Em
sintonia com governos militares, floresceu, após 1964, indústria
química dependente e devastadora. Seus “capitães” ajudaram a financiar
tortura
Por Thomaz Ferreira Jensen
Há
50 anos o comando das Forças Armadas perpetrava golpe de Estado para
instaurar a ditadura no Brasil, que se prolongaria por 21 anos. Também
há meio século, em junho de 1964, era criada a Abiquim, Associação
Brasileira da Indústria Química.
É público e notório que as Forças Armadas agiram com o apoio e a serviço dos interesses da grande
burguesia – os donos das principais indústrias, dos bancos, da grande
mídia empresarial e das grandes propriedades rurais – e do imperialismo –
governo dos Estados Unidos e empresas daquele País com interesses no
mercado brasileiro.
A
Abiquim congregou, desde o início, as indústrias químicas nacionais e
estrangeiras, que aqui já estavam instaladas desde os anos 1920.
Permitiu, assim, articular os interesses destas corporações e
apresentá-los aos governos da ditadura para obter financiamento e
vantagens desde os primeiros meses do regime autoritário.
É
já fartamente comprovado o engajamento das principais indústrias
químicas, plásticas e farmacêuticas no apoio ao golpe de abril de 1964 e
à ditadura que se seguiu. O excelente documentário “Cidadão Boilesen”,
lançado em 2009 e dirigido pelo cineasta Chaim Litewski, mostra a
estruturação e o financiamento por empresários e banqueiros paulistas da
OBAN (Operação Bandeirantes), centro de investigações e torturas
montado pelo Exército brasileiro em 1969 para combater organizações de
esquerda que confrontavam o regime ditatorial e que geraria, pouco tempo
depois, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação do Centro
de Operações de Defesa Interna). A OBAN significou o poder repressivo
comandado e financiado diretamente pelos donos do capital, sem
mediações, e executado pelos agentes fardados do Estado, com
inteligência da CIA, a central de espionagem do governo dos Estados
Unidos.
O
caso de Henning Boilesen, retratado no documentário, é exemplar.
Dinamarquês naturalizado brasileiro, trabalhou durante 19 anos no grupo
químico Ultra, tendo sido presidente da Ultragaz. Aproximou-se de grupos
militares e paramilitares e, sádico, costumava acompanhar sessões de
tortura na OBAN.
Segundo
Elio Gaspari, em seu livro “A ditadura escancarada”, a primeira reunião
organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por
Delfim Netto, então ministro da Fazenda, e contou com a participação de
15 empresários e banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco
Mercantil de São Paulo, que era também presidente do clube Paulistano.
Lá, às quintas-feiras, costumava promover almoços com empresários e não
raro convidava Delfim Netto para apresentar análises de conjuntura
econômica. Ao final da palestra, eram recolhidas as colaborações para a
OBAN.
Pery
Igel, dono do Grupo Ultra e patrão de Boilesen, foi certamente um dos
mais destacados financiadores da OBAN, ao lado de Paulo Ayres Filho,
dono da Pinheiros Produtos Farmacêuticos e de executivos das montadoras
de automóveis estadunidenses Ford e General Motors. Boilesen é figura
paradigmática, triste representação de outras tantas dezenas de
empresários que apoiaram e financiaram a ditadura, e que até hoje
permanecem anônimos.
Boilesen
foi assassinado em 15 de abril de 1971, em São Paulo, numa ação
conjunta envolvendo militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do
MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes). Delfim Netto compareceu ao
enterro e levou consigo Roberto Campos, amigo de ambos.
Delfim
participou com destaque de todos os governos ditatoriais e foi
signatário do AI-5 – ato do governo militar decretado em dezembro de
1968 que fechou o Congresso Nacional e permitiu ao regime ditatorial
acirrar a repressão. Delfim foi o operador do modelo econômico da
ditadura, num contexto em que as corporações industriais dos Estados
Unidos buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina para barrar o
avanço da influência política dos países socialistas, liderados pela
União Soviética.
O
modelo econômico da ditadura potencializou os desequilíbrios
estruturais herdados do período precedente: dependência tecnológica e
financeira e concentração de renda. O Estado tornou-se órgão técnico
para gerir o modelo ditado pelas transnacionais e aparato repressivo
para sufocar os conflitos sociais e políticos daí decorrentes.
Heranças
deste modelo sentidas até hoje são a generalizada corrupção, o arrocho
salarial – que o Movimento Sindical procura enfrentar através da
política de valorização do Salário Mínimo e das conquistas salariais nas
negociações coletivas – e a intensa rotatividade de trabalhadores
gerada pelo fim da lei de estabilidade no emprego, em 1966, e que atinge
hoje níveis alarmantes em todos os setores econômicos, incluindo a
indústria plástica e de cosméticos, dentro do segmento químico.
A
ditadura legou uma indústria química estruturalmente dependente de
capitais e de insumos estrangeiros. Apenas em 2013, o déficit comercial
da indústria química para fins industriais, representada pela Abiquim,
alcançou 32 bilhões de dólares. E, no mesmo ano, a indústria química,
plástica e farmacêutica, remeteu ao exterior 3,6 bilhões de dólares a
título de lucros, dividendos e pagamento de empréstimos às suas
matrizes, localizadas, majoritariamente, nos Estados Unidos e na Europa.
Além
disso, a política agrícola da ditadura, pela subordinação da economia
nacional aos interesses do capital estrangeiro, impôs ao Brasil a
“revolução verde” no campo, o que deu as bases para o agronegócio
comandado pelos grandes produtores de commodities, como soja e
milho, pelas transnacionais químicas fabricantes de agrotóxicos e pelas
corporações que comercializam as exportações. A ditadura nos legou uma
agricultura dependente de quantidades cada vez maiores de
agrotóxicos-venenos que afetam a saúde do solo, dos trabalhadores rurais
e dos consumidores.
De
forma trágica, a ditadura legou centenas de trabalhadores e
sindicalistas torturados, mortos e desaparecidos. 50 anos depois do
golpe, permanecem impunes os assassinos de Olavo Hanssen e Virgílio
Gomes da Silva, mártires da categoria química, símbolos que sintetizam a
devastação provocada pela repressão no meio sindical brasileiro.
Olavo
era trabalhador da Quimbrasil e sócio do Sindicato dos Químicos do ABC,
quando foi capturado pela repressão em 1 de maio de 1970. Levado à
OBAN, foi morto sob tortura, aos 30 anos de idade. Virgílio, nascido no
sertão do Rio Grande do Norte, veio para São Paulo como retirante,
cumprindo a sina de tantas trabalhadoras e trabalhadores químicos.
Militante do Sindicato dos Químicos de São Paulo desde meados da década
de 1950, atuando na região de São Miguel Paulista, zona leste da
capital, organizou os trabalhadores e liderou greves, sobretudo na
Companhia Nitro Química Brasileira. Foi preso por alguns dias em 1964,
quando o Sindicato sofreu intervenção e, a partir de 1967, passou a
integrar a ALN, liderada por Carlos Marighella. Participou de diversas
ações armadas, culminando com o sequestro do embaixador dos Estados
Unidos, em setembro de 1969, do qual foi o comandante militar. Duas
semanas depois, foi capturado pela repressão e levado à OBAN, tendo sido
torturado e assassinado em 29 de setembro, aos 36 anos de idade. Mais
um brasileiro, jovem, da classe trabalhadora, militante sindical,
assassinado pela ditadura. Seu corpo jamais foi encontrado.
A
Comissão Nacional da Verdade, instalada em março de 2012, já manifestou
que pretende investigar os rastros do financiamento da ditadura por
banqueiros e industriais, especialmente da OBAN. Se assim de fato o
fizer, legará um serviço inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje
enfrentam os mesmos grupos econômicos forjados e impulsionados pelo
Estado repressor da ditadura.
Em
nome da memória e da verdade, a indústria química deveria manifestar-se
sobre este período, aproveitando o cinquentenário da ABIQUIM. Ou ser
instada a fazê-lo pela Comissão, que entregará ao final deste ano
relatório de seus trabalhos para a Presidenta Dilma Rousseff.
O
silêncio e a omissão, hoje, perpetuam a impunidade e mantêm sobre todas
as indústrias químicas a suspeita de cumplicidade com práticas já
comprovadas que pesam sobre empresas específicas.
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