IGOR FELIPPE SANTOS
A
transformação de personagens históricos em mitos costuma simplificar figuras
complexas e superestimar a importância de momentos particulares, deixando em
segundo plano as realizações de longo prazo. Foi o que aconteceu com Carlos
Marighella. O período da luta armada contra a ditadura militar, que construiu no
imaginário popular a figura de um homem com um fuzil na mão participando de atos
violentos, não passou de três anos. Marighella, que faria 100 anos em 5 de
dezembro de 2011, teve uma militância política de mais de 30 anos nas fileiras
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e só atuou na clandestinidade em períodos
de intensificação da repressão e perseguição aos comunistas, tanto sob ditaduras
como durante regimes mais democráticos.
A
imagem que caracteriza melhor a trajetória de Marighella é a de um disciplinado
operário do partido, apaixonado por samba, poesia e futebol, que participou de
todas as etapas da linha de montagem da luta política, desempenhando diversas
funções específicas e repetitivas para a implementação da revolução
socialista.
O mulato baiano, como era chamado por amigos fora do estado de origem, nasceu em Salvador. Os ideais socialistas e a vontade de transformar a sociedade herdou do pai, Augusto, um mecânico italiano, e da mãe, Maria Rita, uma negra filha de uma africana que chegou ao país em um navio negreiro. Precoce, aprendeu a ler com 4 anos e tomou gosto pelos livros já na adolescência. Mas não ficava preso em casa. Gostava de jogar bola e sonhava em ter uma chuteira. Também participava de serenatas em Itapuã com os amigos. No carnaval, saía fantasiado de mulher e cigana na Baixa dos Sapateiros. Escrevia poemas e fazia provas em versos no ginásio.
O mulato baiano, como era chamado por amigos fora do estado de origem, nasceu em Salvador. Os ideais socialistas e a vontade de transformar a sociedade herdou do pai, Augusto, um mecânico italiano, e da mãe, Maria Rita, uma negra filha de uma africana que chegou ao país em um navio negreiro. Precoce, aprendeu a ler com 4 anos e tomou gosto pelos livros já na adolescência. Mas não ficava preso em casa. Gostava de jogar bola e sonhava em ter uma chuteira. Também participava de serenatas em Itapuã com os amigos. No carnaval, saía fantasiado de mulher e cigana na Baixa dos Sapateiros. Escrevia poemas e fazia provas em versos no ginásio.
A
militância começou cedo, com pouco mais de 20 anos. Marighella entrou no PCB no
começo da década de 1930, depois de ingressar no curso de engenharia civil da
Escola Politécnica da Bahia, onde se envolveu com as agitações estudantis. Foi
preso pela primeira vez em 1932 por participar de um protesto em Salvador contra
o presidente Getúlio Vargas. O ato terminou com a prisão de mais de 500
estudantes por ordem do governador Juracy Magalhães, interventor de Vargas no
estado.
Solto
alguns meses depois, ele ganhou prestígio no partido e recebeu a tarefa de
organizar o PCB na Bahia. No começo de 1936, três dirigentes da secretaria
nacional do PCB visitaram Salvador para conhecer as atividades do partido no
estado. Meses depois, Marighella tinha um novo desafio: contribuir para a
organização dos comunistas no Rio de Janeiro, então capital do país.
Prisão
e torturas
Com
25 anos, Marighella foi para o Rio de Janeiro ajudar na rearticulação do PCB
depois do fracasso da chamada Intentona Comunista, levante militar organizado em
1935 pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) de Luís Carlos Prestes para tomar o
poder de Getúlio Vargas. O movimento foi derrotado, e vários dirigentes
comunistas foram presos, entre eles o próprio Prestes, o grande líder do
partido, e o secretário-geral, Antônio Maciel Bonfim, conhecido como Miranda.
Foi em meio a esse clima adverso que Marighella chegou ao Rio de Janeiro e logo
foi preso pela segunda vez, no dia 1o de maio de 1936. Ele ficou encarcerado por
um ano e dois meses e foi submetido a 23 dias de tortura.
Os
suplícios começavam com murros e chutes. Depois vinham as surras de cassetete e
chicote da cabeça à sola dos pés. Em seguida, seus algozes queimavam várias
partes de seu corpo com brasa de cigarro. Sob as unhas das mãos, enfiavam
alfinetes. Chegaram até a amarrar os testículos com uma corda e puxar.
Marighella saiu da prisão em 1937 e retomou as atividades no PCB, que foi posto
na clandestinidade por Getúlio Vargas após a proclamação do Estado Novo, em
novembro daquele ano. Sob a ditadura de Vargas, Marighella recebeu a tarefa de
se mudar para São Paulo e aparar as arestas dos dirigentes do estado com o
Comitê Central do partido.
Em
pouco tempo ele se tornou a principal referência entre os comunistas paulistas,
mas sua militância política foi novamente interrompida por uma prisão – a
terceira –, em 1939. Durante os seis anos seguintes Marighella passou pelos
presídios de Fernando de Noronha (PE) e da Ilha Grande (RJ), que durante o
Estado Novo se transformaram em "depósitos" de presos políticos. Ao ser
libertado escreveu um dos seus poemas que ficaram mais famosos, um soneto
chamado "Liberdade".
Parlamentar
Marighella
saiu da prisão em abril de 1945 e voltou para a Bahia. Com o fim do Estado Novo,
em outubro, foram convocadas eleições gerais e os presos políticos, anistiados.
Novamente legalizado, o PCB lançou candidatos por todo o país, Marighella se
elegeu deputado federal pela Bahia com uma grande votação. Aos 34 anos, ele
voltou para o Rio de Janeiro para assumir sua cadeira no Parlamento ao lado de
outros 14 deputados comunistas. No plenário da Constituinte, defendeu as lutas
dos trabalhadores, o direito de greve, o direito do divórcio, a liberdade de
expressão, a imprensa popular, a separação entre Estado e Igreja e a reforma
agrária. Só ficava com 20% dos vencimentos de parlamentar, o que considerava o
necessário para a sobrevivência. O resto passava para o partido.
Depois
de anos preso, teve um romance com Elza Sento Sé, uma baiana que mudara para o
Rio de Janeiro e trabalhava na empresa de energia Light. Desse namoro, nasceu
Carlos Augusto Marighella, em 1948. Mas a paixão da vida inteira dele foi Clara
Charf, com quem dividiu até a morte as alegrias e agonias da construção de uma
família e da instabilidade da atividade política comunista. Apesar da
legalização formal do PCB, a repressão aos comunistas continuou sob o governo do
presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), e o registro do partido foi
novamente cassado em 1947. Em seguida foram anulados os mandatos dos
parlamentares eleitos pela legenda.
Mais
uma vez na ilegalidade, o mulato baiano teria de atuar com discrição para
dirigir o partido em São Paulo, a nova tarefa que recebeu da organização. Desde
1943, quando ainda estava preso, passara a fazer parte do Comitê Central do PCB.
Para formar novos militantes, estimular greves e fazer lutas, ele passou a
investir no movimento sindical paulista. A mobilização parece ter dado
resultados, pois em 1953 eclodiu em São Paulo uma série de greves, como a dos
operários da indústria têxtil, dos gráficos, dos marceneiros e dos metalúrgicos,
todas vitoriosas.
Pouco
tempo depois, no entanto, o PCB entraria em uma nova crise. Em 1956, comunistas
de todo o mundo se chocaram com a divulgação do relatório em que o novo
dirigente da União Soviética, Nikita Kruschev, denunciou os crimes de Josef
Stalin.
A primeira reunião do Comitê Central do PCB após a divulgação do documento foi marcada por duros ataques entre os dirigentes do partido. Abalado com as revelações, Marighella foi à tribuna e chorou. Por dias e dias, as lágrimas correram. Apesar da decepção, ele continuou com suas atividades no partido e passou a fazer parte da principal instância de decisão da organização, o Secretariado do Comitê Central. Embora não tenham conquistado a legalização do partido, sob o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) os comunistas viveram um momento de maior tranquilidade, porque não eram reprimidos. Nesse período, Marighella pôde ficar mais tempo com a família.
A primeira reunião do Comitê Central do PCB após a divulgação do documento foi marcada por duros ataques entre os dirigentes do partido. Abalado com as revelações, Marighella foi à tribuna e chorou. Por dias e dias, as lágrimas correram. Apesar da decepção, ele continuou com suas atividades no partido e passou a fazer parte da principal instância de decisão da organização, o Secretariado do Comitê Central. Embora não tenham conquistado a legalização do partido, sob o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) os comunistas viveram um momento de maior tranquilidade, porque não eram reprimidos. Nesse período, Marighella pôde ficar mais tempo com a família.
A
virada
O
período de maior estabilidade terminou com a renúncia do presidente Jânio
Quadros em 1961, sete meses depois de assumir o poder. Diante do impasse, os
militares começaram a agir para impedir a posse do vice, o trabalhista João
Goulart, e a perseguir os comunistas. A polícia foi até o apartamento de
Marighella no Rio, mas ele e a mulher conseguiram escapar.
Foram
anos de intensa agitação política até 1964. O governo progressista de João
Goulart ensaiou reformas estruturais no país. Ao mesmo tempo, o PCB crescia com
a organização dos sindicatos e a realização de greves. O partido caminhava no
fio da navalha, dividido entre apoiar o governo, sobre o qual exercia
influência, ou intensificar a pressão para cobrar mudanças.
Marighella
defendia a segunda opção. Essa intensa luta política, no entanto, terminou com o
golpe militar de 1964. Mais uma vez os comunistas foram para a clandestinidade.
No próprio dia em que o golpe foi consumado, 1o de abril de 1964, Marighella e a
mulher escaparam por pouco da polícia. Em maio, o mulato baiano foi preso, mas
resistiu o quanto pôde, baleado no peito, e enfrentou os policiais armados
dentro de um cinema. Conseguiu um habeas corpus, mas logo depois foi decretado
um novo pedido de prisão. Na clandestinidade, escreveu o texto "Por que resisti
à prisão", que analisa a conjuntura política e a realidade brasileira e propõe a
luta armada como tática para o PCB.
A
partir daí, começou a fazer a luta política dentro do partido para convencer
dirigentes e militantes a optar pelas armas como uma forma de despertar a
insurreição popular, enquanto a linha de Prestes era de resistência pacífica.
Com o tempo, as tensões foram aumentando dentro da organização. Marighella pediu
desligamento da Comissão Executiva, mas continuou como secretário-geral em São
Paulo, esforçando-se para levar o partido para a luta armada. Em São Paulo, por
exemplo, 90% dos militantes do partido ficaram com Marighella na conferência
estadual de abril de 1967, mesmo com a presença de uma delegação liderada por
Prestes.
Em
Armas
O
Comitê Central reagiu e passou a intervir nos estados não alinhados à sua
posição. Depois de participar de uma conferência em Cuba sem consentimento do
comando do partido, em setembro de 1966 o mulato baiano foi expulso da
organização na qual militou por mais de 30 anos. Não havia mais amarras para pôr
em prática a linha política que defendera para o partido, e ele então fundou a
Ação Libertadora Nacional (ALN). A organização política tinha um braço armado
formado por células de militantes que fizeram assaltos a bancos, carros-fortes e
até a um trem-pagador, para levantar recursos para a luta, além de sequestros de
autoridades diplomáticas para trocá-las por presos políticos.
As
primeiras ações foram lideradas por Marighella, que em dezembro de 1968 escreveu
e divulgou o manifesto "Chamamento ao povo brasileiro", documento no qual
apresentava as propostas dos guerrilheiros para o Brasil. Enquanto isso, a
repressão aumentava. O primeiro sinal da intensificação da violência dos
militares foi o Ato Institucional no 5, que fechou o Congresso Nacional em
dezembro de 1968.
Depois,
houve um recrudescimento ainda maior, quando o embaixador dos Estados Unidos,
Charles Elbrick, foi sequestrado no Rio de Janeiro e trocado por presos
políticos em setembro de 1969. A ditadura já tinha identificado as "digitais" de
Marighella nas ações da luta armada, e os militares lançaram uma caçada
obsessiva àquele que consideravam o inimigo no 1 do regime.
A
perseguição acabou em 4 de novembro de 1969, quando o guerrilheiro marcou
encontro com dois frades dominicanos que colaboravam com a ALN. Ele não sabia,
porém, que ambos haviam sido presos e torturados e agiam sob as ordens da
polícia. Ao chegar ao local marcado, na alameda Casa Branca, em São Paulo, o
militante comunista foi assassinado com quatro tiros, em uma operação que
envolveu 29 policiais em seis carros.
Marighella
deixou órfãos uma mulher, um filho e uma série de herdeiros na luta contra a
ditadura, com seu exemplo de convicção ideológica, persistência na luta e
coragem para agir. Foi militante de base, dirigente partidário, preso político,
deputado federal, agitador das massas, guerrilheiro, assaltante de bancos... Em
mais de 30 anos de luta política, o líder que encarnava as aspirações de
liberdade e justiça, de acordo com as palavras do crítico literário Antonio
Candido, passou por todas essas funções e cumpriu todo tipo de tarefa, o que fez
dele um verdadeiro operário da luta pelo socialismo que deu a vida pelo povo
brasileiro.
O
que Marighella queria com a luta armada
Em
dezembro de 1968 o guerrilheiro divulgou o manifesto "Chamamento ao povo
brasileiro", no qual expunha as principais bandeiras defendidas por sua
organização, a Ação Libertadora Nacional:
●
Fim dos privilégios e da censura
● Eliminação da corrupção
● Liberdade de criação e liberdade religiosa
● Libertação dos presos políticos da ditadura
● Eliminação dos órgãos da repressão policial
● Expulsão dos americanos do país e confisco de suas propriedades
● Monopólio estatal das finanças, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços fundamentais
● Fim do latifúndio e garantia de títulos de propriedade aos agricultores
● Confisco das fortunas ilícitas dos grandes capitalistas
● Garantia de emprego a todos os trabalhadores e às mulheres
● Redução dos aluguéis, proteção aos inquilinos e garantia da casa própria
● Reforma do sistema de educação e expansão da pesquisa científica
● Tirar o Brasil da condição de satélite da política externa americana
● Eliminação da corrupção
● Liberdade de criação e liberdade religiosa
● Libertação dos presos políticos da ditadura
● Eliminação dos órgãos da repressão policial
● Expulsão dos americanos do país e confisco de suas propriedades
● Monopólio estatal das finanças, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços fundamentais
● Fim do latifúndio e garantia de títulos de propriedade aos agricultores
● Confisco das fortunas ilícitas dos grandes capitalistas
● Garantia de emprego a todos os trabalhadores e às mulheres
● Redução dos aluguéis, proteção aos inquilinos e garantia da casa própria
● Reforma do sistema de educação e expansão da pesquisa científica
● Tirar o Brasil da condição de satélite da política externa americana
Nenhum comentário:
Postar um comentário