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terça-feira, 29 de abril de 2014

Nota de Joaquim Barbosa revela que ele não sabe de nada

Publicado em Carta Maior

Uma autoridade do Estado que se utiliza do cargo para conclamar o repúdio a pessoas e a opiniões mostra que não sabe o que é ser um democrata.


Antonio Lassance
Arquivo

Irritado com as declarações do ex-presidente Lula à Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), contrárias à condução do processo do mensalão, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, soltou uma nota em defesa do processo e externando sua visão sobre o STF.

Nela, afirma que Lula tem “dificuldade em compreender o extraordinário papel reservado a um Judiciário independente em uma democracia verdadeiramente digna desse nome” e arremata dizendo que o STF é um "pilar essencial da democracia brasileira".

Barbosa avalia que a declaração de Lula "é um fato grave que merece o mais veemente repúdio", e que emite um sinal ruim ao "cidadão comum".

"Cidadão comum", como sabemos, é uma daquelas expressões orwellianas, usadas por quem acha que todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros. Há cidadãos e "cidadãos comuns".

Na condição de "cidadão comum", creio que o fato mais grave e que merece repúdio é alguém que se diz parte de um "pilar da democracia" não admitir o direito de quem quer que seja de criticar o STF, assim como podemos hoje criticar qualquer governo e o Congresso. São todos órgãos do Estado, fundados e mantidos pelo cidadão.

O grave é uma autoridade do Estado se utilizar de seu cargo para conclamar, em uma nota assinada enquanto presidente do Supremo Tribunal Federal, o repúdio a pessoas e a opiniões.

Se alguém tem dificuldade para compreender alguma coisa em matéria de democracia, de uma forma que seja "verdadeiramente digna desse nome", esse alguém é o próprio Joaquim Barbosa.

Qualquer aula de introdução à Ciência Política e qualquer cursinho sobre instituições políticas brasileiras mostram que o pilar da democracia é o princípio da soberania popular.

Nossa Suprema Corte não é constituída por esse princípio. Não é sócia fundadora da democracia. É fundada por ela. É ramo, e não raiz.

Barbosa poderia ter dito, por óbvio que seja, que o Judiciário é um pilar da Justiça, da liberdade, dos direitos humanos, inclusive contra os riscos dos governos da maioria.

Barbosa poderia e até deveria ter dito que esse não é um órgão democrático e representativo, pois não é eleito, mas que não deve se envergonhar disso. Trata-se de um órgão meritocrático, e até isso pode ser posto em dúvida. Até que ponto os ministros que vão para o Supremo são, de fato, os melhores? Há controvérsias saudáveis a respeito.

A confusão de Barbosa explica, em grande medida, sua dificuldade de distinguir entre a missão do Judiciário e o serviço do justiceiro.

Tal confusão demonstra de onde vem sua obsessão por invadir o espaço reservado aos demais Poderes. Em seu cálculo, o risco institucional vale menos que uma manchete. Daí o gosto pelos saltos triplos carpados hermenêuticos, como disse um ex-ministro daquele mesmo STF, que também gostava de praticar ginástica institucional.

O raciocínio rasteiro que subjaz à sua baboseira retórica revelou-se, não faz muito tempo, na indecisão de Barbosa quanto a sair ou não candidato. Embora já não possa se candidatar em 2014, até hoje ele continua falando e agindo como candidato, e não como presidente de um Poder da República.

Sua "lição" de estadista contra Lula mostra o quanto Barbosa se desentende com o que é ser um estadista. Nem mesmo seu cargo de presidente do Supremo; nem sua assessoria; nem sua toga esvoaçante foram capazes de encobrir seu despreparo na hora de redigir uma nota em que deva expressar uma correta definição sobre o que é e para que serve o STF.

O Supremo é um um órgão essencial, mas hoje tristemente comandado com mão de ferro - e como se isso fosse uma virtude, e não um veneno - por quem não tem qualquer traço de estadista, muito menos de democrata.


(*) Antonio Lassance é cientista político.

A economia paralela na URSS:Como tudo começou



Valentine Katassonov(1)

A questão sobre a derrocada e destruição da URSS está longe de ser fútil. Ainda hoje,
passados 22 anos do desaparecimento da URSS, não perdeu a sua atualidade. Porquê?
Porque, na base deste acontecimento, alguns tiram a conclusão de que o modelo
econômico capitalista é mais competitivo, mais eficiente e não tem alternativa. Após a
derrocada da URSS, o cientista político norte-americano, Francis Fukuyama, apressou-se
mesmo a proclamar o advento do «fim da história»: a humanidade teria atingido a fase
superior e última do seu desenvolvimento na forma do capitalismo universal, global.

A atualidade do estudo da economia paralela na URSS
Na opinião de cientistas políticos, sociólogos e economistas deste tipo, o debate do modelo
econômico socialista não merece a mínima atenção. É melhor concentrar todos os
esforços no aperfeiçoamento do modelo econômico capitalista, isto é, no modelo que
orienta todos os membros da sociedade para o enriquecimento, e em que este
enriquecimento (a obtenção de lucro) se faz mediante a exploração de uma pessoa por
outra. É certo que deste modo emergem as características «naturais» do modelo
capitalista, como a desigualdade social e material, a concorrência, as crises cíclicas, as
falências, o desemprego, e tudo o mais. Todos os aperfeiçoamentos que se propõem
visam apenas atenuar as consequências desumanas do capitalismo, o que faz lembrar
como são vãs as tentativas de limitar o apetite do lobo que está a devorar uma ovelha.
Partiremos do pressuposto de que as características sociais e econômicas principais
do modelo socialista são a garantia do bem-estar de todos os membros da sociedade
(objetivo), a propriedade social dos meios de produção (meio principal), a obtenção de
rendimentos exclusivamente do trabalho, o caráter planificado da economia, a
centralização da direção da economia nacional, a detenção pelo Estado das alavancas de
controle, os fundos sociais de consumo, o caráter limitado das relações monetário mercantis,
etc.
Entendemos por bem-estar não só o acesso a produtos e serviços, que asseguram a
satisfação das necessidades vitais (biológicas) humanas. Aqui devemos também incluir a
segurança social e a proteção, a educação, a cultura, as condições de trabalho e repouso.
É claro que o socialismo não é apenas economia e relações sociais. Ele pressupõe
igualmente um determinado tipo de poder, de ideologia e um elevado nível de
desenvolvimento espiritual e moral da sociedade, entre outros. Elevadas necessidades
espirituais e morais devem pressupor as mais altas aspirações no que toca aos objetivos
sociais e econômicos. É precisamente sobre o aspecto social e econômico do modelo socialista que nos vamos concentrar
Pois bem, a erosão do modelo socialista começou muito antes dos acontecimentos
trágicos de Dezembro de 1991, quando foi assinado o vergonhoso acordo sobre a divisão
da URSS na floresta de Bieloveja. Este foi o ato final do regime político. É a data não só
da morte da URSS, mas a da completa legalização do novo modelo social e econômico,
que se chama «capitalismo». No entanto, o capitalismo oculto amadureceu no seio da
sociedade soviética ao longo de cerca de três décadas. A economia soviética há muito que
tinha adquirido, de fato, traços de uma economia multiforme. Nela conjugavam-se
estruturas socialistas e capitalistas. Aliás, alguns investigadores e políticos estrangeiros
consideraram que a completa restauração do capitalismo na URSS teve lugar logo nos
anos 60 e 70. Nomeadamente, logo no início dos anos 60, Willi Dickhut, membro do
Partido Comunista Alemão, iniciou uma série de artigos nos quais constatava que, com a
chegada ao poder de N.S. Khruchov, ocorreu (não começou, mas sim ocorreu!) a
restauração do capitalismo na URSS.
 A economia paralela funcionava segundo princípios distintos dos socialistas. De uma
forma ou doutra, estava ligada à corrupção, à dilapidação do patrimônio do Estado, à
obtenção de rendimentos não provenientes do trabalho, à violação das leis (ou utilização
de «buracos» na legislação»). Mas não se deve confundir a economia paralela com a
economia «não-oficial», que não contrariava as leis e os princípios da sociedade
socialista, mas apenas complementava a economia «oficial». Isto refere-se
primeiramente à atividade laboral individual, por exemplo, o trabalho do kolkhoziano
na sua parcela pessoal ou do citadino no quintal da sua casa de campo. E na melhor época
(sob Stálin), as cooperativas de produção, que se dedicavam à produção de artigos de
consumo e aos serviços, conheceram um amplo desenvolvimento.
Na URSS, as autoridades estatais e partidárias preferiram não encarar o fenômeno da
economia paralela. É claro que os órgãos judiciais descobriam e desmontavam diferentes
operações na esfera da economia paralela. Mas os dirigentes da URSS, confrontados com
tais episódios, fugiam ao assunto com frases do tipo «insuficiências isoladas»,
«deficiências», «erros», etc. Por exemplo, no início dos anos 60, o então primeiro-vicepresidente do Conselho de Ministros da URSS, Anastás Mikoian, definiu o mercado negro na URSS como «uma mão cheia de espuma suja, que flutua à superfície da nossa sociedade».

A economia paralela na URSS: algumas avaliações

Até ao final dos anos 80 não existiam na URSS quaisquer investigações sérias sobre a
economia paralela. As primeiras surgiram no estrangeiro. Desde logo deve-se referir o
trabalho do sociólogo norte-americano, Gregory Grossmann (Universidade da
Califórnia), intitulado A Autonomia Destruidora. O Papel Histórico de Tendências Reais
na Sociedade Soviética. Este trabalho teve grande divulgação ao ser publicado, em 1988,
na coletânea Luz ao Fundo do Túnel (Universidade Berklay, sob coordenação de
Stephen F. Cohen). No entanto, o primeiro artigo de Grossmann sobre este tema surgiu
ainda em 1977 com o título «A segunda economia da URSS» (revista Problemas do
Comunismo, Setembro/Outubro de 1977).
Também se pode referir o livro do jurista soviético, emigrado nos EUA, Konstantine
Simissa, Corrupção na URSS – O Mundo Secreto do Capitalismo Soviético, editado em
1982. O autor teve ligações estreitas nos anos 70 com alguns elementos da economia
paralela, dos quais foi advogado em processos judiciais. Porém, K. Simiss, não faz
qualquer avaliação quantitativa da economia paralela.
Mais tarde surgiram trabalhos dos sociólogos e economistas norte-americanos de
descendência russa, Vladimir Treml e Mikhail Alekséiev. A partir de 1985, Gregory
Grossmann e Vladimir Treml editam periodicamente coletâneas sobre a economia
paralela na URSS. A edição manteve-se até 1993, tendo sido publicadas 51 investigações
realizadas por 26 autores. Muitas investigações baseavam-se em inquéritos sociológicos
realizados juntos de famílias emigrantes da URSS (ao todo foram entrevistadas 1061
famílias). Foram também utilizados inquéritos a emigrantes de outros países socialistas,
estatísticas oficiais da URSS, materiais publicados na imprensa generalista e nas revistas
científicas da União Soviética. Apesar de as avaliações quantitativas variarem consoante
os autores, tais discrepâncias não são fundamentais. As diferenças devem-se ao fato de
uns autores analisarem a «economia não-oficial» e outros a «economia paralela». Deste
modo, as avaliações de uma e outra não podiam coincidir.
Vejamos alguns resultados destas investigações.
1. Em 1979 a produção ilegal de vinho, cerveja e outras bebidas alcoólicas, bem como
a revenda especulativa de bebidas alcoólicas, produzidas na economia «oficial», gerava
receitas equivalentes a 2,2 por cento do PIB (Produto Interno Bruto).
2. Nos finais dos anos 70, o mercado paralelo de gasolina prosperava na URSS. Entre
33 a 65 por cento dos abastecimentos de automóveis particulares, nas regiões urbanas do
país, eram feitos com gasolina vendida por motoristas de empresas e organizações do
Estado (a gasolina era vendida a preços inferiores aos fixados pelo Estado).
3. Nos cabeleireiros soviéticos, as receitas não declaradas superavam o montante que
os clientes pagavam através do caixa. Isto é um dos exemplos de que algumas empresas
do Estado pertenciam, de fato, à economia paralela.
4. Em 1974, o trabalho em terrenos particulares representava quase um terço das
horas de trabalho despendidas na agricultura, que constituíam quase dez por cento de
todo o tempo de trabalho na economia da URSS.
5. Nos anos 70, cerca de um terço da produção da agricultura provinha das parcelas
particulares, e uma parte significativa dessa produção era escoada nos mercados dos
kolkhozes.
6. No final dos anos 70, cerca de 30 por cento dos rendimentos da população urbana
eram obtidos em diferentes tipos de atividades privadas, tanto legais como ilegais.
7. No final dos anos 70, a «economia paralela» ocupava entre dez a 12 por cento do
total da força de trabalho da URSS.
No final os anos 80 surgiu na URSS uma série de trabalhos sobre a economia paralela.
Em primeiro lugar temos as publicações da economista soviética, Tatiana Koriáguina, e
do diretor do Instituto de Investigação Científica do Gosplan, Valéri Rutgueizer. Eis
alguns dados da investigação de T. Koriáguina:
No início dos anos 60, o valor anual das mercadorias e serviços produzidos e vendidos
ilegalmente representava cinco bilhões de euros, enquanto no final dos anos 80 já
atingia cerca de 90 bilhões de rublos. Em 1960, o PIB da URSS (preços correntes)
era de 195 bilhões de rublos e, em 1990, de 701 bilhões de rublos. Deste modo,
a economia da URSS, em 30 anos cresceu 3,6 vezes, enquanto a economia paralela
cresceu 14 vezes. Se em 1960, a economia paralela representava 3,4 por cento do PIB
oficial, em 1988 esta proporção era já de 20 por cento. E se é verdade que o seu peso caiu
para 12,5 por cento em 1990, tal ficou a dever-se à alteração da legislação soviética que
legalizou uma série de atividades econômicas privadas, antes consideradas ilegais.
Segundo a avaliação de Koriáguina, a economia paralela empregava seis milhões de
pessoas, número que subiu para 17-20 milhões de pessoas em 1970 (6-7 por cento da
população), e atingiu os 30 milhões em 1989, ou seja, 12 por cento da população da URSS.

Perigos e consequências do desenvolvimento
da economia paralela na URSS
Os investigadores, tanto soviéticos como norte-americanos, analisaram algumas
especificidades da economia paralela e a sua influência na situação geral da URSS.
1. A economia paralela, enquanto fenômeno assinalável, surgiu no final dos anos 50,
princípios dos anos 60. Todos os investigadores univocamente relacionam este fenômeno
com a chegada ao poder de Khruchov, que a par de outras decisões irrefletidas, fez sair
da garrafa o gênio da economia paralela. É de assinalar que até aqueles autores que fazem
uma apreciação bastante negativa da figura de Stálin, são obrigados a reconhecer que
no período em que Stálin esteve no poder, não havia praticamente economia paralela
ou clandestina. Em contrapartida havia a pequena produção mercantil, nomeadamente
as cooperativas artesanais e industriais nas cidades. Khruchov liquidou a pequena
produção mercantil, e o seu lugar foi ocupado pela economia paralela.
2. A economia paralela estava mais desenvolvida nas regiões centrais da URSS do que
na periferia do país. Grossmann estimou que, no final dos anos 70, os proventos com
origem na economia paralela representavam cerca de 30 por cento dos rendimentos da
população urbana da URSS. Na República da Rússia, estes proventos estavam em linha
com a média nacional, mas na Bielorrússia, Moldávia e Ucrânia elevavam-se a cerca de
40 por cento, e na Transcaucásia e Ásia Central atingiam quase 50 por cento dos
rendimentos da população urbana. Na Armênia, entre os nacionais armênios, este
indicador disparava para 65 por cento. A hipertrofia da economia paralela numa série de
repúblicas da União criava a ilusão de que tais repúblicas eram «auto-suficientes». Dado
que parecia que tinham um nível de vida mais elevado do que na Rússia, então podiam
subsistir e desenvolver-se à parte da URSS. Tudo isto criou um terreno propício para
movimentos nacionais separatistas nas repúblicas.
3. A economia paralela existia à custa dos recursos do Estado. Uma parte significativa
das suas atividades só podia ser desenvolvida mediante a dilapidação dos recursos
materiais das empresas e organizações do Estado. No entanto, criou-se a ilusão de que a
economia paralela complementava as insuficiências da economia oficial. O que acontecia
na realidade era uma «redistribuição» dos recursos do sector estatal (e kolkhoziano)
para a economia paralela.
4. A economia paralela gerava corrupção. Os proprietários de estruturas clandestinas
subornavam dirigentes e funcionários das empresas e organizações do Estado. Para quê?
Para que, no mínimo, não perturbassem os negócios escusos; no máximo, se tornassem
cúmplices, colaborando no fornecimento de matérias-primas, mercadorias, meios de
transporte, etc. Este era o primeiro nível, microeconômico, da corrupção. Seguia-se o
nível regional, que estava ligado ao suborno dos órgãos judiciais e em geral dos órgãos
regionais de poder de Estado. Criou-se assim um sistema de proteção regional dos
negócios ilegais. Por fim, a corrupção atingiu o terceiro nível no Estado central. Os
homens da economia paralela começaram a fazer lobby em prol dos seus interesses
econômicos nos ministérios e departamentos. A economia apenas formalmente
continuava a desenvolver-se de forma planificada e as decisões econômicas diretoras
começaram a ser tomadas ao nível central sob influência dos homens da economia
paralela.
5. Os donos de negócios ilegais acumularam capitais tão importantes que puderam
começar a fazer lobby junto do poder político do País. Mas os limites do modo de
produção socialista, mesmo que já só formais em muitos aspectos, tornaram-se
apertados para os empresários da economia paralela. Começaram então a preparar a
restauração completa do capitalismo. Isso aconteceu no período em que Gorbatchov
estava no poder, sob a capa das consignas falsas lançadas na perestroika. Esta
perestroika, em última análise, foi iniciada não por Gorbatchov ou Iákovlev. Ela foi
organizada pelo capital clandestino, por ordem de quem agiram os «reformadores» do
PCUS.5


1 Valentine Iúrievitch Katassonov (1950) licenciou-se no Instituto Estatal de Relações
Internacionais – MGIMO (1972), onde seguiu a carreira académica tornando-se professor da cátedra
de Finanças Internacionais. Doutorado em Ciências Económicas, chefiou entre 2001 e 2011 a cátedra
de Relações Internacionais de Crédito e Divisas do MGIMO, adstrita ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros da Rússia. Entre 1991 e 1993 foi consultor da ONU, no departamento de Problemas
Económicos e Sociais. De 1993 a 1996 integrou o conselho consultivo do presidente do Banco Europeu
para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD). Autor de dezenas de obras sobre temática
económica, é actualmente presidente da Associação Russa de Economia S.F. Charapov. Serguei
Fiódorovitch Charapov (1855-1911) foi um economista e político russo, aristocrata eslavófilo, que
preconizava um modelo de desenvolvimento «genuinamente russo», em oposição ao capitalismo
ocidental, assente na autocracia, na igreja ortodoxa e nas especificidades do povo russo. Inspirada nas
ideias de Charapov, a referida Associação afirma-se contrária à adesão da Rússia à Organização
Mundial do Comércio e alerta para os perigos da transformação do país numa mera colônia da
oligarquia financeira mundial. Como se pode ler no seu site (reosh.ru), a Associação pretende «dar
um impulso à união dos empresários russos para a realização de projetos conjuntos, ajudar todos
os russos a se libertarem das concepções econômicas liberais e a formarem a sua visão nacional da
economia». Pelo exposto fica claro que o autor não parte de concepções marxistas para a análise de
aspectos relevantes da história da URSS, como aqueles que são tratados no presente texto, publicado
no dia 3 de Fevereiro, bem como noutros trabalhos, que contamos oportunamente divulgar. (N. Ed.)

2 O acordo de Bieloveja (na Bielorrússia), sobre a criação da Comunidade de Estados
Independentes e a extinção da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), foi assinado, a 8
de Dezembro de 1991, pelos líderes das repúblicas soviéticas da Rússia (RSFSR), da Bielorrúsia e da
Ucrânia, respectivamente Boris Éltsine, Stanislav Chukevitch e Leonid Kravchuk. (N. Ed.)

3 Willi Dickhut (1904-1992), serralheiro e torneiro mecânico, entrou para o partido Comunista da
Alemanha em 1926. Viveu oito meses na URSS (1928-1929), onde trabalhou como operário
especializado. Regressado à Alemanha, é eleito em Março de 1933 membro da Assembleia Municipal
da cidade de Soligen (região administrativa de Dusseldorf, estado da Renânia do Norte-Vestfália),
mas é forçado a passar à clandestinidade pouco depois, na sequência da ascensão de Hitler ao poder.
Preso em 1938, é condenado a de 21 meses de prisão. É novamente preso em Agosto de 1944, mas os
bombardeamentos dos aliados dão-lhe uma oportunidade de fuga em Novembro do mesmo ano.
Depois de 1945, integra a direcção do partido como responsável adjunto pela secção de quadros. Em
1966, após se ter manifestado criticamente sobre a situação na URSS, é expulso do partido (DKP).
Liga-se mais tarde ao Partido Comunista da Alemanha (marxista-leninista). Em 1972 participa na
fundação da Liga Operária Comunista da Alemanha, que vem a integrar o Partido Marxista-Leninista
da Alemanha, fundado em 1982. O seu principal trabalho, e base teórica das formações políticas que
dirige, é o livro A Restauração do Capitalismo na União Soviética, publicado em várias partes entre
o início dos anos 1971 e 1988. (N. Ed.)

4A tese sobre a restauração completa do capitalismo na URSS nos anos 50, 60 ou 70 suscita
fundadas objecções. Não para contraditar o autor, que nos fornece informação importante sobre a
URSS, vale no entanto a pena citar a este propósito uma passagem do artigo «A restauração do modo
de produção capitalista na União Soviética», publicado pela revista italiana Rapporti Sociali:
«É inconsistente a tese que afirma que a restauração do modo de produção capitalista na URSS
se realizou nos anos 50. (…) Apesar de numerosas tentativas e experiências, Khruchov, Kossíguine
e Bréjnev nunca chegaram a introduzir à escala geral a gestão da economia mediante o “cálculo
económico”, como lhes chamavam, ou a “autonomia financeira” das unidades produtivas; ou seja,
através do rendimento em dinheiro resultante da actividade da cada unidade produtiva. Por isso
nunca chegaram a converter o mercado (ou, como diziam, “os contactos directos entre as unidades
produtivas”) em regulador geral da actividade económica. O comércio externo continuou a ser
monopólio do Estado. A força de trabalho só marginalmente foi reduzida à condição de mercadoria
(a liberdade de compra e venda é uma característica essencial da sua natureza de mercadoria). A
planificação económica dos países socialistas, inclusivamente lá onde se mostrava ineficaz, a única
coisa que tinha em comum com o monopólio que existia nos diferentes sectores dos países
imperialistas era a aparência; com efeito, o que é específico do monopólio na sociedade burguesa é
a obtenção de um superlucro em relação a outros sectores do capital, que continuam operando em
condições de concorrência. O facto de se ter esquecido tudo isto e falar de restauração do capitalismo
levou inevitavelmente a uma crítica idealista dos revisionistas modernos, ou seja, a uma crítica que
punha em primeiro plano a superstrutura (a política e a cultura) e em segundo plano a estrutura
económica. (…)
(http://www.hist-socialismo.com/docs/Restauracao CapitalismoURSS.pdf) (N. Ed.)

5 O tema da economia paralela na URSS é tratado com grande profundidade no livro de Roger Keeran e
Thomas Kenny, O Socialismo Traído – Por Trás do Colapso da União Soviética, Edições Avante!, Lisboa,
2004. (N. Ed.)

Para a História do Socialismo
Documentos
www.hist-socialismo.net
Tradução do russo e edição por CN, 18.02.2014
(original em: http://reosh.ru/tenevaya-ekonomika-v-sssr.html)
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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Proclamam República Popular de Lugansk no leste da Ucrânia

Escrito por Camila Carduz

 (Prensa Latina) Grupos de autodefesa do leste ucraniano proclamaram a criação de um estado soberano denominado República Popular de Lugansk, na região de mesmo nome, confirmou hoje um porta-voz dessas forças partidárias da federalização.
Os ativistas que estão contra as autoridades impostas em Kiev depois da derrocada do presidente Víktor Yanukóvich informaram que será criado um Conselho Supremo republicano para organizar e dirigir a estrutura administrativa territorial.

Todos os residentes da região, independente de sua nacionalidade, condição social ou postura política, terão garantidos seus direitos na República, informou a fonte.

Os ativistas rebeldes explicaram que a própria República Popular de Lugansk determinará seu status econômico, sua política financeira e inversora e criará seu próprio orçamento.

Assim como as também declaradas República Popular de Donetsk e de Járkov no começo deste mês, com população majoritariamente de idioma russo, a de Lugansk anunciou que no próximo dia 11 de maio levará a cabo um referendo de autodeterminação.

Os setores rebeldes advertiram que pedirão que a Rússia envie forças pacificadoras para seu território em caso que ocorram ações agressivas por parte do poder de Kiev, que qualificaram de ilegítimo.

O porta-voz das autodefesas de Lugansk lembrou que ontem foi apresentado um ultimato ao Governo imposto depois do golpe contra Yanukóvich que exige um exercício comicial sobre o status do idioma russo, a federalização deste território e uma maior autonomia.

Se estas demandas não se cumprem antes de 29 de abril, passaremos à ação, concluiu a fonte.

As autoridades de Kiev, no entanto, mantêm uma ofensiva militar de grande envergadura no leste do país, enquanto que no sul todas as unidades da Defesa Antiaérea se encontram em máxima alerta, afirmou o Ministério de Defesa.

Segundo essa pasta, as divisões mobilizadas em certas áreas têm foguetes antiaéreos para cobrir as entidades estatais, as tropas mobilizadas e as unidades militares.

No leste, os confrontos mais violentos ocorrem na cidade de Slaviansk, região de Donetsk, onde os milicianos resistem ao Exército, as forças do Ministério de Interior e a Guarda Nacional recém criada com destacamentos do partido neonazi Setor Direito e extremistas de Autodefesas de Maidán.

Serguei Shoigu, ministro de Defesa da Rússia explicou que a ofensiva de grande envergadura ucraniana envolve mais de 11 mil efetivos, cerca de 160 tanques, mais de 230 veículos de combate de infantaria, blindados para transportar tropas e pelo menos 150 canhões e morteiros.

O general de Exército sublinhou que a Rússia se viu obrigada a responder a esta situação no sudeste ucraniano e ordenou realizar exercícios em zonas próximas à fronteira com participação da Aviação de combate.

Assim o Ocidente ressuscita a Guerra Fria

Publicado em OUTRASPALAVRAS
140428-Paraquedistas
Paraquedistas norte-americanos chegam à Polônia em 23/4, para participar de exercícios militares conjuntos. Desde 1990, EUA desrespeitam compromisso de não ampliar OTAN e instalam bases militares em torno da Rússia
Além de não representar ameaça militar ou econômica, Rússia suportou provocações em série. Mas militares, petroleiras e mídia querem fabricar um demônio

Por Roberto Sávio | Tradução: Antonio Martins
Faz várias semanas, agora, que toda a mídia mainstream está engajada em denunciar primeiro a suposta ação de Putin na Crimeia – e em seguida, na Ucrânia. A última capa de The Economist mosta um urso engolindo a Ucrânia, sob o título “Insaciável”. A unanimidade na mídia é sempre constrangedora, porque significa algum ato de dobrar joelhos. Será possível que os quarenta anos de Guerra Fria estejam sendo ressuscitados?
A inércia desta guerra, na verdade, nunca foi rompida. Diga “o presidente comunista de Cuba, Raúl Castro”, e ninguém ficará chocado. Use a mesma lógica, e chame o presidente Obama de “capitalista” e repare nas reações. Na Itália, Sílvio Berlusconi foi capaz, durante vinte anos, de ganhar as eleições contra a “ameaça” do comunismo – representada, segundo ele, pelo partido à esquerda, agora no poder, sob Matteo Renzi, um católico devoto.
No caso da Ucrânia, há pelo menos quatro pontos fulcrais de análise que estão sendo ocultados pelo coro de mídia. O primeiro é que nunca se mencionam as responsabilidades do Ocidente no caso. Deveríamos lembrar que Mikhail Gorbachev, presidente russo ao final dos anos 1990, negociou com os chefes de Estado dos EUA (Ronald Reagan), Grã-Bretanha (Margareth Thatcher), Alemanha (Helmut Kohl) e França (François Mitterrand) que aceitaria a reunificação da Alemanha; mas que que o Ocidente, em contrapartida, não deveria tentar invadir a área de influência da Rússia. Sobre isso, há grande quantidade de documentos.


Mas assim que Gorbachev foi eliminado, o jogo foi reaberto. A total docilidade de Boris Yeltsin, seu sucessor, diante dos Estados Unidos, é bastante conhecida. Muito menos debatido é o fato de o Fundo Monetário Internacional ter oferecido um empréstimo de 3,5 bilhões de dólares, para sustantar o rublo. O empréstimo, porém, foi dirigido ao Bank of America, que o distribuiu entre várias contas russas. Nenhum centavo chegou ao Banco Central russo. O dinheiro desembarcou nas contas de oligarcas, que puderam comprar praticamente todas as empresas públicas russas. Em seu livro Farewell Russia, Gioulietto Chiesa explica o processo em detalhes. E o FMI jamais sequer balbuciou um protesto. Quando um desconhecido Vladimir Putin foi levado ao poder por Yeltsin, ele foi obrigado a aceitar um acordo de proteção aos oligarcas.
Depois de Yeltsin, Putin apoiou a invasão iminente do Afeganistão por Washington, de uma forma que teria sido inimaginável durante a Guerra Fria. Aceitou que aviões norte-americanos sobrevoassem o espaço aéreo da Rússia, que os EUA usassem as bases militares nas repúblicas da ex-União Soviética na Ásia Central, e ordenou aos militares que compatilhassem sua experiênia no Afeganistão. Então, em novembro de 2001, Putin visitou George Bush em seu rancho no Texas, em meio a declarações amistosas (“Putin é um novo líder que ajuda a paz mundial… trabalhando em proximidade com os Estados Unidos”). Poucas semanas depois, Bush anunciou que os EUA estavam abandonando o Tratado de Mísseis Anti-balísticos, para poder construir um sistema de guerra no espaço destinado, em palavras a proteger a OTAN do… Irã. Era uma ação claramente voltada, na prática, contra a Rússia, para espanto de Putin.
Na sequência, em 2002, Bush convidou sete nações da ex-União Soviética – entre elas, Estônia, Lituânia e Letônia – a somar-se à OTAN, o que se concretizou em 2004. Em 2003, a invasão do Iraque, sem consentimento da França, Alemanha e Rússia, transformou Putin num cítico aberto dos Estados Unidos e de sua proposta de promover a democracia passando por cima do direito internacional. No mesmo ano, na Geórgia, a Revolução Rosa levou Saakashvili, um pró-ocidental, ao poder. Quatro meses depois, na Ucrânia, a Revolução Laranja empoderou outro presidente pró-ocidental, Yushcenko. Em 2006, a Casa Banca pediu permissão para reabastecer o avião de Bush em Moscou, mas deixou claro que Bush não teria tempo para saudar Putin. E em 2008, houve a declaração unilateral de independência de Kososo da Sérvia, com o apoio dos Estados Unidos e contra as posições da Rússia. Então, Bush pediu à OTAN para incorporar a Ucrânia e a Geórgia – um tapa na cara de Moscou. Em face disso, não deveria ter causado surpresa o gesto de Putin, que interveio militarmente na Geórgia em 2008, quando este país tentou incorporar as regiões da Ossétia do sul e Abkhazia, de maioria russa. Ainda assim, é fácil lembrar que a mídia tratou o movimento como ação sem motivos.
Obama tentou reparar os danos provocados por Bush nas relações internacionais dos EUA. Ele propôs uma retomada (“reset”) nas relações com a Rússia, que foi, de início, bem sucedida. Moscou aceitou oferecer seu espaço aéreo para transporte de suprimentos militares norte-americanos destinados ao Afeganistão. Em 2010, a Rússia e os Estados Unidos assinaram um novo tratado Start, reduzindo seu arsenal nuclear. E a Rússia apoiou as sanções aprovadas pela ONU contra o Irã, desistindo de vender seis mísseis terra-ar S/300 ao Teerã.
Mas logo a seguir, em 2011, tornou-se claro que os Estados Unidos tentaram intervir nas eleições parlamentares russas. Toda a mídia ocidental colocou-se contra Putin, que acusou os EUA de financiarem, com centenas de milhões de dólares, grupos oposicionistas. O embaixador norte-americano, McFaul, afirmou tratar-se de um grande exagero, e acrescentou que apenas algumas dezenas de milhões de dólares haviam sido doados a grupos da sociedade civil. Putin foi eleito novamente para a presidência em 2012 [após quatro anos como primeiro-ministro], já então obcecado com as ameaças ocidentais a seu poder. Em 2013, ele deu asilo ao ex-agente norte-americano Edward Snowden. Em represália, Obama cancelou um encontro bilateral – a primeira vez em que uma reunião de cúpula entre Washington e Moscou foi desmarcada, em cinquanta anos.
Em meio a tudo isso, houve a Primavera Árabe. A Rússia autorizou ação militar na Líbia, mas apenas para garantir ajuda humanitária. Ela foi utilizada para provocar mudança de regime, e Moscou sentiu-se enganada. Protestou, inutilmente. Então, surgiu a crise na Síria e o Ocidente tentou obter novamente o apoio da Rússia para uma mudança de regime – irritando-se com a recusa de Putin. Finalmente, agora, houve a bem conhecida intervenção na Ucrânia, para colocar o país na União Europeia e distante do bloco econômico eurasiano que a Rússia tenta criar.
O segundo ponto é que nenhuma ação política, exceto uma guerra, pode reduzir a Rússia à condição de um poder apenas local. É o maior país do mundo, em território. Estende-se das fronteiras da União Europeia até o Extremo Oriente. É, ao mesmo tempo, Europa e Ásia. Mantém rivalidade com a China na Ásia, tem conflitos territoriais com o Japão e está diante dos EUA no Estreito de Behring. É um produtor destacado de petróleo, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e tem um arsenal nuclear. Qualquer esforço para cercá-la ou enfraquecê-la, agora que o confronto ideológico ficou para trás, só pode ser visto como parte da velha política imperial.
A Rússia não é uma ameça, ao contrário da União Soviética. Seu PIB é 15% da Europa – que tem 500 milhões de habitantes e 16% das exportações mundiais. A China tem 1,3 bilhão de habitantes, e 9% do comércio mundial. A Rússia, apenas 145 milhões e 2,5% das exportações mundiais. Tem poucas indústrias, também porque Putin não está interessado na modernização do país, que inevitávelmente produziria um crescimento da classe de profissionais instruídos, que já se opõe a ele.
O terceiro ponto é que, portanto, a crise ucraniana deveria ser examinada melhor. É um Estado muito frágil, em que a corrupção controla a política e que vive problemas econômicos estruturais. Seu Oeste é mais rural; o Leste, mais industrializado. Os trabalhadores desta região sabem que um ingresso na Europa representaria o fim de muitas fábricas. No Oeste, muitos colocaram-se ao lado dos nazistas na II Guerra Mundial e há um movimento nacionalista forte, próximo ao fascismo. A Ucrânia é um problema muito caro e complicado.
É evidente que intervir apenas para desafiar Putin, e oferecer dinheiro (basicamente, o que fez a União Europeia) parece um pensamento muito tacanho. Estaria a UE preparada para mudar os critérios de pertencimento ao bloco, para aceitar um país que claramente não se adequa a eles; e a assumir um enorme peso, para aparecer como vencedora, na disputa contra um “homem forte”?
Isso finalmente nos leva ao quarto ponto. Putin é um ex dirigente da KGB, para quem a Rússia foi tratada injustamente, na dissolução da União Soviética. Todos os esforços para chegar a um entendimento com o Ocidente foram traídos, com sucessivas ampliações da OTAN, uma rede de bases militares cercando o país, um claro apoio do Ocidente a todas as oposições, um tratamento comercial medíocre. Ele sabe que estas opiniões sobre o declínio russo são compartilhadas por uma ampla maioria de cidadãos. Mas ele também é um autocrata arrogante, para dizer o menos, que nada tem feito para promover modernização econômica – porque, ao manter a produção e o comércio em suas mãos, conserva seu controle.
Para ele, a Ucrânia foi politicamente inaceitável. Ele está apresentando-se como defensor dos cidadãos russos, algo que lhe permite atuar em todos os lugares onde há minorias russas. A questão é: se Putin se for, haverá uma Rússia democrática, participatória, limpa, incorrompida? Aqueles que conhecem bem o país não acreditam nesta hipótese. Há inúmeros exemplos de que a remoção de autocratas não conduz à democracia por si mesma.
Portanto, haveria lógica em continua a cercar Putin, em nome da democracia? Isso não fortaleceria o próprio jogo do presidente, que associa sua imagem à de defensor dos russos? Eles também sofrem com a inércia da Guerra Fria e não veem o Ocidente exatamente como um aliado. Putin é hoje a única força de coesão na Rússia. Se ele se fosse, haveria, muito provavelmente, um longo período de caos. Isso certamente não interessa aos cidadãos russos… e é sempre perigoso praticar jogos de poder sem levar em conta a estabilidade da Europa… Claro, este não é o cálculo dos estrategistas ocidentais, que adorariam eliminar qualquer outro poder…
Como escreve Naomi Klein, o único vencedor, nesta disputa, são as empresas de energia. Elas estão fazendo campanha para que o mundo torne-se independente do petróleo russo. Portanto, vamos acelerar a produção petroleira nos EUA, a despeito dos notórios prejuízos ao ambiente. E vamos torcer para que a Europa deixe de usar gás russo – “nós exportaremos para eles”. Na verdade, não há estruturas para fazê-lo e seriam necessários muitos anos para criá-las… Mas exatamente no momento em que o mundo debate como controlar a mudança climática, e reduzir o uso de combustíveis fósseis, uma contra-estratégia importante é colocar o tema em segundo plano… Tarzi Vittach, um autor do Sri Lanka, disse, certa vez: “no fundo de tudo, há outra coisa”. Não há muitos exemplos de petróleo e democracia caminhando lado a lado…

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Crônica de Cuba, em meio às mudanças econômicas

Publicado em OUTRASMÍDIAS

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Escritor descreve quotidiano, esperanças e incertezas da Ilha, num tempo de incentivo a iniciativas autônomas, mas dificuldades estruturais persistentes

Por Leonardo Padura, na Envolverde
Os mais recentes vizinhos estabelecidos em meu bairro são beneficiários de uma das mudanças introduzidas pelo governo de Raúl Castro, como parte da chamada “atualização do modelo econômico cubano”.
Eles eram uma das famílias que, por uma razão ou outra, viveram durante anos em albergues coletivos e por fim tiveram a sorte de receber um dos milhares de apartamentos onde antes funcionavam escritórios governamentais — e que foram transformados em moradias, como forma de diminuir o déficit de casas.
Esses vizinhos, que não pagaram, nem podiam pagar, nada pelo imóvel que lhes foi entregue. Vivem de um dos ofícios mais modestos que se pratica na ilha: coleta de papel, papelão, vidro e alumínio, que depois vendem a centros coletores de matérias-primas recicláveis.
Como sua atividade laboral não é suficiente para se manterem, esses vizinhos, beneficiados com a destinação de uma moradia digna e gratuita, agora estão dividindo a habitação para vender uma parte, amparados em outra mudança introduzida pelo governo: a da livre compra e venda de imóveis.
Dessas e de muitas outras maneiras, os cubanos tentam melhorar sua vida, embora no fundo a estejam piorando, vendendo o pouco que têm ou realizando qualquer manejo econômico mais ou menos legal (ou ilegal) que lhes dê dividendos. A raiz mais visível do problema é que os cubanos, sobretudo se trabalham para o Estado, não ganham o suficiente para sobreviver.
Por isso, os que não têm um familiar no estrangeiro que os ajude com algum dinheiro, ou um membro do clã que de alguma forma tenha acesso a ganhos em moeda forte, a cada dia de sua vida devem contar seus centavos para atender às necessidades básicas, como alimentação e higiene.
Mas o terreno no qual está incrustada a aparente raiz do problema não é, na realidade, o valor de mudança dos salários, ou seja, sua capacidade aquisitiva.
O mar de fundo está na macroeconomia que, apesar das mudanças introduzidas, não consegue decolar e se mantém em crescimentos anuais que se movem pouco acima dos 2%.
É um número que está abaixo do que se esperava, quando se pôs em movimento o paralisado sistema econômico cubano, e que também está abaixo dos níveis capazes de garantir um crescimento em condições de reverter a tensa situação em que vivem os cidadãos.
Nem em quantidade nem em qualidade, seus salários são suficientes para a satisfação dessas necessidades básicas… para não falar de luxos inconcebíveis para milhões de cubanos: ir a um restaurante, por exemplo.

A recente abertura da primeira fase da Zona Especial de Desenvolvimento de El Mariel, com seu terminal para supernavios e contêineres, é considerado o primeiro passo para se começar a sonhar com crescimentos que poderão – segundo os economistas, desde que ultrapassem os 5% anuais – iniciar uma mudança substancial na situação do país.
A esperada nova Lei de Investimento Estrangeiro, que talvez coloque essas atividades em níveis similares aos criados para El Mariel, poderia também contribuir para uma melhora da macroeconomia com a entrada de capitais frescos e produtivos no país, se as condições de investimento, segurança e propriedade, entre outras, realmente tornarem atraente montar em Cuba algum tipo de negócio, algo que hoje não ocorre.
Em Mariel funciona, em essência, uma zona franca com facilidades para investimento, pagamento de impostos, comercialização de produtos, etc.
Um sinal estranho de para onde poderiam ir as quantidades e qualidades dos investimentos estrangeiros em Cuba foi enviado pelo próprio governo, quando, em janeiro deste ano, decidiu abrir o mercado de venda de veículos automotores no país, fixando tarifas astronômicas e desproporcionais aos automóveis novos e de segunda (ou quarta) mão colocados no mercado.
Modelos de Peugeot de 60 mil euros tarifados em mais de um quarto de milhão de dólares não é precisamente uma demonstração de boa vontade com os potenciais investidores, além de ser um desdém pelos cubanos (quase sempre profissionais que produzem, com seu trabalho, importantes receitas para o país), que por uma ou outra via haviam obtido o capital necessário para comprar carros que, antes da “abertura” do mercado, já eram suficientemente caros em comparação com os preços praticados em outras partes do mundo.
E o fato de que pouco se tenha vendido carros, ou a indignação expressa por muitas pessoas, não alterou seus preços, como se supõe deve ocorrer em qualquer mercado ou país.
Embora não seja economista nem pretenda sê-lo, creio que as contas econômicas em Cuba são tão obscuras que, ao final, conseguem ser muito claras: se não se encontra vias seguras e eficientes de crescimento, a situação do país e de seus cidadãos não mudará no essencial.
Ainda que uma pequena quantidade de cubanos convertidos em microempresários possa estar fazendo algum dinheiro, sua prosperidade é muito relativa e apenas significativa se comparada com a forma em que vivem e resolvem os problemas meus vizinhos do bairro e outras milhares de famílias como eles.
E o problema que se apresenta com relação ao futuro econômico e social do país seria saber como o capital estrangeiro atuará efetivamente no desenvolvimento e, sobretudo, o grande mistério: como os 11 milhões de residentes da ilha poderão se inserir em uma sociedade mais competitiva.
Será vendendo o único que lhes resta, ou seja, sua força de trabalho, como alerta a filosofia marxista na qual se fundamenta a política oficial cubana? Por enquanto essa obscura perspectiva também parece clara.

Leonardo Padura, escritor e jornalista cubano, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura 2012. Suas obras estão traduzidas em mais de 15 idiomas e sua mais recente novela, 
Herejes, é uma reflexão sobre a liberdade individual.

Luiz Gonzaga Belluzzo: A direita brasileira defende o darwinismo social

Publicado no Correio do Brasil


Belluzzo é um dos economistas heterodoxos brasileiros mais respeitados
Belluzzo é um dos economistas heterodoxos brasileiros mais respeitados

“A direita no Brasil defende desabridamente os princípios do darwinismo social, acolitada por intelectuais de segunda classe”. A afirmação é do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, um intelectual de formação pluridisciplinar formado em Direito pela Universidade de São Paulo em 1965. Em recente entrevista exclusiva ao Correio do Brasil, Belluzzo, que estudou Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, faz uma análise quanto aos horizontes econômicos brasileiros. Belluzzo cursou a pós-graduação em Desenvolvimento Econômico, promovido pela CEPAL/ILPES e graduou-se em 1969. Doutorou-se em 1975 e tornou-se professor – titular na Universidade Estadual de Campinas em 1986.
No campo das políticas públicas, Belluzzo foi assessor econômico do PMDB, entre 1974 e 1992, e secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987), durante o governo de José Sarney. De 1988 a 1990, foi secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, durante a gestão de Orestes Quércia. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney).
Luiz Belluzzo é considerado um dos melhores economistas heterodoxos do Brasil, devido às suas interpretações, sugestões e críticas à sociedade brasileira, sob a ótica de Karl Marx e John Maynard Keynes. Em 2001, foi incluído no Biographical Dictionary of Dissenting Economists entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX.. Recebeu o Prêmio Intelectual do Ano – Prêmio Juca Pato, de 2005.
– Por que as agências de anotações decidiram baixar a nota de crédito do Brasil?
– Essa decisão foi anunciada em meados do ano passado quando as manifestações populares estavam no ápice. Isso foi interpretado pelos senhores do mercado e pela mídia como um sinal de desaprovação da política econômica dos governos do PT, sobretudo contra o “excessivo intervencionismo” do governo Dilma e até mesmo contra o “assistencialismo” das políticas sociais. O anúncio pelo Federal Reserve de redução do Quantitative Easing ateou gasolina ao fogo e formou-se um tsunami de pessimismo em torno da “vulnerabilidade” do Brasil.
Mais recentemente, a nova presidente do Fed, Janet Yellen colocou o Brasil entre os cinco países mais vulneráveis, opinião fundamentada em um relatório vergonhoso de sua assessoria, eivado de deficiências técnicas. As críticas ao relatório foram disparadas por economistas independentes, como Paul Krugman que declarou enfaticamente que o Brasil não está entre os mais vulneráveis> Disse mais: a despeito do desempenho sofrível da indústria machucada pelo câmbio valorizado e da inflação acima da meta (variando nas imediações de 5,6% ao ano), os indicadores dívida bruta /PIB, dívida líquida, dívida externa de curto prazo/PIB são considerados satisfatórios.
Quanto às manifestações, a esmagadora maioria dos manifestantes reclamava a melhoria dos serviços públicos, saúde, educação, transporte urbano. Ou seja, clamavam por mais investimento dos governos manietados pelos ditames dos mercados financeiro que gritam “fogo !” diante de qualquer ameaça a seus poderes e ameaçam os países com a chicote das agência de risco
– A grande imprensa no Brasil e a oposição parecem se jubilar com a perda de credibilidade do Brasil, Em geral os capitalistas praticam o patriotismo econômico em época de crise…no Brasil eles apostam no fracasso da economia e na degringolada geral. Inclusive destilam na imprensa internacional que a contabilidade nacional foi manipulada a fins político?
– Escreví na revista Carta Capital que a eleição presidencial vem baixando o nível do debate, com polarização de opiniões, exageros de pontos-de-vista e abandono dos argumentos, não raro substituídos por ataques “ad hominem”. A campanha eleitoral já em curso, como outras, emite sinais de pródigas manifestações de maniqueísmo. O expediente de satanizar o adversário revela, esta é minha opinião, indigência mental e despreparo para a convivência democrática. Intelectuais, incluídos os jornalistas, não escapam destes desígnios: as sagradas funções da crítica e da dúvida sistemática são atropeladas pela paixão política.
Leio sistematicamente as colunas dos jornais brasileiros. Leio sempre com o espírito disposto a considerar os argumentos, mesmo aqueles que não batem com meus juízos e julgamentos.
Pois, embrenhado no cipoal de opiniões, deparei-me com um luminar da sabedoria nativa que, do alto de sua coluna, alertava a nação para os perigos da exploração do “coitadismo”. Imagino que vislumbrasse nas políticas de redução da pobreza uma afronta aos méritos dos cidadãos úteis e eficientes.
Lembrei-me de uma palestra memorável do escritor norte-americano David Foster Wallace. Diante dos estudantes do Kenyon College, Foster Wallace começou sua fala com um apólogo:
– Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?
Wallace prossegue:
– O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida… Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
O povo brasileiro tem manifestado seu desacordo com os bacanas que, como os peixinhos, mergulhados em seu egocentrismo, não conseguem reconhecer o ambiente social em que vivem. Por isso, os bem sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não enquanto sujeitos de direito.
– Como o senhor analisa este tipo de comportamento?
– Nas últimas décadas, certos liberais brasileiros julgam defender o mercado desfechando invectivas contra as políticas públicas que, em sua visão, contradizem os critérios “meritocráticos”. A direita no Brasil defende desabridamente os princípios do darwinismo social, acolitada por intelectuais de segunda classe.

Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Ditadura & Grandes Empresários: outro caso emblemático

Publicado em OUTRASPALAVRAS
Cubatão, anos 1970: síntese do modelo do regime para setor químico, cidade foi considerada “a mais poluída do mundo”
Cubatão, anos 1970: síntese do modelo do regime para setor químico, cidade foi considerada “a mais poluída do mundo”
Em sintonia com governos militares, floresceu, após 1964, indústria química dependente e devastadora. Seus “capitães” ajudaram a financiar tortura

Por Thomaz Ferreira Jensen
Há 50 anos o comando das Forças Armadas perpetrava golpe de Estado para instaurar a ditadura no Brasil, que se prolongaria por 21 anos. Também há meio século, em junho de 1964, era criada a Abiquim, Associação Brasileira da Indústria Química.
É público e notório que as Forças Armadas agiram com o apoio e a serviço dos interesses da grande burguesia – os donos das principais indústrias, dos bancos, da grande mídia empresarial e das grandes propriedades rurais – e do imperialismo – governo dos Estados Unidos e empresas daquele País com interesses no mercado brasileiro.
A Abiquim congregou, desde o início, as indústrias químicas nacionais e estrangeiras, que aqui já estavam instaladas desde os anos 1920. Permitiu, assim, articular os interesses destas corporações e apresentá-los aos governos da ditadura para obter financiamento e vantagens desde os primeiros meses do regime autoritário.
É já fartamente comprovado o engajamento das principais indústrias químicas, plásticas e farmacêuticas no apoio ao golpe de abril de 1964 e à ditadura que se seguiu. O excelente documentário “Cidadão Boilesen”, lançado em 2009 e dirigido pelo cineasta Chaim Litewski, mostra a estruturação e o financiamento por empresários e banqueiros paulistas da OBAN (Operação Bandeirantes), centro de investigações e torturas montado pelo Exército brasileiro em 1969 para combater organizações de esquerda que confrontavam o regime ditatorial e que geraria, pouco tempo depois, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna). A OBAN significou o poder repressivo comandado e financiado diretamente pelos donos do capital, sem mediações, e executado pelos agentes fardados do Estado, com inteligência da CIA, a central de espionagem do governo dos Estados Unidos.
O caso de Henning Boilesen, retratado no documentário, é exemplar. Dinamarquês naturalizado brasileiro, trabalhou durante 19 anos no grupo químico Ultra, tendo sido presidente da Ultragaz. Aproximou-se de grupos militares e paramilitares e, sádico, costumava acompanhar sessões de tortura na OBAN.


Segundo Elio Gaspari, em seu livro “A ditadura escancarada”, a primeira reunião organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por Delfim Netto, então ministro da Fazenda, e contou com a participação de 15 empresários e banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco Mercantil de São Paulo, que era também presidente do clube Paulistano. Lá, às quintas-feiras, costumava promover almoços com empresários e não raro convidava Delfim Netto para apresentar análises de conjuntura econômica. Ao final da palestra, eram recolhidas as colaborações para a OBAN.
Pery Igel, dono do Grupo Ultra e patrão de Boilesen, foi certamente um dos mais destacados financiadores da OBAN, ao lado de Paulo Ayres Filho, dono da Pinheiros Produtos Farmacêuticos e de executivos das montadoras de automóveis estadunidenses Ford e General Motors. Boilesen é figura paradigmática, triste representação de outras tantas dezenas de empresários que apoiaram e financiaram a ditadura, e que até hoje permanecem anônimos.
Boilesen foi assassinado em 15 de abril de 1971, em São Paulo, numa ação conjunta envolvendo militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes). Delfim Netto compareceu ao enterro e levou consigo Roberto Campos, amigo de ambos.
Delfim participou com destaque de todos os governos ditatoriais e foi signatário do AI-5 – ato do governo militar decretado em dezembro de 1968 que fechou o Congresso Nacional e permitiu ao regime ditatorial acirrar a repressão. Delfim foi o operador do modelo econômico da ditadura, num contexto em que as corporações industriais dos Estados Unidos buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina para barrar o avanço da influência política dos países socialistas, liderados pela União Soviética.
O modelo econômico da ditadura potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de renda. O Estado tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas transnacionais e aparato repressivo para sufocar os conflitos sociais e políticos daí decorrentes.
Heranças deste modelo sentidas até hoje são a generalizada corrupção, o arrocho salarial – que o Movimento Sindical procura enfrentar através da política de valorização do Salário Mínimo e das conquistas salariais nas negociações coletivas – e a intensa rotatividade de trabalhadores gerada pelo fim da lei de estabilidade no emprego, em 1966, e que atinge hoje níveis alarmantes em todos os setores econômicos, incluindo a indústria plástica e de cosméticos, dentro do segmento químico.
A ditadura legou uma indústria química estruturalmente dependente de capitais e de insumos estrangeiros. Apenas em 2013, o déficit comercial da indústria química para fins industriais, representada pela Abiquim, alcançou 32 bilhões de dólares. E, no mesmo ano, a indústria química, plástica e farmacêutica, remeteu ao exterior 3,6 bilhões de dólares a título de lucros, dividendos e pagamento de empréstimos às suas matrizes, localizadas, majoritariamente, nos Estados Unidos e na Europa.
Além disso, a política agrícola da ditadura, pela subordinação da economia nacional aos interesses do capital estrangeiro, impôs ao Brasil a “revolução verde” no campo, o que deu as bases para o agronegócio comandado pelos grandes produtores de commodities, como soja e milho, pelas transnacionais químicas fabricantes de agrotóxicos e pelas corporações que comercializam as exportações. A ditadura nos legou uma agricultura dependente de quantidades cada vez maiores de agrotóxicos-venenos que afetam a saúde do solo, dos trabalhadores rurais e dos consumidores.
De forma trágica, a ditadura legou centenas de trabalhadores e sindicalistas torturados, mortos e desaparecidos. 50 anos depois do golpe, permanecem impunes os assassinos de Olavo Hanssen e Virgílio Gomes da Silva, mártires da categoria química, símbolos que sintetizam a devastação provocada pela repressão no meio sindical brasileiro.
Olavo era trabalhador da Quimbrasil e sócio do Sindicato dos Químicos do ABC, quando foi capturado pela repressão em 1 de maio de 1970. Levado à OBAN, foi morto sob tortura, aos 30 anos de idade. Virgílio, nascido no sertão do Rio Grande do Norte, veio para São Paulo como retirante, cumprindo a sina de tantas trabalhadoras e trabalhadores químicos. Militante do Sindicato dos Químicos de São Paulo desde meados da década de 1950, atuando na região de São Miguel Paulista, zona leste da capital, organizou os trabalhadores e liderou greves, sobretudo na Companhia Nitro Química Brasileira. Foi preso por alguns dias em 1964, quando o Sindicato sofreu intervenção e, a partir de 1967, passou a integrar a ALN, liderada por Carlos Marighella. Participou de diversas ações armadas, culminando com o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, em setembro de 1969, do qual foi o comandante militar. Duas semanas depois, foi capturado pela repressão e levado à OBAN, tendo sido torturado e assassinado em 29 de setembro, aos 36 anos de idade. Mais um brasileiro, jovem, da classe trabalhadora, militante sindical, assassinado pela ditadura. Seu corpo jamais foi encontrado.
A Comissão Nacional da Verdade, instalada em março de 2012, já manifestou que pretende investigar os rastros do financiamento da ditadura por banqueiros e industriais, especialmente da OBAN. Se assim de fato o fizer, legará um serviço inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje enfrentam os mesmos grupos econômicos forjados e impulsionados pelo Estado repressor da ditadura.
Em nome da memória e da verdade, a indústria química deveria manifestar-se sobre este período, aproveitando o cinquentenário da ABIQUIM. Ou ser instada a fazê-lo pela Comissão, que entregará ao final deste ano relatório de seus trabalhos para a Presidenta Dilma Rousseff.
O silêncio e a omissão, hoje, perpetuam a impunidade e mantêm sobre todas as indústrias químicas a suspeita de cumplicidade com práticas já comprovadas que pesam sobre empresas específicas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Pobreza dos EUA: O povo do abismo atravessa o tempo

A exemplo da Inglaterra de cem anos atrás, quando era proibido dormir na rua, cidades dos EUA estão aprovando leis que proíbem sem-teto de dormir em carros

Douglas Portari
Wikimedia Commons

Há mais de um século – em 1903, mais precisamente –, o escritor norte-americano Jack London publicava O Povo do Abismo (lançado no Brasil pela Editora FPA). London havia atravessado o Atlântico para se embrenhar numa selva de miséria e indignidade, o coração das trevas da insuspeita capital do maior e mais rico império de então: o East End londrino.

No livro, o escritor narra as condições subumanas de milhares de ingleses, presos a uma situação que transbordava de geração para geração e lançava a charada: “A Civilização aumentou o poder de produção do homem (...) mas ainda assim milhões de integrantes do povo inglês não recebem comida suficiente, nem roupas, nem botas (...) se a Civilização aumentou o poder de produção do homem comum, então, por que não melhorou a condição do homem comum?”

A pergunta – e, ao que parece, a situação – atravessou o tempo e, novamente, o Atlântico. Um artigo publicado pelo professor de Direito da UCLA, Gary Blasi, no jornal inglês The Guardian (The 1% wants to ban sleeping in cars – because it hurts their 'quality of life' - Depriving the homeless of their last shelter is Silicon Valley at its worst – especially when rich cities aren't doing anything to end homelessness), nesta terça-feira, 15, fala sobre o descalabro de pobreza nas ruas do mítico Vale do Silício, no norte da Califórnia, o lar da pujante indústria do futuro, a informática, no estado mais rico do país mais poderoso do mundo.

Paliativo estético

A exemplo da Inglaterra de cem anos atrás, quando era proibido dormir nas ruas, o que impedia que mendigos e trabalhadores sem-teto se amontoassem pelos cantos, várias cidades norte-americanas estão aprovando leis que proíbem sem-teto de dormir em carros estacionados. O professor Blasi apresenta, não sem ironia, dados sobre o crescimento da desigualdade social e da miséria nos Estados Unidos e questiona como nada é feito para minorar seus efeitos, tanto pelo poder público quanto pelos ricos – o tal 1%, gente que é contra a desigualdade, até que ela surja em sua rua, onde, claro, vira caso de polícia.

O ‘paliativo estético’ dessa proibição lembra a nossa brasileiríssima ‘arquitetura da exclusão’, quando a própria administração pública, ou os bancos e seus lucros pornográficos, acha mais conveniente instalar grades, lanças e pedras nos nichos que podem servir de dormitório aos sem-teto e mendigos do que investir em abrigos e ações de ressocialização. Voltamos a Jack London: “Se isso é o melhor que a Civilização pode fazer pelos humanos, então nos deem a selvageria nua e crua. Bem melhor ser um povo das vastidões e do deserto, das tocas e cavernas, do que ser um povo da máquina e do Abismo.”

(*) Texto publicado no Blog da Fundação Perseu Abramo.
Fonte: Carta Maior