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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O sonho naufragado: a Revolução de Outubro e a questão nacional



Michael Löwy∗∗
.
Neste estranho final de século de um mundo deixado aos nacionalismos mortíferos, às “faxinas étnicas”, às guerras tribais e à rivalidade feroz dos tubarões financeiros pelo controle do mercado mundial, é interessante aproveitar o aniversário de 1917 para revisitar o sonho dos revolucionários de Outubro: uma livre federação socialista de república s autônomas. Como foi elaborada a reflexão dos bolcheviques sobre a questão nacional e em que medida sua prática, nos primeiros anos da União Soviética, esteve à altura dos princípios expressos ?
A herança marxiana, à exceção de algumas grandes linhas estratégicas – a unidade internacionalista dos trabalhadores, a recusa da opressão de um povo sobre outro – era bastante limitada nesse terreno.
Mesmo que se faça abstração dos preocupantes deslizes de Engels em 1848-1850 – a teoria dos “povos sem história” (eslavos do sul) – , faltava aos fundadores do socialismo moderno uma reflexão mais aprofundada sobre a questão nacional e suas implicações para o movimento operário. É verdade que se bateram pela independência da Polônia, mas não é evidente que o tenham feito em nome de um
princípio geral – direito à autodeterminação dos povos – ou simplesmente porque os poloneses lutavam contra a Rússia czarista, principal fortaleza da reação na Europa. Mais interessantes sãos seus escritos sobre a Irlanda, que parecem – após hesitação inicial – esboçar uma perspectiva mais ampla: somente a libertação nacional do povo oprimido permite ultrapassar a divisão e os ódios nacionais e unir os operários das duas nações contra seus inimigos comuns, os capitalistas
1. A primeira grande obra marxista sobre a questão nacional é, sem dúvida, La question des natinalités et la social-démocratie 2(1917) de Otto Bauer (1987). Ao definir a nação como produto inacabado de um processo histórico constantemente em andamento, o pensador austro-marxista deu uma importante contribuição ao combate à fetichização do fato nacional e aos mitos reacionários da “nação eterna”, pretensamente enraizada no “sangue e no solo”. Seu programa de autonomia nacional cultural era uma proposta rica e construtiva, mas ficava num impasse frente a uma questão política capital: o direito democrático de cada nação se separar e constituir um Estado independente.
Alguns marxistas do Império russo, como os militantes judeus do Bund3 e alguns movimentos socialistas caucasianos ou bálticos, manifestaram muito interesse pelas teses de Otto Bauer e de seus amigos austro-marxistas. Mas este não foi o caso das
correntes majoritárias do Partido Operário Social-Democrata Russo. Sua posição comum, adotada durante o congresso do POSDR de 1903 – antes da cisão! – afirma, no item 9, o direito à autodeterminação das nações do Império Russo.
Rosa Luxemburgo era bastante reservada no que se refere a essa concepção. Hostil ao separatismo nacional – e concretamente à palavra de ordem de independência da Polônia, que ela considerava, por razões econômicas, como “utópica” – preconizava, como programa de uma revolução contra o Império czarista, a autonomia regional, concebida como auto-administração de cada província, região ou município no contexto de um Estado democrático multinacional. Ela distinguia sua posição da defendida pelos austro-marxistas que, segundo Rosa, ergueriam barreiras entre as
nacionalidades.
Leon Trotsky, na sua brochura de 1914, La Guerre et l’Internationale, parece hesitar entre uma postura de tipo economicista, que deduz da internacionalização da economia o iminente desaparecimento dos Estados nacionais, e um procedimento mais político que reconhece no direito à autodeterminação das nações a condição da paz entre os povos. Na mesma época, num artigo sobre “Nation et économie” (1915), reconhece explicitamente a importância histórica do fator nacional: “ a nação constitui um fator ativo e permanente da cultura humana. E no regime socialista a nação, liberada da corrente da dependência política e econômica, será chamada a desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento histórico...” (Trotsky, 1975: 48).
Antes de entrar no debate, Lênin envia, em 1913, um bolchevique georgiano, Joseph
Vissarionovitch Djugashvili, a Viena, para elaborar um texto que exporia, de modo sistemático, a posição de seu partido, fiel à resolução de 1903 do POSDR Contrariamente a uma lenda tenaz – para a qual o próprio Trotsky contribuiu, ao fazer a biografia de Stalin – a brochura do georgiano em questão não foi escrita sob a inspiração direta de Lênin. Este parece ter ficado um pouco decepcionado com o resultado, pois só a cita, nos seus numerosos textos sobre a questão nacional, uma única vez, en passant, e entre parênteses, num artigo de 28 de dezembro de
1913. Sem dúvida, a brochura de Stalin defendia a tese central dos bolcheviques: o direito à separação das nações do Império russo. Mas, sobre um número de questões importantes, estava em contradição direta com as idéias de Lênin, tais como serão
desenvolvidas ao longo dos anos seguintes4.
Para citar apenas dois exemplos:
1. Stalin só reconhecia como nações os povos com uma comunidade de língua, de território, de vida econômica e de “formação psíquica”. É inútil procurar tal visão a-histórica, dogmática, rígida e petrificada da nação em Lênin – que, aliás,rejeitava explicitamente o conceito de “caráter nacional” ou particularidade psicológica” das nações, emprestado de Otto Bauer por Stalin.
2. Stalin não fazia distinção entre nacionalismo de opressores e de oprimidos, isto é, entre o nacionalismo grão-russo do Estado czarista e o dos povos oprimidos – poloneses, judeus, tártaros, georgianos, etc. Os dois caminham lado a lado, como
manifestações de um “chauvinismo grosseiro”. Ora, como veremos, esta distinção ocupa um  lugar central na reflexão de Lênin.
O ponto de partida de Lênin, como o de Marx, Rosa Luxemburgo ou Trotsky, era o
internacionalismo proletário. É com relação a esta premissa política básica que aborda a questão nacional. Mas, ao contrário de alguns de seus camaradas, Lênin percebe o laço dialético entre o objetivo internacionalista e os direitos nacionais. Antes de tudo, porque – para utilizar uma metáfora que o fundador do partido bolchevique gostava muito – só o direito ao divórcio garante o livre casamento: somente a liberdade de separação torna possível uma livre e voluntária união, associação ou fusão entre as nações. Em seguida, porque – como Marx e Engels haviam compreendido no que se refere à Irlanda – só o reconhecimento, pelo movimento operário da nação dominante, do direito à autodeterminação da nação dominada, permite eliminar o ódio e a desconfiança dos oprimidos e unir os proletários das duas nações num combate comum contra a burguesia.
A insistência de Lênin sobre o direito à separação não significa de modo algum que fosse favorável ao separatismo e à divisão infinita dos Estados conforme as linhas de fratura nacional.
Ao contrário, espera que, graças à livre disposição que os povos têm de seu destino, os Estados multinacionais se mantenham: “quanto mais o regime democrático de um Estado se aproxima da inteira liberdade de separação, mais serão raras e fracas, na prática, as tendências à separação, pois as vantagens dos grandes Estados, tanto do ponto de vista do progresso econômico como dos interesses da massa, são indubitáveis...” (Lenin, 1968: 160).
O que distingue Lênin da maioria de seus contemporâneos é que ele dá ênfase – tanto no que diz respeito à questão nacional como em outros domínios – ao aspecto propriamente político da contradição. Enquanto os outros marxistas vêem sobretudo a dimensão econômica, cultural ou “psíquica” do problema, Lênin insiste, em seus artigos dos anos de 1913 a 1916, no fato de que a questão do direito das nações a disporem de si próprias “remete inteira e exclusivamente ao campo da Democracia  política”, ou seja, ao campo do direito à separação política, à constituição de um Estado nacional independente (Lenin, 1968: 158).
É inútil dizer que o aspecto político da questão nacional, para Lênin, não é o mesmo dos chanceleres, diplomatas, e, após 1914, dos exércitos em guerra. Para ele, é indiferente saber se uma ou outra nação terá ou não um Estado independente, ou quais serão as fronteiras entre dois Estados. Seu objetivo é a democracia e a unidade internacionalista do proletariado, que exigem ambas o reconhecimento do direito à autodeterminação das nações. Com este objetivo, defende com insistência a unificação, num mesmo partido, dos trabalhadores e dos marxistas de todas as nações que viviam no âmbito de um mesmo Estado, o Império Czarista – russos, ucranianos, poloneses, judeus, georgianos... – para poder lutar contra o inimigo comum: a autocracia, as classes dominantes.
A principal objeção que se poderia formular à posição de Lênin, sobre a questão nacional é a recusa total da problemática austro-marxista da autonomia nacional cultural – defendida na Rússia sobretudo pelo Bund. A proposta leninista de autonomia administrativa local pelas nações não dava conta dos problemas das nacionalidades extraterritoriais como, por exemplo, os judeus5.
A hesitante política praticada pelos diferentes governos “burgueses” que se sucederam após a Revolução de Fevereiro de 1917, incapazes de romper com a herança do czarismo, favoreceu a captação dos sentimentos nacionais pelos bolcheviques: como escreveu Trotsky, na História da Revolução Russa, a torrente nacional, assim como a agrária, desembocava no rio da Revolução de Outubro”.
Em que medida a prática de Lênin e de seus camaradas no poder esteve conforme aos princípios enunciados nos textos teóricos e nas resoluções partidárias? É difícil de responder a esta pergunta, tanto é complexa, confusa e contraditória a política nacional do Estado soviético durante os anos de formação da URSS. O que predomina é, inevitavelmente, uma grande dose de pragmatismo, de empirismo e de adaptação às circunstâncias, com múltiplas distorções das doutrinas bolcheviques
sobre a questão nacional.
Algumas dessas “adaptações” foram positivas, no sentido de maior democracia pluralista. Outras, ao contrário, constituíram violações brutais do direito dos povos a disporem de si próprios: entre estes dois extremos, há uma vasta “zona cinzenta”...
Apenas uma semana após a tomada do poder, os revolucionários de Outubro publicam uma declaração que afirma solenemente a igualdade de todos os povos da Rússia e seu direito à autodeterminação, até mesmo à separação. Muito rapidamente o poder soviético reconheceu – em parte, como uma situação de fato, mas também por um autêntico desejo de romper com as práticas imperiais e de reconhecer os direitos nacionais – a independência da Finlândia, da Polônia e dos países bálticos (Lituânia, Letônia, Estônia). O destino da Ucrânia, das nações do Cáucaso e de outras regiões “periféricas” foi decidido durante a guerra civil com, na maior parte dos casos, uma vitória dos bolcheviques “locais”, mais ou menos – de acordo com os casos – ajudados pelo Exército vermelho em formação6.
A primeira “distorção positiva” foi a Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado, de 1918, redigida por Lênin. Era um apelo à formação de uma federação de repúblicas soviéticas, fundada sobre a aliança livre e voluntária dos povos. Esta afirmação explícita do princípio federativo é uma verdadeira mudança com relação às posições anteriores de Lênin e de seus camaradas, que – como dignos herdeiros da tradição jacobina – eram hostis ao federalismo e favoráveis a um Estado unitário e
centralizado. Embora não fosse explicitamente assumida nem justificada teoricamente, tratou-se de uma mudança altamente positiva7.
Outra “adaptação democrática” foi a prática do poder soviético sobre a minoria judia. Antes de 1917, Lênin e os bolcheviques sempre atacaram as teses austro-marxistas e seus partidários judeus na Rússia – o Bund. Porém, não deixaram de adotar, ao longo dos primeiros anos da revolução, uma política inspirada, em larga escala, pela autonomia nacional cultural. O ídiche obtém o estatuto de língua oficial na Ucrânia e na Bielo-Rússia e revistas, bibliotecas, jornais, editoras, teatros e até mesmo centenas de escolas de ídiche se desenvolveram. Em Kiev foi criado um Instituto Universitário Judeu que rivalizava com o célebre YIVO de Vilna. Ou seja,sob a égide dos sovietes, e no contexto de uma política de autonomia cultural, assistia-se a um verdadeiro desabrochar cultural ídiche – enquadrado, é verdade, pelo “despotismo esclarecido” da Yevsekzia, a seção judia do partido bolchevique, composta em grande parte por antigos bundistas e sionistas de esquerda ganhos ao comunismo pela Revolução
de Outubro8.
Quanto às violações dos direitos democráticos dos povos, fazendo-se abstração de condições mais ou menos discutíveis da “sovietização” da Ucrânia e das nações caucasianas, dois casos se apresentam como particularmente significativos: a invasão da Polônia, em 1920, e a da Geórgia, em 1921.
Violentamente hostil aos Sovietes, o regime polonês do Marechal Pilsudski, manipulado e apoiado pelo imperialismo francês, invadiu a Ucrânia soviética em abril de 1920 e chegou até Kiev.
A contra-ofensiva do Exército Vermelho logo o obriga a recuar, mas as forças soviéticas perseguiram o invasor e violaram a fronteira polonesa, chegando em agosto às portas de Varsóvia – antes de serem obrigados, por sua vez, a recuar para o ponto de partida. A decisão de invadir a Polônia foi tomada pela direção soviética, sob o impulso do próprio Lênin – contra a opinião de Radek, Trotsky e Stalin, que, pelo menos uma vez, estiveram de acordo. Certamente não se tratava de um projeto de anexação da Polônia, mas de “ajudar” os comunistas poloneses a tomarem o poder, estabelecendo uma república soviética polonesa. O que não impede que tenha sido
uma verdadeira e evidente violação do princípio  da autodeterminação dos povos:  como o próprio Lênin repetia inúmeras vezes, não cabia ao Exército vermelho impor o comunismo a outros povos. O caráter efêmero e precário desta iniciativa limita contudo seu alcance – mesmo tendo deixado rastros na memória coletiva polonesa.
Ainda mais grave foi o caso georgiano. República independente, reconhecida como tal pelo poder soviético – acordos de paz de 1920 –, dirigida por um governo menchevique apoiado pela grande maioria da população (o campesinato), a Geórgia foi, entretanto, invadida em fevereiro de 1921 pelo exército vermelho e “sovietizada” à força. Tratou-se, sem dúvida, do caso mais flagrante e mais brutal de desrespeito, pelo Estado soviético em formação, ao direito democrático dos povos a disporem de si próprios.
A iniciativa foi tomada por dirigentes bolcheviques de origem georgiana, Stalin e Ordjonikidze, que a justificaram em nome de uma pretensa insurreição geral dos operários e camponeses georgianos sob direção comunista – na verdade uma iniciativa bastante minoritária de um grupo bolchevique, perto da fronteira soviética – contra o governo menchevique. Avalizada por Lênin e pela direção soviética, a invasão instalou, após um mês de combate, um governo bolchevique em Tíflis, assegurando
assim a associação da Geórgia à Federação Soviética.
A hostilidade da maioria da população a esta imposição “externa” se manifestou de modo explosivo em 1924 com a insurreição popular massiva dirigida pelos mencheviques.
Trotsky estava ausente de Moscou, em viagem aos Urais, e não participou desta decisão. Logo, é surpreendente que tenha decidido endossar, diante da opinião pública russa e internacional, a responsabilidade desta operação, escrevendo um panfleto que legitima a sovietização forçada da Geórgia:
Entre vermelhos e brancos(1922). Este texto, um dos mais polêmicos do fundador do Exército vermelho, assim como Terrorismo e comunismo, pertence ao período mais radicalmente “substitucionista”  de sua vida política. Nos dois casos, sob a bandeira de denunciar o “democratismo pequeno-burguês” de Kautsky e da social-democracia, corre o risco de eliminar inteiramente a democracia.
Mesmo que se aceite (o que está longe de qualquer evidência) todas as virulentas críticas dirigidas por Kautsky à “Gironda georgiana” dos mencheviques –  regime burguês, anticomunista, protegido pelo imperialismo inglês, dissimuladamente aliado a Wrangel e aos “brancos”, repressivo contra os militantes bolcheviques georgianos (presos em massa) –, ainda não se vê como justificar a invasão: o governo burguês finlandês era, sob todos os aspectos, bem pior (execuções massivas de militantes
comunistas) e, no entanto, jamais se cogitou de invadir a Finlândia independente. O argumento da “insurreição bolchevique georgiana” é, de acordo com a confissão de Lominadze, secretário-geral do partido comunista georgiano, pouco substancial: “Nossa revolução começou em 1921, pela conquista da Geórgia por meio das baionetas do Exército vermelho. A sovietização da Geórgia apresentou-se como uma espécie de ocupação pelas tropas russas”9.
O pior foi que – para retomarmos uma expressão utilizada por Rosa Luxemburgo em 1918, ao criticar seus camaradas bolcheviques – Trotsky “fez da necessidade uma virtude”: tentou formular uma justificação teórica, “de princípio”, sobre a intervenção na Geórgia. Seu primeiro argumento é tipicamente economicista: “É normal que o direito dos povos a disporem de si próprios não saberia estar acima das tendências unificadoras, características da economia socialista” (Trotsky, 1970: 154-155). Para ele, a federação soviética deve combinar a unificação econômica com a liberdade das
diferentes culturas nacionais. O que desaparece, neste raciocínio, é pura e simplesmente o aspecto propriamente político – a liberdade de separação, condição indispensável à livre união.
Pior: Trotsky chegou a sugerir que o direito à autodeterminação só se aplica em caso de luta contra o Estado burguês: “não somente reconhecemos, como apoiamos com todas as nossas forças, o princípio do direito dos povos a disporem de si próprios onde for dirigido contra os Estados feudais, capitalistas, imperialistas. Porém, onde a ficção da autonomia nacional, nas mãos da burguesia, se transforma em arma contra a revolução do proletariado, não temos nenhuma razão para agirmos de modo diferente do que fazemos com todos os princípios da democracia transformados em opostos
pelo Capital” (1970: 159). Ao ler estas linhas, temos dificuldades em compreender porque Trotsky se opunha tão categoricamente à invasão da Polônia em 1920: a independência da Polônia não se tornaria – bem mais que a da Geórgia, que jamais ousara invadir o território soviético – “uma arma nas mãos da burguesia contra o proletariado”?
Ainda mais interessante – e, em certa medida, contradiz o que acabamos de ler – é o trecho seguinte: “a República soviética de modo algum se dispõe a substituir com sua força armada os esforços revolucionários do proletariado de outros países. A conquista do poder por este proletariado deve ser o fruto de sua própria experiência política. Isto não significa que os esforços revolucionários dos trabalhadores – da Geórgia, por exemplo – não possam encontrar um apoio armado externo.
Porém, é preciso que este apoio venha no momento em que a necessidade foi preparada pelo desenvolvimento anterior e amadureceu na consciência da vanguarda apoiada pela simpatia da maioria dos trabalhadores” (Trotsky, 1970: 158).
Esta afirmação tem a vantagem de reafirmar o princípio democrático do direito das nações a disporem de si próprias, justificando um “apoio externo” somente aos movimentos que gozam da simpatia da maioria popular. O problema é que, com toda evidência, este não foi o caso na Geórgia...
Foi a respeito da Geórgia que aconteceu o confronto entre Lênin, já gravemente doente, e Stalin, em 1922-1923: o “último combate de Lênin”, de acordocom o título do célebre livro de Moshé Lewine(1967). As divergências entre os dois dirigentes bolcheviques se acentuaram ao longo dos anos, mas a partir de 1920 pode-se perceber uma lógica radicalmente diversa na elaboração de seus escritos e
propostas. Enquanto Lênin insiste na necessidade de uma atitude tolerante com relação aos nacionalismos periféricos e denuncia o chauvinismo grã-russo, Stalin vê nos movimentos nacionais centrífugos o principal adversário, e se esforça em construir um aparelho estatal unificado e centralizado. Após a invasão da Geórgia em 1921, propõe que se tente chegar a um compromisso com Jordânia, o líder dos mencheviques  georgianos. Stalin, ao contrário, em julho, ao pronunciar um discurso em Tíflis, insiste na necessidade de “esmagar a hidra do nacionalismo” e de “destruir a ferro incandescente” os sinais de vida desta ideologia (Villanueva, 1987: 455-459).
O conflito eclode, no que diz respeito, de um lado, às divergências entre Stalin e Ordjonikidze, de outro, entre os comunistas georgianos, Mdivani e seus amigos apoiados por Lênin, com relação ao grau de autonomia da República Soviética da Geórgia na União Soviética em formação. Para além das questões locais, o que estava em questão era simplesmente o futuro da URSS. Lênin, numa luta tardia e
desesperada contra o chauvinismo grã-russo do aparelho burocrático, consagrou os últimos momentos de lucidez a desafiar seu principal chefe e representante dessa tendência: Joseph Stalin. Não parou de denunciar, em notas ditadas a sua secretária em dezembro de 1922, o espírito grão-russo e chauvinista “desse patife e desse opressor que é, no fundo, o típico burocrata russo”, e a atitude de um certo georgiano“ que lança desdenhosamente acusações ao ‘social-nacionalismo’ (enquanto ele próprio é não somente um verdadeiro, um autêntico ‘social-nacional’, como ainda é um brutal agente de polícia grã-russo)”. Lênin, aliás, não hesita em nomear o Comissário do Povo para as Nacionalidades: “Eu penso que um papel fatal foi desempenhado aqui pela pressa de Stalin e seu gosto pela administração, assim como por sua irritação contra o famoso ‘social-nacionalismo’. Voltando ao assunto georgiano, ele insiste: “É normal que Stalin e Dzerjinski sejam, do ponto de vista político, os responsáveis dessa
campanha fundamentalmente nacionalista grão-russa”. A conclusão desse testamento de Lênin” foi, como se sabe, a proposta de substituir Stalin no topo do secretariado geral do Partido. Infelizmente, era tarde demais...10
Enquanto o procedimento de Stalin era fundamentalmente estatal e burocrático – reforço do aparelho, centralização do Estado, unificação administrativa – Lênin estava, antes de tudo, preocupado com a repercussão internacional da política soviética: “o prejuízo que pode causar a nosso Estado a falta de aparelhos nacionais unificados ao aparelho russo é infinita e incomensuravelmente menor que aquele que resultará para nós, para toda a Internacional, para as centenas de milhões de homens dos povos da Ásia, que aparecerá depois de nós na vanguarda da cena histórica num futuro próximo”.
Nada seria tão perigoso para a revolução mundial do que “adotarmos, mesmo em questões de detalhe, relações imperialistas com as nacionalidades oprimidas, despertando assim a suspeita sobre a sinceridade de nossos princípios, sobre nossa justificativa do princípio da luta contra o imperialismo” (Lenin, 1968: 244-245).
 A imobilização de Lênin, por um novo ataque cerebral no início de 1923, afastou o principal obstáculo ao controle do aparelho do partido por Stalin.
Trotsky, que se tornou, desde 1923, o principal adversário da burocracia stalinista, retomou, por sua conta, o combate de Lênin contra o chauvinismo burocrático. A plataforma da oposição de esquerda (1927) defende os velhos bolcheviques georgianos “colocados em desgraça por Stalin” mas “calorosamente defendidos por Lênin durante o último período de sua vida”. A plataforma exige a publicação dos últimos textos de Lênin sobre a questão nacional – deixados na gaveta por Stalin – e, na conclusão, insiste em que o “chauvinismo, sobretudo quando se manifesta por intermédio do aparelho de Estado, permanece o principal inimigo da aproximação e da união das massas trabalhadoras das diversas nacionalidades”11.
Apesar de, ainda em 1940, Trotsky não questionar a “sovietização” forçada da Geórgia – na sua biografia de Stalin, critica sobretudo o método e a escolha do momento, mas não o princípio da intervenção (Trotsky, 1969: 46) –, nos artigos sobre a Ucrânia, em 1939, proclama alta e fortemente o direito desta nação à autodeterminação e sua simpatia pela perspectiva de uma Ucrânia soviética independente da URSS. Neste texto se volta também para os debates dos anos 20 sobre a Geórgia e a Ucrânia, que apresenta como um confronto entre “a tendência mais centralista e a mais burocrática”
representada “invariavelmente” por Stalin, e as propostas de Lênin que insistiam na urgência de “fazer justiça, na medida do possível, à estas nacionalidades outrora oprimidas”. Desde esta época – complementa – os aspectos centralistas-burocráticos
“se desenvolveram monstruosamente e estrangularam por completo qualquer espécie de desenvolvimento nacional independente dos povos da URSS” (Trotsky, 1939: 184-188).
Moral – provisória – da história, à luz da experiência da revolução de outubro – mas também dos recentes acontecimentos na Europa (fragmentação da ex-Iugoslávia):
1. A utopia – no sentido forte do termo – de uma livre federação socialista de nações iguais em direito, gozando do direito de separação, e assegurando às minorias nacionais uma plena autonomia territorial e/ou cultural, permanece duplamente atual. Por um lado, ante os confrontos étnicos; e, por outro, diante das unificações neoliberais que se realizam sob a égide do capital financeiro.
2. O direito das nações à livre disposição de si próprias não pode ser subordinado a
nenhum outro objetivo – por mais antiimperialista, proletário ou socialista que seja – mas unicamente limitados pelos direitos democráticos das outras nações. Em outros termos: uma nação não pode se valer da autodeterminação para negar o direito de nações vizinhas, para oprimir suas próprias minorias ou praticar a “faxina étnica” no seu território.
3. Do ponto de vista internacionalista, que é o do marxismo, as questões de fronteiras, os “direitos históricos” e as reivindicações territoriais “ancestrais” são desinteressantes. O critério principal para tomar posição diante dos conflitos nacionais e das exigências nacionais contraditórias é a democracia.
4. Os revolucionários são, via de regra – a principal
exceção sendo situações de tipo colonial –, mais favoráveis às grandes federações multinacionais – à condição de que sejam autenticamente democráticas – do que aos pequenos Estados pretensamente “homogêneos”.
Lutarão para convencer os povos implicados, mas são estes últimos, no exercício democrático do direito à autodeterminação, que devem, em última análise, decidir por uma ou outra forma de organização política.

Resumo:
Dolorosas experiências e notáveis estudos evidenciam cada vez mais: a questão nacional, suas esperanças,
seus desafios e suas armadilhas, estava no âmago da revolução de outubro. A esta questão, que punha em
jogo nada menos do que o futuro da URSS, Lênin consagrou seus últimos esforços. O artigo aborda esta
dimensão de outubro, do marxismo e da luta pela emancipação.

Artigo publicado inicialmente em  Critique communiste , 150, outono de 1997. Traduzido por Renata Gonçalves e
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, membros do NEILS.∗∗, autor de vários livros, diretor de pesquisa no CNRS. Publicou recentemente Nacionalismos e Internacionalismos – da época de Marx até nossos dias , São Paulo, Xamã, 2000.1
Pode-se encontrar trechos dos principais textos do debate marxista “clássico” sobre a questão nacional na antologia organizada por HAUPT, Georges; LÖWY, Michaël & WEILL, Claudie (1997). 2A questão das nacionalidades e a social-democracia (nt).
3 União Geral dos Operários Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia (nt).
4 É verdade que Lênin nunca criticou a brochura de Stalin, provavelmente porque, no ponto principal, a considerava conforme à doutrina bolchevique.
5 A esse respeito, ver Traverso (1990: 151). De acordo com Lênin, “a autonomia nacional cultural (...) é a corrupção dos operários, com a palavra de ordem da cultura nacional e a propaganda da divisão do ensino por nacionalidades, profundamente prejudicial e até mesmo antidemocrática” (Lenin, 1968: 6). Num outro texto, Lênin compara a idéia bundista de escolas judias distintas com as escolas separadas para negros ao sul dos Estados Unidos (1968: 38-39).
6 Entre os erros cometidos naquela época, pode-se mencionar a integração forçada, à República soviética de
Azerbaijão, da região do Alto Karabakh, habitada majoritariamente por armênios. O conflito explodiria no final dos
anos 80.
7 Ver a este respeito a interessante obra de Villanueva (1987: 352-354).
8 Ver a excelente análise de Traverso (1997: 171). Este autor observa que o principal problema foi a proibição das
publicações e do ensino do hebraico, com o objetivo de “modernização” e de combate à religião. Foi uma tentativa
injustificável de arrancar à nação judia suas raízes históricas, sua tradição e seu passado cultural.
9 Citado por Weistock que, na época, militante marxista revolucionário, tenta justificar o raciocínio de Trotsky, mas admite que, sobre este assunto, seus argumentos são fracos: “reconhecemos aliás que as explicações fornecidas por Trotsky sobre este assunto constituem uma tentativa pouco convincente de expor uma versão errônea dos fatos. Como poderia ser de outro modo, sabendo que ele foi um adversário resoluto da revolução pela conquista, pois esta reanimaria, nos povos libertos do regime burguês, o nacionalismo anti-russo engendrado pela opressão czarista?” (1970:25).
10 Lenin, “La question des nationalités ou de l’autonomie” (1968: 238-244). Cf. Lewine (1967).
11 Les Bolchéviks contre Staline, 1923-1928, Paris, Publicações da “Quatrième Internacionale” (1957: 116-117).


Bibliografia
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