Anselm Jappe filia-se à corrente do marxismo que se autodenomina crítica do valor, que não considera a denúncia da exploração como central da obra de Marx.
Anselm Jappe filia-se à corrente do marxismo que se
autodenomina “crítica do valor”. Os nomes mais conhecidos dessa vertente
são Robert Kurz, recentemente falecido, e Moishe Postone. Com seu
último livro, Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas, Jappe
se credencia como mais que um divulgador. Atualiza essa teoria,
destacando a pertinência de sua reflexão na análise da conjuntura e,
sobretudo, procurando demonstrar, em tom polêmico, as insuficiências das
contestações corriqueiras ao capitalismo.
A “crítica do valor” parte de uma interpretação de O capital que, na contramão da leitura impulsionada pela Segunda e Terceira Internacionais, não considera a denúncia da exploração e seus desdobramentos sob a forma de luta de classes como o ponto central da obra de Marx. Na trilha aberta por História e consciência de classe, de György Lukács, e por A teoria marxista do valor, de Isaak Illich Rubin, desdobrada posteriormente pela Escola de Frankfurt, considera que o eixo central da teoria marxista consiste na crítica ao “fetichismo da mercadoria” e às formas envolvidas nesse processo: valor, mercadoria, dinheiro, capital, trabalho etc.
A “crítica do valor” parte de uma interpretação de O capital que, na contramão da leitura impulsionada pela Segunda e Terceira Internacionais, não considera a denúncia da exploração e seus desdobramentos sob a forma de luta de classes como o ponto central da obra de Marx. Na trilha aberta por História e consciência de classe, de György Lukács, e por A teoria marxista do valor, de Isaak Illich Rubin, desdobrada posteriormente pela Escola de Frankfurt, considera que o eixo central da teoria marxista consiste na crítica ao “fetichismo da mercadoria” e às formas envolvidas nesse processo: valor, mercadoria, dinheiro, capital, trabalho etc.
Não
se trata, porém, apenas de uma correção teórica. A leitura desenvolvida
por essa vertente traduz uma análise histórica e uma opção política que
atribui os fracassos do reformismo social-democrata e dos Estados ditos
socialistas a uma compreensão equivocada do funcionamento do
capitalismo, em particular, do papel nele desempenhado pela
forma-mercadoria.
O diagnóstico do presente histórico, ancorado nessa linhagem, identifica, nas transformações recentes do capitalismo, sintomas de seu processo de decomposição. A circulação incessante da mercadoria dinheiro, pressuposto necessário da dinâmica do capital, funciona como uma espécie de “sujeito automático” que se depara cada vez mais com limites internos e externos.
Internamente, o capital presencia o paradoxo de ter que incrementar inovações no processo de trabalho que tendem a reduzir a taxa de lucro e a própria massa de mais-valia, fonte primordial da atual crise econômica e social. Externamente, a lógica da acumulação, a exigência de ampliação contínua da produção, esbarra nos limites da natureza, situação que tende a amplificar a crise ecológica.
A força da reconstituição, por Jappe, dessa dupla crise, deriva da precisão e da argúcia com que demonstra seus efeitos na configuração contemporânea da sociabilidade e da subjetividade. A expansão inaudita da mercantilização, atingindo setores até então infensos ao “fetichismo da mercadoria”, intensifica as formas de relação social moldadas pela troca monetária, com o predomínio da abstração e da quantificação. Seu resultado mais palpável consiste no incremento da barbárie, patente cada vez mais não só no funcionamento do mercado, mas nas próprias políticas de Estado.
Em linha geral, no entanto, nessa fase, o capitalismo tende a promover, no âmbito das subjetividades, o narcisismo. Trata-se de uma neurose (ou psicose), cuja matriz, Jappe atribui a uma infantilização massiva oriunda da ênfase no consumo, na sedução das mercadorias e de uma dessimbolização em larga escala produzida pela indústria do entretenimento. A regressão a um estágio no qual prevalece o princípio do prazer, a dificuldade em aceitar a realidade, a projeção do eu sobre os objetos exteriores, no mínimo, dificultam a experiência da alteridade, condição imprescindível para um desenvolvimento psíquico maduro.
As polêmicas de Jappe contra as correntes contemporâneas críticas do capitalismo perpassam os dez artigos reunidos no livro. Intervenções no debate francês, os textos não se eximem de confrontar as principais reações intelectuais e políticas à crise do capitalismo.
A discussão é travada em patamares distintos. Num primeiro bloco, rejeita-se “o cidadanismo do tipo ATTAC, a caça aos especuladores e as críticas cujo único alvo é a alta cúpula financeira; mas também as propostas de volta à ‘política’ e à luta de classes”. Jappe designa-as como “populistas”, pois não criticam as bases do capitalismo, limitando-se a “propor reformas, procurar bodes expiatórios, procurar formas de antagonismo que afundaram com o próprio capitalismo”.
Num segundo bloco, propõe um “diálogo crítico” com tendências que julga capazes de indicar caminhos para uma superação real da sociedade capitalista. Inclui, nessa série, os teóricos do “dom”, organizados no grupo francês MAUSS, as posições defendidas por Jean-Claude Michéa e a tese, surgida no interior do ambientalismo, do “decrescimento”. As objeções que Jappe levanta referem-se, grosso modo, a uma compreensão insuficiente, por parte dessas vertentes, da lógica do capital. Desconhecendo as determinações primordiais do processo de acumulação, esses adversários do capitalismo correm o risco de propor metas ou roteiros insuficientes para “sair do capitalismo”.
Os dois últimos artigos do livro esboçam uma atualização do conceito frankfurtiano de “indústria cultural”. Jappe insiste na pertinência de distinções “qualitativas” no campo da arte e da cultura, contra o relativismo generalizado e o igualitarismo da “esquerda cultural”. Segundo ele, o pós-modernismo apenas replica a dominação da forma-mercadoria, com sua indiferença em relação ao conteúdo.
Concluo com uma citação indicativa de sua disposição em não se curvar a consensos consagrados como senso comum:
“a esquerda quis abolir hierarquias que podiam até fazer algum sentido, com a condição que não fossem estabelecidas como definitivas, que fossem modificáveis: as da inteligência, do gosto, da sensibilidade, do talento. A existência de uma hierarquia de valores contribui para negar e contestar a hierarquia do poder e do dinheiro que reina absoluta numa época em que se nega toda e qualquer hierarquia cultural”.
Referências bibliográficas
JAPPE, Anselm. Crédito à morte. A decomposição do capitalismo e suas críticas. Tradução: Robson J. F. de Oliveira. São Paulo: Hedra, 2013.
MARX, Karl. O Capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Tradução: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RUBIN, Issak Illich. A teoria marxista do valor. Tradução: José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987.
***
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
Fonte: Carta Maior
O diagnóstico do presente histórico, ancorado nessa linhagem, identifica, nas transformações recentes do capitalismo, sintomas de seu processo de decomposição. A circulação incessante da mercadoria dinheiro, pressuposto necessário da dinâmica do capital, funciona como uma espécie de “sujeito automático” que se depara cada vez mais com limites internos e externos.
Internamente, o capital presencia o paradoxo de ter que incrementar inovações no processo de trabalho que tendem a reduzir a taxa de lucro e a própria massa de mais-valia, fonte primordial da atual crise econômica e social. Externamente, a lógica da acumulação, a exigência de ampliação contínua da produção, esbarra nos limites da natureza, situação que tende a amplificar a crise ecológica.
A força da reconstituição, por Jappe, dessa dupla crise, deriva da precisão e da argúcia com que demonstra seus efeitos na configuração contemporânea da sociabilidade e da subjetividade. A expansão inaudita da mercantilização, atingindo setores até então infensos ao “fetichismo da mercadoria”, intensifica as formas de relação social moldadas pela troca monetária, com o predomínio da abstração e da quantificação. Seu resultado mais palpável consiste no incremento da barbárie, patente cada vez mais não só no funcionamento do mercado, mas nas próprias políticas de Estado.
Em linha geral, no entanto, nessa fase, o capitalismo tende a promover, no âmbito das subjetividades, o narcisismo. Trata-se de uma neurose (ou psicose), cuja matriz, Jappe atribui a uma infantilização massiva oriunda da ênfase no consumo, na sedução das mercadorias e de uma dessimbolização em larga escala produzida pela indústria do entretenimento. A regressão a um estágio no qual prevalece o princípio do prazer, a dificuldade em aceitar a realidade, a projeção do eu sobre os objetos exteriores, no mínimo, dificultam a experiência da alteridade, condição imprescindível para um desenvolvimento psíquico maduro.
As polêmicas de Jappe contra as correntes contemporâneas críticas do capitalismo perpassam os dez artigos reunidos no livro. Intervenções no debate francês, os textos não se eximem de confrontar as principais reações intelectuais e políticas à crise do capitalismo.
A discussão é travada em patamares distintos. Num primeiro bloco, rejeita-se “o cidadanismo do tipo ATTAC, a caça aos especuladores e as críticas cujo único alvo é a alta cúpula financeira; mas também as propostas de volta à ‘política’ e à luta de classes”. Jappe designa-as como “populistas”, pois não criticam as bases do capitalismo, limitando-se a “propor reformas, procurar bodes expiatórios, procurar formas de antagonismo que afundaram com o próprio capitalismo”.
Num segundo bloco, propõe um “diálogo crítico” com tendências que julga capazes de indicar caminhos para uma superação real da sociedade capitalista. Inclui, nessa série, os teóricos do “dom”, organizados no grupo francês MAUSS, as posições defendidas por Jean-Claude Michéa e a tese, surgida no interior do ambientalismo, do “decrescimento”. As objeções que Jappe levanta referem-se, grosso modo, a uma compreensão insuficiente, por parte dessas vertentes, da lógica do capital. Desconhecendo as determinações primordiais do processo de acumulação, esses adversários do capitalismo correm o risco de propor metas ou roteiros insuficientes para “sair do capitalismo”.
Os dois últimos artigos do livro esboçam uma atualização do conceito frankfurtiano de “indústria cultural”. Jappe insiste na pertinência de distinções “qualitativas” no campo da arte e da cultura, contra o relativismo generalizado e o igualitarismo da “esquerda cultural”. Segundo ele, o pós-modernismo apenas replica a dominação da forma-mercadoria, com sua indiferença em relação ao conteúdo.
Concluo com uma citação indicativa de sua disposição em não se curvar a consensos consagrados como senso comum:
“a esquerda quis abolir hierarquias que podiam até fazer algum sentido, com a condição que não fossem estabelecidas como definitivas, que fossem modificáveis: as da inteligência, do gosto, da sensibilidade, do talento. A existência de uma hierarquia de valores contribui para negar e contestar a hierarquia do poder e do dinheiro que reina absoluta numa época em que se nega toda e qualquer hierarquia cultural”.
Referências bibliográficas
JAPPE, Anselm. Crédito à morte. A decomposição do capitalismo e suas críticas. Tradução: Robson J. F. de Oliveira. São Paulo: Hedra, 2013.
MARX, Karl. O Capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Tradução: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RUBIN, Issak Illich. A teoria marxista do valor. Tradução: José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
Fonte: Carta Maior
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