por Thomas Kenny**
Autores marxistas ocidentais de
vários pontos de vista asseveram que a Nova Política Econômica (NEP)
prenunciou a Economia Socialista de Mercado (ESM). Um autor observou: «A ordem
social que atualmente se considera válida na China apresenta-se como uma
espécie de NEP gigantesca e expandida», (Losurdo, 2000, 498). De forma
semelhante, um panfleto recente dos comunistas britânicos comparou a China dos
dias de hoje, com a sua economia socialista de mercado, à NEP da Rússia
Soviética na década de 1920. «Em defesa da NEP, Lênin elaborou muitos dos
mesmos pontos que Deng Xiaoping e representantes do Partido Comunista Chinês
elaboram hoje (...) Naturalmente, a China no último quartel do século XX não
era a Rússia no primeiro quartel. Mas as suas crises apresentam sintomas
semelhantes. E os seus remédios assemelham-se fortemente uns com os outros» (China's
Line of March 2006, 32).1
Este meu documento partilha a visão
de que a NEP é de fato uma precursora da ESM. Chego à conclusão, no entanto,
não de que a NEP tenha sido um êxito, o precursor abortado da ESM, mas ao
contrário de que a NEP conta-nos antecipadamente as contradições e limites da
ESM.2
*www.resistir.info/varios/socialismo_de_mercado.html
**Autor de O
Socialismo Traído, Por Trás do Colapso da URSS, Roger Keeren e Thomas
kenny, Edições «Avante!», 2008.
1Da mesma forma, um
acadêmico norte-americano, AIbert L. Sargis, escreve na revista teórica e de discussão
do CPUSA, que a NEP foi «uma economia socialista de mercado em forma
embrionária» (Sargis 2004).
2A comparação de experiências revolucionárias tão remotas no espaço
e no tempo como a NEP da Rússia e a ESM da China é certamente apropriada.
Exemplo: a Comuna de Paris de 1871 e a Revolução de Outubro de 1917 tiveram
lugar em circunstâncias totalmente diferentes. Mas a partir da Comuna, Marx fez
importantes generalizações teóricas acerca da natureza do poder de Estado e das
exigências da transformação revolucionária aplicáveis noutros lugares. Em 1917
Lênin testou-as na prática. Uma abordagem científica da história exige uma
pesquisa de tais padrões. «Uma característica fundamental da historiografia
antimarxista é a absolutização do particular, do que é nacionalmente específico
(...) Pois os antimarxistas temem generalizações (...) eles evitam
cuidadosamente conceitos que possam sugerir regularidades no desenvolvimento da
sociedade». (E. Júkov, Methodology of History, Moscow:
USSR Academy of Sciences, 1983, 56). É o caso do «excepcionalismo americano»,
um erro ideológico recorrente no movimento da esquerda dos EUA. O
«excepcionalismo chinês» é um desvio nacionalista na esfera da teoria.
3Xue parece pensar que o apoio anterior a 1949 dos camponeses chineses
à revolução – tornando desnecessária qualquer NEP pós-revolucionária para
restaurar a aliança dos operários com o campesinato – torna a China diferente
da Rússia (Xue Mukiao, 1981, 3). Xue asseverou: «Ele [Lênin] avançou com a NEP
numa tentativa de controlar a pequena economia camponesa através do mercado
mediante o desenvolvimento do comércio estatal e cooperativo (...) A situação
na China era diferente». Xue continua este raciocínio, afirmando que a
Revolução Chinesa já havia desenvolvido «cooperativas de abastecimento e
comercialização» em zonas libertadas antes de 1949, separando politicamente os
camponeses do latifundismo e ganhando-os para a revolução. A inexistência da
necessidade na China de se perseguir o objetivo político da NEP – reconquistar
o apoio político do campesinato – é um fraco argumento para demonstrar a não
semelhança entre a NEP e a ESM. No entanto, indiretamente e talvez
involuntariamente, Xue admite que a NEP foi adotada em condições de necessidade
genuína e que a ESM não era necessária no mesmo sentido estrito. A visão de Xue
é uma posição mistificadora para um acadêmico chinês. É bem sabido que Deng
Xiaoping se mostrou profundamente interessado em aprender tudo o que podia
acerca da NEP através do industrial dos EUA, Armand Hammer, que a conheceu em
primeira-mão (http://www.reference.com/browse/wiki/Deng_ Xiaoping).
Possivelmente, muitas décadas de anti-sovietismo no discurso político chinês
desencorajam comparações sino-soviéticas. A doutrina da «etapa primária do
socialismo» ligada a uma teoria sobre 1989-91 oferece poucos incentivos para
tais comparações, já que, para os Estados socialistas do Leste Europeu e a
União Soviética tudo correu mal e a história pronunciou o seu veredicto. Um
eminente pensador chinês escreveu que os Estados que caíram já não tinham nada
de socialistas (ver Zhongkiao Duan, 1998, 224). Desde que isto aconteceu, houve
tantas guinadas na política econômica da China Popular que o período inicial,
isto é, o período de 1949-56, é muito mais semelhante à NEP do que a própria
ESM (Slakovsky 1972, 153).
4Obviamente, existem
diferenças entre a NEP e a ESM. Primeiro, decorrem em diferentes circunstâncias
históricas. A Rússia pré-1914 era um país capitalista de desenvolvimento médio,
que foi arruinado pela I Guerra Mundial, pela intervenção estrangeira e pela
guerra civil. No início da NEP, o governo de Lênin estava em perigo de perder o
apoio do campesinato. Em 1949, a China era um país semi-feudal e semi-colonial;
em 1978 a China havia perdido anos preciosos de desenvolvimento devido a
políticas precipitadas, ultra-esquerdistas, aventureiras. Segundo, a ESM
perdurou muito mais tempo. Certamente que a sensibilidade da China Popular ao
perigo da perda de soberania nacional é um fator na paciência com que tanto as
autoridades como o povo têm suportado as agudas contradições da ESM (ver Weil,
1996, 83). Além disso, a paciência chinesa é compreensível; arrancar da pobreza
400 milhões de chineses entre 1990 e 2003, segundo dados da OMC, é um feito
estupendo
NEP e ESM: essencialmente o mesmo
Ironicamente, podem-se encontrar eminentes
economistas chineses a negarem a conexão entre a NEP e a ESM ou, pelo menos,
relutantes em afirmá-la. Um destacado economista chinês pró-mercado, o falecido
Xue Mukiao, enfatizou a dissemelhança entre a NEP e a ESM.3
Tal dissociação é pouco convincente. A NEP é semelhante à ESM em todos
os aspectos chave. Na finalidade e no conteúdo de classe a NEP e a ESM são
idênticas: aumentar a riqueza da classe trabalhadora, do Estado socialista,
através de uma política que necessita do crescimento de novas classes que são objetivamente
hostis à construção socialista. As suas principais políticas são idênticas.
Ambas promovem mecanismos de mercado, a propriedade privada, a concorrência, a
integração na economia capitalista externa. Os seus resultados tiveram a mesma seqüência.
Ambas, após o êxito inicial, entraram em crise porque eram auto-contraditórias.
Em teoria, eram idênticas. Desenvolveram-se e realizaram a recuperação das
forças produtivas recuando para relações capitalistas de produção
historicamente ultrapassadas, discordantes dos objetivos socialistas de um
Estado dos trabalhadores. Finalmente, as suas crises foram as mesmas, como
veremos abaixo.4
Terceiro, as perspectivas são qualitativamente diferentes. Na
Rússia, a NEP foi vista como um recuo temporário para o «capitalismo de
Estado». A China Popular abraçou todas as novas doutrinas do desenvolvimento,
alongando a transição para o socialismo. Quarto, a Rússia Soviética cercada
tinha o mundo externo hostil a pouca distância, interagindo com ele meramente
através de acordos de paz e acordos comerciais. O Estado soviético permaneceu
em grande medida economicamente autônomo. Em contraste, a China procurou a
integração impetuosa na economia capitalista mundial. Quinto, na Rússia da NEP,
o Partido mantinha uma vigilância estrita sobre a economia. As autoridades em
Pequim, talvez porque o fenômeno de uma grande crise só amadureceu mais tarde,
até recentemente transferiam grande parte da supervisão da economia para
organismos regionais e locais. Sexto, durante grande parte da época da ESM, de
1978 até 1991, o alvo principal da hostilidade, pressão e subversão
imperialista era a URSS, não a China Popular.
5 No ocidente
capitalista, a NEP é um «terreno contestado» numa recorrente batalha ideológica
entre comunismo e reformismo. Até 1985, a NEP constituiu a época da história
soviética em que foi dada mais liberdade ao capitalismo. Assim, naturalmente,
os reformistas sociais, reformistas liberais e comunistas revisionistas
idealizam a NEP, mitologizando-a saudosamente como «o caminho não seguido». Na
batalha para mudar de direção em 1921, certas frases de Lênin – por exemplo, de
que a NEP seria prosseguida «seriamente» e «por um longo período», forneceram
aos oportunistas uma base documental para argumentar que o líder russo encarava
a NEP como a nova rota permanente para o socialismo soviético. Já na década de
1930, o social-democrata austríaco Otto Bauer exprimiu a esperança de que a
experiência da NEP poderia eventualmente suavizar o bolchevismo e conduzi-lo de
volta à corrente principal do social-reformismo europeu. Em 1956, comunistas
revisionistas húngaros, sob Imre Nagy, promoveram esta mesma imagem da NEP, tal
como o fez mais tarde Ota Sik, conselheiro principal do revisionista
checoslovaco Alexander Dubcek, em 1967-68
.
As bases da NEP
Recordemos o que foi a NEP. Em Março de 1921,
após a rebelião do Kronstadt contra as políticas bolcheviques, o X Congresso do
Partido Comunista Russo reuniu-se e ouviu Lênin argumentar em favor de um novo
rumo na política soviética. Lênin argumentou a favor do que denominou
«capitalismo de Estado», que deveria realizar-se nas seguintes formas: 1) joint-ventures
com o estrangeiro e mesmo propriedade estrangeira de empresas
(«concessões»); 2) cooperativas baseadas nos princípios de mercado; 3)
utilização de comerciantes capitalistas, bem como administradores econômicos e
especialistas técnicos treinados em métodos capitalistas de gestão e
organização; e 4) o arrendamento de empresas de propriedade estatal e de
recursos naturais tanto a capitalistas estrangeiros como nacionais. As empresas
estatais, que controlavam os «níveis de comando», eram auto-suficientes e
operavam segundo o princípio dos lucros e perdas, abastecendo-se elas próprias
dos seus ativos circulantes (Sargis, 2004).
Por que acabou a NEP?
A maior parte dos partidários do socialismo,
incluindo este autor, encara a NEP sob uma luz positiva, como um expediente de
curto prazo que teve êxito ao ajudar a Rússia revolucionária a sair de uma
crise econômica. Lênin provou estar certo: depois de ter sido restaurado o
livre comércio nos cereais, a NEP teve êxito imediato. Mas no fim da década de
1920, contudo, a NEP terminou porque estava a aprofundar a crise e não por
causa dos poderes arbitrários e excessivos de Stálin, como é muitas vezes
apregoado.5
3
O historiador Roi Medvédev, um apoiante de Gorbatchov, louvou a
NEP como «a mais vital contribuição de Lênin para a teoria e a prática do
movimento socialista». Analogamente, a antiga e influente conselheira de
Gorbatchov, Tatiana Zaslávskaia, promoveu a NEP como o modelo das reformas a
partir de 1986. O analista de assuntos soviéticos do The Nation, Stephen
F. Cohen, declarou: «Dito de uma forma simples, o Partido Comunista Chinês
reabilitou a alternativa econômica perdida com o stalinismo (...) a NEP, que
estabeleceu uma economia mista, foi o primeiro experimento do socialismo de
mercado». Nas suas memórias, Anatoli Cherniáev, um ajudante de topo de
Gorbatchov, conta que depois de ter lido a biografia de Bukhárine, de Stephen
F. Cohen, Gorbatchov – um bukharinista simplesmente inconsciente até então –
decidiu reabilitar Bukhárine e adoptou-o como padrinho ideológico, por assim
dizer, da perestróika. Alguns neo-bukharinistas dos dias de hoje, indo mais
além do que o próprio Bukhárine ousou, fazem-se eco de economistas neoliberais
tais como Ludwing von Mises e Friedrich Hayek, que argumentavam que apenas
«mercados livres» permitem a formação racional do preço e a eficiência
distributiva. Os mercados «livres», apregoam esses neo-bukharinistas, são
superiores ao planejamento central pelo menos no presente estado da ciência.
6Um comunista italiano
coloca o problema de modo claro: «A maior parte dos historiadores está bem
consciente das contradições que acabaram por levar à crise da NEP no fim da
década de 1920» (Boffa, 1982, 178). Primeiro, o mercado criou instabilidade,
como por exemplo a crise das «tesouras» de 1922-23, na qual a acentuada
flutuação dos preços dos cereais provocaram escassez alimentar e desemprego
entre trabalhadores, prejudicando camponeses pobres e muitos camponeses médios,
mas beneficiando camponeses ricos, isto é, kulaks. Segundo, os sovietes
perceberam que as políticas da NEP condenavam a União Soviética a um período
prolongado de atraso industrial, uma perspectiva inaceitável face aos boicotes
e provável invasão por países ocidentais – sem mencionar o objectivo supremo de
uma sociedade socialista próspera apenas possível na base da moderna indústria
pesada. Terceiro, em 1927-28 a ideia de que os mecanismos de mercado, por si
só, seriam suficientes para alimentar as cidades foi completamente destroçada
quando, face à descida dos preços, os provocadores kulaks açambarcaram
os cereais deixando as cidades confrontadas com a fome. A NEP também engendrou
crescentes contradições políticas internas, como o crescimento de um
nacionalismo pernicioso. Quando a situação internacional se agravou, as crises
da NEP revelaram-se ingovernáveis.
7Os NEPmen eram
comerciantes privados, uma nova burguesia que cresceu na época da NEP. (Ver
Ball, 1987, 15-37).
Múltiplas crises levaram a liderança soviética a
terminar a NEP.6
A NEP trouxe mais cereais para as cidades (isto
é, aumentou as forças produtivas), através do aumento dos incentivos para os
camponeses, especialmente camponeses ricos (kulaks), na base dos antigos
incentivos embutidos nas velhas relações de produção. Mas estas mesmas relações
de produção pré-revolucionárias restauradas pelos bolcheviques deram o poder
aos kulaks de reter os cereais do mercado na esperança de obterem preços
mais elevados.
Num dado momento, a NEP restaurou rapidamente a
aliança operário-camponesa, mas fê-lo à custa do fortalecimento dos inimigos de
classe internos – os kulaks e os NEPmen 7
– dando-lhes, objetivamente, especialmente aos últimos, uma capacidade
crescente de determinar o ritmo da construção socialista. Portanto, no curto
prazo, a NEP apaziguou o campo mas, a longo prazo, fortaleceu inevitavelmente
as classes opostas à construção socialista. Além disso, alienou a classe social
para a qual o sistema devia orientar-se, a classe trabalhadora.
O Estado soviético lutou arduamente para debelar
as contradições, mas estas não podiam ser eliminadas e tenderam a agudizar-se
ao longo do tempo. Aumentaram as praticas pró-capitalista na economia.
8 «Durante a NEP, a burocracia, os administradores, os técnicos e a intelligentsia
– o corpo dirigente da nova sociedade – era predominantemente, quase exclusivamente,
constituído por elementos estranhos ao regime» (Carr, 1958, 116). A obra em
vários volumes de Carr, A History of Soviet Russia, talvez seja o relato
mais pormenorizado da NEP disponível em inglês.
9Sobre a corrupção da
NEP, ver Ball 1987, 63, 106, 114, 116, 171.
10 O Acordo
Anglo-Soviético de Comércio, no princípio da época da NEP, estipulava que os
soviéticos tinham de restringir a «propaganda hostil» contra a Grã-Bretanha
(Carr 1953, 289).
11«Corrupção, poluição,
confisco de terras, taxas e impostos arbitrários estão entre as principais
causas de uma vaga de agitação social. Os tumultos tornaram-se uma constante na
vida rural da China – mais de 200 “incidentes maciços de protesto"
verificaram-se diariamente em 2004, indicam as estatísticas da polícia –
minando os esforços do partido para assegurar a estabilidade social» (Kahn
2006).
O fortalecimento económico da pequena burguesia
levou ao crescimento do nacionalismo pequeno-burguês, que assumiu duas formas:
o chauvinismo grão-russo e o separatismo nacionalista nas antigas nações
subjugadas (Lénine e Stáline, 1979; Stáline 1953, 243 - 44). Quanto mais o fim
da NEP fosse adiado, maior seria o custo de uma viragem para o planeamento e a
propriedade pública. Em 1928, a maior parte dos líderes soviéticos concluiu que
ou os kulaks estrangulariam a revolução ou o Estado soviético teria de
descobrir um meio de cortar o nó górdio. A solução determinava que: a) O
socialismo podia ser construído num só país através da industrialização rápida.
b) A industrialização rápida podia ser financiada com o aumento do rendimento
da agricultura através das cooperativas agrícolas e da mecanização. c) Um
confronto com os kulaks seria inevitável. d) O crescimento da indústria
e da agricultura podia ser coordenado através do planeamento central (Keeran e
Kenny, 2004, 18). desigualdades no campo e os desequilíbrios na indústria.
Diminuíram as possibilidades de crescimento rápido da indústria pesada
socialista. Formas de consciência social instigando a agitação e o retrocesso
ideológico atingiram o interior do Partido e ameaçavam a sua unidade.8
A corrupção floresceu.9 Entre 1921-28, o imperialismo utilizou a NEP, no quadro das relações
externas, para se ingerir nos assuntos soviéticos.10
O poder premonitório da NEP
Tal como a NEP, a ESM avançou e realizou a
recuperação das forças produtivas através de um recuo para relações
capitalistas de produção historicamente ultrapassadas, discordantes de outros objetivos
socialistas a médio e longo prazo da China Popular. Se na verdade a NEP é a
matriz da ESM, que fenômenos seria de esperar que ocorressem na China? Nós
esperaríamos ver – e estamos a ver – o crescimento de forças de classe hostis
dentro do país; corrupção no Partido; regressão ideológica; agitação social;
desemprego; desigualdade crescente entre ricos e pobres; desigualdade entre
regiões; privações e agitação no campo;11 condições gravosas para os imigrantes das zonas rurais em busca de
trabalho nas cidades; abusos laborais, especialmente nas empresas controladas
pelas corporações transnacionais (CTNs); distanciamento dos trabalhadores
industriais e camponeses pobres em relação ao Partido; declínio dos serviços de
saúde e educação (Hart-Landsberg and Burkett, 2004, 58-75).
Certas características especiais da ESM tornam a
China Popular ainda mais vulnerável aos seus perigos do que a Rússia o foi
durante a NEP. A inovação doutrinária da etapa primária de socialismo permitiu,
até muito recentemente, uma atitude displicente em relação aos sinais de aviso.
12«A China encontra-se e permanecerá por um longo período de tempo
na fase primária do socialismo, etapa histórica inevitável na modernização
socialista de um país atrasado do ponto de vista econômico e cultural, que se
prolongará por uma centena de anos» (Estatutos do Partido Comunista da China,
parcialmente revistos no XVII Congresso Nacional do PCC e aprovados em 21 de
Outubro de 2007, http://news.xinhuanet.com/english/2007-10/25/content_6944738.htm) [Link
actualizado pelo editor da presente versão portuguesa].
13Um historiador econômico
contemporâneo dos EUA, Robert C. Allen, afirma que o ritmo da industrialização
do Primeiro e Segundo Planos Quinquenais atingiu um crescimento de 12,7 por
cento ano (2003, 219). Esta é uma visão semelhante à do economista marxista
Maurice Dobb, que cita economistas burgueses anti-soviéticos nos Estados
Unidos, os quais calcularam taxas de crescimento da produção industrial
soviética pelo menos de 14 por cento entre 1929 e 1937 (1968, 261-62).
A China tem uma integração muito mais plena na
economia capitalista mundial, fato imposto por instituições tais como a
Organização Mundial do Comércio (OMC). Desta integração resulta a facilidade de
transmissão de choques econômicos externos. A China permanece dependente de uma
ordem política e militar dirigida pelo imperialismo. A pressão imperialista
para desregulamentar o sistema financeiro da China e, mais amplamente, para
enfraquecer o controle do Estado sobre o conjunto da economia e «se abrir»,
persiste. Se a China procurar corrigir abusos laborais nas empresas propriedade
das CTNs, estas ameaçarão reduzir ou suspender os investimentos no país.
Questões decorrentes para ESM da China
Se esta análise da NEP é correta, então
colocam-se logicamente certas questões.
A crise da ESM
agravar-se-á forçosamente? A China conseguiu resultados extraordinários através
do alargamento das relações capitalistas de produção, a mesma contradição que
atormentou a NEP. Durante quanto mais tempo será a ESM sustentável? Para se por
termo à NEP na União Soviética, em 1928-29, foi necessária uma luta demasiado
sangrenta no campo, «uma terceira revolução», nas palavras de Bukhárine. Não
será razoável pensar que a reversão do curso na China, se for adiada por «uma
centena de anos»12, irá também exigir
um preço demasiado alto? A nova doutrina da «etapa primária do socialismo», a
estender-se quase infindavelmente no futuro, parece subestimar gravemente a
velocidade da constituição de classes objetivamente hostis ao socialismo na
China Popular.
Quais são as
prováveis conseqüências da ESM na esfera da ideologia? Nos meados da década de
1920 os líderes soviéticos notaram a ascensão do nacionalismo pequeno-burguês.
Poderá alguém avaliar o impacto ideológico regressivo da descolectivização e do
retorno à propriedade privada em milhões de camponeses chineses?
Haverá um caminho
de desenvolvimento para a China Popular que ofereça uma taxa de desenvolvimento
das forças produtivas igual ou ainda mais rápida? No Primeiro Plano Quinquenal,
quando a URSS superou a NEP, foram atingidas taxas anuais de crescimento
industrial da ordem dos 13 por cento.13 Dado que a construção socialista significa ao mesmo tempo criar
relações socialistas de produção e aumentar as forças produtivas, poderá fazer
mais sentido aceitar um crescimento mais lento da produção se tal for exigido
para dedicar mais atenção ao reforço da rede de segurança social e à
recuperação do bem estar dos trabalhadores e camponeses?
14Monopólios transnacionais de propriedade ocidental e japonesa
controlam cada vez mais a economia chinesa. A sua parte nas vendas totais de
produtos manufaturados na China passou de 2,3 por cento em 1990 para 31,3 por
cento em 2000 (Hart-Landsberg and Burkett 2004).
15A Foreign Affairs é
uma revista chave no debate da classe dominante dos EUA acerca de política
externa. Num artigo na Foreign Affairs, Zheng Bijian escreveu com a
maior ingenuidade que uma «ascensão pacífica» dependia dos anseios da potência
em ascensão, não dos armamentos da potência hegemônica, os EUA, armada até os
dentes com milhares de armas nucleares e com um cadastro medonho no seu emprego
contra um povo asiático. Zheng escreve: «A China não seguirá o caminho da Alemanha
que levou à I Guerra Mundial» e «a China ultrapassará diferenças ideológicas no
seu empenho pela paz, desenvolvimento e cooperação». O artigo identifica o
autor como um dos que «redigiu relatórios chave em cinco congressos nacionais
do partido chinês e que ocupa postos elevados em organizações acadêmicas e do
partido na China» (2005).
Será totalmente
inédito que fenômenos de crises inesperadas surjam na ESM fora do controle das
autoridades de Pequim? A NEP foi cheia de surpresas. As relações capitalistas
de produção na China são vastas. A integração do país no sistema capitalista
está avançada. Muitos – incluindo a Wall Street (Kahn 2005; Barboza 2006b) —
temem a emergência de um dos maiores males do capitalismo, uma crise cíclica de
sobre produção ou, no jargão dos negócios, um crash após um longo boom.
Os planejadores centrais em Pequim cederam muito poder à espontaneidade do
mercado.14 Será que está posta
em causa a capacidade do Estado de estabilizar uma economia estrepitosa e
amortecer o impacto brutal de choques externos?
Haverá algum
realismo em supor que o imperialismo consentirá uma «ascensão pacífica da
China»?15 A NEP restringiu as
«concessões estrangeiras» e confinou o comércio externo praticamente às trocas
de cereais por maquinaria pesada. O peso da China na economia mundial tem
aumentado. Mas a história teve episódios sinistros. Porventura a Grã-Bretanha
imperialista aquiesceu à «ascensão pacífica» da Alemanha em 1870-1914? Ou a
América imperialista aquiesceu à «ascensão pacífica» da URSS em 1945-91? A
história mostra-nos que a China Popular terá de lutar pelo seu sistema
socialista, pela sua independência nacional e pela paz. O imperialismo é
inimigo destes três objetivos.
Se a ESM significa
que a China continuará a pugnar pela sua integração num mundo política e
economicamente dominado pelos EUA, como poderá este país socialista cumprir
suas responsabilidades internacionalistas? Deverá a China procurar
desenvolver-se atraindo investimentos estrangeiros e competindo no comércio
exterior apenas na base dos salários baixos?16 Os interesses da classe trabalhadora da China não são os únicos que
estão causa. Todos os amigos do socialismo chinês ficaram satisfeitos com os
passos dados recentemente para melhorar os direitos laborais (Barboza 2006a).
Quando a URSS alcançou milagres de produção nos primeiros dois Planos
Quinquenais, revolucionários de todo o mundo ganharam ânimo. O prejuízo
ideológico para o prestígio do socialismo provocado pela imagem da China –
merecida ou não – como «fábrica do mundo com péssimas condições de trabalho» é
grande.
16«Apesar de os custos horários
totais dos trabalhadores industriais terem aumentado mais rapidamente na China
do que nos Estados Unidos entre 2002 e 2004, a remuneração horária por
trabalhador na China continuava a ser três por cento do nível dos Estados
Unidos» (Lett and Banister 2006).
Conclusão
É de saudar que a liderança iniciada em 2002,
perturbada por indicadores negativos, esteja a combater mais firmemente as conseqüências
perniciosas da ESM. Este estudo, assim o espero, acrescenta argumentos,
baseados na teoria e na história, aos esforços dos líderes chineses que desejam
ir mais adiante nesta retificação. O movimento revolucionário mundial sofreu
imensas perdas com a destruição do socialismo na Europa e na URSS quase no fim
do século XX. O movimento ainda está a lutar para recuperar deste revés. Tremo
ao pensar no desespero que dominará toda a humanidade progressista no século
XXI se a subestimação dos perigos inerentes à «economia socialista de mercado»
vier a causar danos irreparáveis às realizações revolucionárias da China
Popular.
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Para a História do
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Original em inglês publicado em Nature, Society, and Thought,
vol. 20, no. 1, 2007
disponível em
http://webusers.physics.umn.edu/~marquit/nst201a.pdf
Tradução portuguesa de www.resistir.info*, revisão e
edição por CN, 26.11.2008
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