É difícil de responder a esta
pergunta, tanto é complexa, confusa e contraditória a política nacional do
Estado soviético durante os anos de formação da URSS. O que predomina é,
inevitavelmente, uma grande dose de pragmatismo, de empirismo e de adaptação às
circunstâncias, com múltiplas distorções das doutrinas bolcheviques
sobre a questão nacional.
Algumas dessas “adaptações” foram
positivas, no sentido de maior democracia pluralista. Outras, ao contrário,
constituíram violações brutais do direito dos povos a disporem de si próprios:
entre estes dois extremos, há uma vasta “zona cinzenta”...
Apenas uma semana após a tomada
do poder, os revolucionários de Outubro publicam uma declaração que afirma
solenemente a igualdade de todos os povos da Rússia e seu direito à autodeterminação,
até mesmo à separação. Muito rapidamente o poder soviético reconheceu – em parte,
como uma situação de fato, mas também por um autêntico desejo de romper com as
práticas imperiais e de reconhecer os direitos nacionais – a independência da
Finlândia, da Polônia e dos países bálticos (Lituânia, Letônia, Estônia). O
destino da Ucrânia, das nações do Cáucaso e de outras regiões “periféricas” foi
decidido durante a guerra civil com, na maior parte dos casos, uma vitória dos bolcheviques
“locais”, mais ou menos – de acordo com os casos – ajudados pelo Exército
vermelho em formação6.
A primeira “distorção positiva”
foi a Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado, de 1918, redigida
por Lênin. Era um apelo à formação de uma federação de repúblicas soviéticas,
fundada sobre a aliança livre e voluntária dos povos. Esta afirmação explícita
do princípio federativo é uma verdadeira mudança com relação às posições
anteriores de Lênin e de seus camaradas, que – como dignos herdeiros da
tradição jacobina – eram hostis ao federalismo e favoráveis a um Estado
unitário e
centralizado. Embora não fosse
explicitamente assumida nem justificada teoricamente, tratou-se de uma mudança
altamente positiva7.
Outra “adaptação democrática” foi
a prática do poder soviético sobre a minoria judia. Antes de 1917, Lênin e os
bolcheviques sempre atacaram as teses austro-marxistas e seus partidários
judeus na Rússia – o Bund. Porém, não deixaram de adotar, ao longo dos primeiros
anos da revolução, uma política inspirada, em larga escala, pela autonomia nacional
cultural. O ídiche obtém o estatuto de língua oficial na Ucrânia e na
Bielo-Rússia e revistas, bibliotecas, jornais, editoras, teatros e até mesmo centenas
de escolas de ídiche se desenvolveram. Em Kiev foi criado um Instituto
Universitário Judeu que rivalizava com o célebre YIVO de Vilna. Ou seja,sob a
égide dos sovietes, e no contexto de uma política de autonomia cultural,
assistia-se a um verdadeiro desabrochar cultural ídiche – enquadrado, é verdade,
pelo “despotismo esclarecido” da Yevsekzia, a seção judia do partido
bolchevique, composta em grande parte por antigos bundistas e sionistas de
esquerda ganhos ao comunismo pela Revolução
de Outubro8.
Quanto às violações dos direitos
democráticos dos povos, fazendo-se abstração de condições mais ou menos
discutíveis da “sovietização” da Ucrânia e das nações caucasianas, dois casos
se apresentam como particularmente significativos: a invasão da Polônia, em
1920, e a da Geórgia, em 1921.
Violentamente hostil aos
Sovietes, o regime polonês do Marechal Pilsudski, manipulado e apoiado pelo
imperialismo francês, invadiu a Ucrânia soviética em abril de 1920 e chegou até
Kiev.
A contra-ofensiva do Exército
Vermelho logo o obriga a recuar, mas as forças soviéticas perseguiram o invasor
e violaram a fronteira polonesa, chegando em agosto às portas de Varsóvia –
antes de serem obrigados, por sua vez, a recuar para o ponto de partida. A decisão
de invadir a Polônia foi tomada pela direção soviética, sob o impulso do
próprio Lênin – contra a opinião de Radek, Trotsky e Stalin, que, pelo menos
uma vez, estiveram de acordo. Certamente não se tratava de um projeto de
anexação da Polônia, mas de “ajudar” os comunistas poloneses a tomarem o poder,
estabelecendo uma república soviética polonesa. O que não impede que tenha sido
uma verdadeira e evidente
violação do princípio da
autodeterminação dos povos: como o
próprio Lênin repetia inúmeras vezes, não cabia ao Exército vermelho impor o
comunismo a outros povos. O caráter efêmero e precário desta iniciativa limita contudo
seu alcance – mesmo tendo deixado rastros na memória coletiva polonesa.
Ainda mais grave foi o caso
georgiano. República independente, reconhecida como tal pelo poder soviético –
acordos de paz de 1920 –, dirigida por um governo menchevique apoiado pela
grande maioria da população (o campesinato), a Geórgia foi, entretanto,
invadida em fevereiro de 1921 pelo exército vermelho e
“sovietizada” à força. Tratou-se, sem dúvida, do caso mais flagrante e mais
brutal de desrespeito, pelo Estado soviético em formação, ao direito
democrático dos povos a disporem de si próprios.
A iniciativa foi tomada por
dirigentes bolcheviques de origem georgiana, Stalin e Ordjonikidze, que a
justificaram em nome de uma pretensa insurreição geral dos operários e
camponeses georgianos sob direção comunista – na verdade uma iniciativa bastante
minoritária de um grupo bolchevique, perto da fronteira soviética – contra o
governo menchevique. Avalizada por Lênin e pela direção soviética, a invasão
instalou, após um mês de combate, um governo bolchevique em Tíflis, assegurando
assim a associação da Geórgia à
Federação Soviética.
A hostilidade da maioria da
população a esta imposição “externa” se manifestou de modo explosivo em 1924
com a insurreição popular massiva dirigida pelos mencheviques.
Trotsky estava ausente de Moscou,
em viagem aos Urais, e não participou desta decisão. Logo, é surpreendente que
tenha decidido endossar, diante da opinião pública russa e internacional, a responsabilidade
desta operação, escrevendo um panfleto que legitima a sovietização forçada da Geórgia:
Entre vermelhos e brancos(1922).
Este texto, um dos mais polêmicos do fundador do Exército vermelho, assim como Terrorismo
e comunismo, pertence ao período mais radicalmente “substitucionista” de sua vida política. Nos dois casos, sob a
bandeira de denunciar o “democratismo pequeno-burguês” de Kautsky e da
social-democracia, corre o risco de eliminar inteiramente a democracia.
Mesmo que se aceite (o que está
longe de qualquer evidência) todas as virulentas críticas dirigidas por Kautsky
à “Gironda georgiana” dos mencheviques – regime burguês, anticomunista, protegido pelo
imperialismo inglês, dissimuladamente aliado a Wrangel e aos “brancos”,
repressivo contra os militantes bolcheviques georgianos (presos em massa) –,
ainda não se vê como justificar a invasão: o governo burguês finlandês era, sob
todos os aspectos, bem pior (execuções massivas de militantes
comunistas) e, no entanto, jamais
se cogitou de invadir a Finlândia independente. O argumento da “insurreição
bolchevique georgiana” é, de acordo com a confissão de Lominadze,
secretário-geral do partido comunista georgiano, pouco substancial: “Nossa
revolução começou em 1921, pela conquista da Geórgia por meio das baionetas do
Exército vermelho. A sovietização da Geórgia apresentou-se como uma espécie de
ocupação pelas tropas russas”9.
O pior foi que – para retomarmos
uma expressão utilizada por Rosa Luxemburgo em 1918, ao criticar seus camaradas
bolcheviques – Trotsky “fez da necessidade uma virtude”: tentou formular uma justificação
teórica, “de princípio”, sobre a intervenção na Geórgia. Seu primeiro argumento
é tipicamente economicista: “É normal que o direito dos povos a disporem de si
próprios não saberia estar acima das tendências unificadoras, características
da economia socialista” (Trotsky, 1970: 154-155). Para ele, a federação
soviética deve combinar a unificação econômica com a liberdade das
diferentes culturas nacionais. O
que desaparece, neste raciocínio, é pura e simplesmente o aspecto propriamente
político – a liberdade de separação, condição indispensável à livre união.
Pior: Trotsky chegou a sugerir
que o direito à autodeterminação só se aplica em caso de luta contra o Estado
burguês: “não somente reconhecemos, como apoiamos com todas as nossas forças, o
princípio do direito dos povos a disporem de si próprios onde for dirigido
contra os Estados feudais, capitalistas, imperialistas. Porém, onde a ficção da
autonomia nacional, nas mãos da burguesia, se transforma em arma contra a
revolução do proletariado, não temos nenhuma razão para agirmos de modo
diferente do que fazemos com todos os princípios da democracia transformados em
opostos
pelo Capital” (1970: 159). Ao ler
estas linhas, temos dificuldades em compreender porque Trotsky se opunha tão
categoricamente à invasão da Polônia em 1920: a independência da Polônia não se
tornaria – bem mais que a da Geórgia, que jamais ousara invadir o
território soviético – “uma arma nas mãos da burguesia contra o proletariado”?
Ainda mais interessante – e, em
certa medida, contradiz o que acabamos de ler – é o trecho seguinte: “a
República soviética de modo algum se dispõe a substituir com sua força armada
os esforços revolucionários do proletariado de outros países. A conquista do
poder por este proletariado deve ser o fruto de sua própria experiência política.
Isto não significa que os esforços revolucionários dos trabalhadores – da
Geórgia, por exemplo – não possam encontrar um apoio armado externo.
Porém, é preciso que este apoio
venha no momento em que a necessidade foi preparada pelo desenvolvimento
anterior e amadureceu na consciência da vanguarda apoiada pela simpatia da
maioria dos trabalhadores” (Trotsky, 1970: 158).
Esta afirmação tem a vantagem de
reafirmar o princípio democrático do direito das nações a disporem de si
próprias, justificando um “apoio externo” somente aos movimentos que gozam da simpatia
da maioria popular. O problema é que, com toda evidência, este não foi o caso
na Geórgia...
Foi a respeito da Geórgia que
aconteceu o confronto entre Lênin, já gravemente doente, e Stalin, em
1922-1923: o “último combate de Lênin”, de acordocom o título do célebre livro
de Moshé Lewine(1967). As divergências entre os dois dirigentes bolcheviques se
acentuaram ao longo dos anos, mas a partir de 1920 pode-se perceber uma lógica
radicalmente diversa na elaboração de seus escritos e
propostas. Enquanto Lênin insiste
na necessidade de uma atitude tolerante com relação aos nacionalismos
periféricos e denuncia o chauvinismo grã-russo, Stalin vê nos movimentos
nacionais centrífugos o principal adversário, e se esforça em construir um
aparelho estatal unificado e centralizado. Após a invasão da Geórgia em 1921, propõe
que se tente chegar a um compromisso com Jordânia, o líder dos mencheviques georgianos. Stalin, ao contrário, em julho, ao
pronunciar um discurso em Tíflis, insiste na necessidade de “esmagar a hidra do
nacionalismo” e de “destruir a ferro incandescente” os sinais de vida desta
ideologia (Villanueva, 1987: 455-459).
O conflito eclode, no que diz
respeito, de um lado, às divergências entre Stalin e Ordjonikidze, de outro,
entre os comunistas georgianos, Mdivani e seus amigos apoiados por Lênin, com
relação ao grau de autonomia da República Soviética da Geórgia na União
Soviética em formação. Para além das questões locais, o que estava em questão
era simplesmente o futuro da URSS. Lênin, numa luta tardia e
desesperada contra o chauvinismo
grã-russo do aparelho burocrático, consagrou os últimos momentos de lucidez a
desafiar seu principal chefe e representante dessa tendência: Joseph Stalin.
Não parou de denunciar, em notas ditadas a sua secretária em dezembro de 1922,
o espírito grão-russo e chauvinista “desse patife e desse opressor que é, no
fundo, o típico burocrata russo”, e a atitude de um certo georgiano“ que lança
desdenhosamente acusações ao ‘social-nacionalismo’ (enquanto ele próprio é não somente
um verdadeiro, um autêntico ‘social-nacional’, como ainda é um brutal agente de
polícia grã-russo)”. Lênin, aliás, não hesita em nomear o Comissário do Povo
para as Nacionalidades: “Eu penso que um papel fatal foi desempenhado aqui pela
pressa de Stalin e seu gosto pela administração, assim como por sua irritação
contra o famoso ‘social-nacionalismo’. Voltando ao assunto georgiano, ele insiste:
“É normal que Stalin e Dzerjinski sejam, do ponto de vista político, os responsáveis
dessa
campanha fundamentalmente
nacionalista grão-russa”. A conclusão desse testamento de Lênin” foi, como se
sabe, a proposta de substituir Stalin no topo do secretariado geral do Partido.
Infelizmente, era tarde demais...10
Enquanto o procedimento de Stalin
era fundamentalmente estatal e burocrático – reforço do aparelho, centralização
do Estado, unificação administrativa – Lênin estava, antes de tudo, preocupado com
a repercussão internacional da política soviética: “o prejuízo que pode causar
a nosso Estado a falta de aparelhos nacionais unificados ao aparelho russo é
infinita e incomensuravelmente menor que aquele que resultará para nós, para
toda a Internacional, para as centenas de milhões de homens dos povos da Ásia,
que aparecerá depois de nós na vanguarda da cena histórica num futuro próximo”.
Nada seria tão perigoso para a
revolução mundial do que “adotarmos, mesmo em questões de detalhe, relações
imperialistas com as nacionalidades oprimidas, despertando assim a suspeita
sobre a sinceridade de nossos princípios, sobre nossa justificativa do
princípio da luta contra o imperialismo” (Lenin, 1968: 244-245).
A imobilização de Lênin, por um novo ataque
cerebral no início de 1923, afastou o principal obstáculo ao controle do aparelho
do partido por Stalin.
Trotsky, que se tornou, desde
1923, o principal adversário da burocracia stalinista, retomou, por sua conta,
o combate de Lênin contra o chauvinismo burocrático. A plataforma da oposição
de esquerda (1927) defende os velhos bolcheviques georgianos “colocados em
desgraça por Stalin” mas “calorosamente defendidos por Lênin durante o último período
de sua vida”. A plataforma exige a publicação dos últimos textos de Lênin sobre
a questão nacional – deixados na gaveta por Stalin – e, na conclusão, insiste
em que o “chauvinismo, sobretudo quando se manifesta por intermédio do aparelho
de Estado, permanece o principal inimigo da aproximação e da união das massas
trabalhadoras das diversas nacionalidades”11.
Apesar de, ainda em 1940, Trotsky
não questionar a “sovietização” forçada da Geórgia – na sua biografia de
Stalin, critica sobretudo o método e a escolha do momento, mas não o princípio
da intervenção (Trotsky, 1969: 46) –, nos artigos sobre a Ucrânia, em 1939,
proclama alta e fortemente o direito desta nação à autodeterminação e sua
simpatia pela perspectiva de uma Ucrânia soviética independente da URSS. Neste
texto se volta também para os debates dos anos 20 sobre a Geórgia e a Ucrânia,
que apresenta como um confronto entre “a tendência mais centralista e a mais
burocrática”
representada “invariavelmente”
por Stalin, e as propostas de Lênin que insistiam na urgência de “fazer justiça,
na medida do possível, à estas nacionalidades outrora oprimidas”. Desde esta
época – complementa – os aspectos centralistas-burocráticos
“se desenvolveram monstruosamente
e estrangularam por completo qualquer espécie de desenvolvimento nacional
independente dos povos da URSS” (Trotsky, 1939: 184-188).
Moral – provisória – da história,
à luz da experiência da revolução de outubro – mas também dos recentes
acontecimentos na Europa (fragmentação da ex-Iugoslávia):
1. A utopia – no sentido forte do
termo – de uma livre federação socialista de nações iguais em direito, gozando
do direito de separação, e assegurando às minorias nacionais uma plena autonomia
territorial e/ou cultural, permanece duplamente atual. Por um lado, ante os
confrontos étnicos; e, por outro, diante das unificações neoliberais que se
realizam sob a égide do capital financeiro.
2. O direito das nações à livre
disposição de si próprias não pode ser subordinado a
nenhum outro objetivo – por mais
antiimperialista, proletário ou socialista que seja – mas unicamente limitados
pelos direitos democráticos das outras nações. Em outros termos: uma nação não
pode se valer da autodeterminação para negar o direito de nações vizinhas, para
oprimir suas próprias minorias ou praticar a “faxina étnica” no seu território.
3. Do ponto de vista
internacionalista, que é o do marxismo, as questões de fronteiras, os “direitos
históricos” e as reivindicações territoriais “ancestrais” são desinteressantes.
O critério principal para tomar posição diante dos conflitos nacionais e das
exigências nacionais contraditórias é a democracia.
4. Os revolucionários são, via de
regra – a principal
exceção sendo situações de tipo colonial
–, mais favoráveis às grandes federações multinacionais – à condição de que
sejam autenticamente democráticas – do que aos pequenos Estados pretensamente
“homogêneos”.
Lutarão para convencer os povos
implicados, mas são estes últimos, no exercício democrático do direito à
autodeterminação, que devem, em última análise, decidir por uma ou outra forma
de organização política.
Resumo:
Dolorosas
experiências e notáveis estudos evidenciam cada vez mais: a questão nacional,
suas esperanças,
seus
desafios e suas armadilhas, estava no âmago da revolução de outubro. A esta
questão, que punha em
jogo nada
menos do que o futuro da URSS, Lênin consagrou seus últimos esforços. O artigo
aborda esta
dimensão
de outubro, do marxismo e da luta pela emancipação.
∗Artigo publicado inicialmente em Critique
communiste , 150, outono de 1997. Traduzido por Renata Gonçalves e
Lúcio
Flávio Rodrigues de Almeida, membros do NEILS.∗∗, autor de vários livros, diretor
de pesquisa no CNRS. Publicou recentemente Nacionalismos e Internacionalismos –
da época de Marx até nossos dias , São Paulo, Xamã, 2000.1
Pode-se
encontrar trechos dos principais textos do debate marxista “clássico” sobre a
questão nacional na antologia organizada por HAUPT, Georges; LÖWY, Michaël
& WEILL, Claudie (1997). 2A questão
das nacionalidades e a social-democracia (nt).
3 União Geral dos Operários Judeus
da Lituânia, Polônia e Rússia (nt).
4 É verdade que Lênin nunca
criticou a brochura de Stalin, provavelmente porque, no ponto principal, a
considerava conforme à doutrina bolchevique.
5 A esse respeito, ver Traverso
(1990: 151). De acordo com Lênin, “a autonomia nacional cultural (...) é a corrupção
dos operários, com a palavra de ordem da cultura nacional e a propaganda da
divisão do ensino por nacionalidades, profundamente prejudicial e até mesmo
antidemocrática” (Lenin, 1968: 6). Num outro texto, Lênin compara a idéia
bundista de escolas judias distintas com as escolas separadas para negros ao
sul dos Estados Unidos (1968: 38-39).
6 Entre os erros cometidos naquela
época, pode-se mencionar a integração forçada, à República soviética de
Azerbaijão,
da região do Alto Karabakh, habitada majoritariamente por armênios. O conflito
explodiria no final dos
anos 80.
7 Ver a este respeito a
interessante obra de Villanueva (1987: 352-354).
8 Ver a excelente análise de
Traverso (1997: 171). Este autor observa que o principal problema foi a proibição
das
publicações
e do ensino do hebraico, com o objetivo de “modernização” e de combate à
religião. Foi uma tentativa
injustificável
de arrancar à nação judia suas raízes históricas, sua tradição e seu passado
cultural.
9 Citado por Weistock que, na
época, militante marxista revolucionário, tenta justificar o raciocínio de
Trotsky, mas admite que, sobre este assunto, seus argumentos são fracos:
“reconhecemos aliás que as explicações fornecidas por Trotsky sobre este
assunto constituem uma tentativa pouco convincente de expor uma versão errônea dos
fatos. Como poderia ser de outro modo, sabendo que ele foi um adversário
resoluto da revolução pela conquista, pois esta reanimaria, nos povos libertos
do regime burguês, o nacionalismo anti-russo engendrado pela opressão czarista?”
(1970:25).
10 Lenin, “La question des
nationalités ou de l’autonomie” (1968: 238-244). Cf. Lewine (1967).
11 Les Bolchéviks contre Staline,
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