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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Serviços secretos dos EUA trabalham para derrubar o presidente do Equador

Publicado no Instituto João Goulart
Nil Nikandrov,Strategic Culturehttp://goo.gl/21On61


Rafael Correa é um dos presidentes latino-americanos que os círculos governamentais norte-americanos consideram incontroláveis e, portanto, especialmente perigosos. Para livrar-se desse tipo de político [eleito], Washington usa um vasto arsenal de meios, desde interferir no processo eleitoral até a eliminação física. Depois da estranha morte de Hugo Chavez, que liderava a resistência latino-americana contra o Império, é Correa que, cada dia mais, vem sendo visto como seu sucessor, o líder de “forças populistas” no continente.

No centro das atividades de política externa de Correa está o fortalecimento de organizações regionais latino-americanas nas quais não há representante dos EUA: a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), a União das Nações Sul-americanas (UNASUR), a Aliança Bolivariana para os Povos da América (ALBA) e outras. Correa sempre apoiou as iniciativas de Hugo Chavez que viabilizaram uma menor dependência da região em relação ao Império, o esvaziamento da Doutrina Monroe no Hemisfério Ocidental e a interação entre países latino-americanos com outros centros de poder. Nessa direção, o Equador está fixando um novo padrão e um exemplo, ao estabelecer relações amplas com China e Rússia nos campos político, econômico e militar. A presença dos EUA no país está diminuindo, e o governo Obama tenta romper essa tendência. O presidente Correa foi declarado principal responsável pela deterioração das relações EUA-Equador.

Foi Correa quem iniciou a campanha internacional contra a empresa Chevron. A Corte de Arbitragem em Haia dispensou a empresa de ter de pagar multas de vários bilhões de dólares por poluir a bacia do Rio Amazonas em território do Equador. Correa não aceitou a decisão, que o Equador considerou humilhante e injustificada. Visitou pessoalmente a zona do desastre e mostrou a jornalistas e câmeras de televisão as mãos cobertas de óleo cru deixado a vazar num antigo ponto de extração, e disse: “Esse é o resultado de a empresa usar aqui tecnologias ultrapassadas.”

Correa conclamou os consumidores a não comprar produtos da Chevron. Um tribunal equatoriano acolheu processo iniciado por índios que habitam a área do desastre ecológico, que exigiu que a empresa pagasse multa de 19 bilhões de dólares em danos ao meio ambiente e contra a saúde da população. Fazendo bom uso da grande experiência que acumulou nesses processos, Chevron conseguiu obter uma sentença favorável da Corte Internacional de Arbitragem em Haia.

Mas Correa não desistiu. Obteve o apoio da UNASUR e da ALBA e conclamou a comunidade internacional a manifestar solidariedade ao Equador. Já não há propriedades da empresa Chevron no Equador, mas a multa exigida pelos equatorianos poderá ser paga com propriedades da empresa na Argentina, Brasil ou Canadá – o que implica graves consequências financeiras para a empresa.

O governo Obama decidiu defender os interesses da Chevron a qualquer custo. Esse é um dos fatores pelos quais está direcionando os serviços secretos dos EUA para que deem solução radical ao “problema Correa”.

O presidente do Equador também trabalha contra o avanço da Aliança do Pacífico, um dos projetos geopolíticos dos neoliberais de Washington e que inclui México, Colômbia, Peru e Chile. A Aliança foi criada para neutralizar o bloco da ALBA, e a presença do Equador na ALBA não contribui para os objetivos estratégicos dos EUA naquela região do Pacífico.

A espionagem dos serviços secretos dos EUA contra o presidente do Equador é cada dia mais visível. Conversas telefônicas e comunicações em geral interceptadas no círculo mais próximo do presidente, de seus agentes de segurança e de sua escolta pessoal ajudam os norte-americanos a saber de todos os movimentos do presidente, eventos aos quais comparece, listas de participantes e sistemas de segurança. O monitoramento ininterrupto oferece farto material para identificar pontos de vulnerabilidade na organização da segurança. Recentemente, na sua já tradicional fala dos sábados, por televisão, o presidente Correa falou aos equatorianos sobre a suspeita concentração de pessoal militar na embaixada dos EUA em Quito.

“Todas as embaixadas têm adidos militares” – disse Correa. – “A maioria, tem um. Mas aqui no Equador eles têm mais de 50!”

Disse também que instruiu o ministro de Relações Exteriores Ricardo Patino, que“Verifique essa informação! Esse número gigante de militares norte-americanos aqui não é possível! Terão de reduzi-lo ao nível normal.”

O presidente também exigiu que seja investigado um incidente na fronteira Equador-Colômbia, de queda de um helicóptero equatoriano, com vários militares dos EUA a bordo. A preocupação de Correa é compreensível; a base dos EUA em Manta foi fechada em 2009, mas assessores militares do Pentágono e agentes dos serviços secretos dos EUA continuam a manter operações em território equatoriano sem qualquer limitação.

A intensificação da espionagem e de atividades de subversão por agentes norte-americanos no Equador é óbvia. Segundo informação obtida de especialistas cubanos, divulgadas pelo site Contrainjerencia.com, só o número de agentes da CIA já dobrou, entre 2012-2013, na ‘base’ equatoriana. Dúzias de novos agentes chegaram ao país. Operam não só a partir da embaixada dos EUA em Quito, onde há, no mínimo, uma centena de diplomatas (!), mas também usam o consulado em Guayaquil. Para criar acomodações para o número crescente de agentes norte-americanos de espionagem (“pessoal de inteligência”) nessa importante cidade portuária, estrategicamente crucial, o Departamento de Estado teve de construir um novo prédio para o consulado, o qual, segundo agência de inteligência que colabora com o Equador, abriga o equipamento eletrônico da Agência de Segurança Nacional dos EUA. O cônsul dos EUA em Guayaquil é David Lindwall, chegado ao país depois de ter sérvio no Iraque como Conselheiro de Assuntos Político-Militares. Lindwall também serviu como Adido Político nas embaixadas em Bogotá, Manágua, Tegucigalpa, Assunção e outras capitais latino-americanas.

O nome de Lindwall aparece com alta ocorrência nos telegramas diplomáticos distribuídos por WikiLeaks. Qualquer rápida pesquisa nos telegramas assinados por ele obriga a concluir que Lindwall é experiente funcionário de carreira da CIA, muito informado sobre a América Latina, enviado ao Equador para resolver problemas muito sensíveis.

O presidente Correa várias vezes falou dos EUA como “potência arrogante” que tenta impor ao mundo o que entende que sejam “valores democráticos universais” e vive a dar aos outros “lições de moral e boas maneiras”. O presidente frequentemente repete que os EUA têm um dos sistemas eleitorais mais imperfeitos do mundo, que permite a eleição de candidatos derrotados nas urnas. Correa considera “insultantes” as tentativas da Agência de Desenvolvimento Internacional (USAID), para impor padrões da democracia norte-americana ao Equador e outros países, como se fossem colônias dos EUA. Recentemente, ao comentar o fim do financiamento que a USAID dava a projetos no Equador, no valor de 32 milhões de dólares, Correa sugeriu, não sem sarcasmo, que Washington aplicasse a mesma quantia para aprimorar a democracia norte-americana.

O escritório da USAID está deixando o Equador, mas as operações de espionagem dos EUA para desestabilizar o país continuam. Ao que tudo indica, novos ataques nessa área podem estar em conexão com planos de Correa para reduzir o tamanho das forças armadas e transferir parte do pessoal militar para as agências policiais. “Exércitos de dissidentes” anônimos já divulgaram declaração hostil a Correa e suas “tentativas para tomar o lugar de Chávez no continente”. Até o palavreado indica quais são as forças por trás da campanha que está sendo lançada contra Correa.

Durante levante policial em setembro de 2010, o presidente do Equador foi apanhado no fogo cruzado de atiradores postados em prédios; daquela vez, escapou ileso. É perfeitamente possível que a inteligência dos EUA esteja planejando coisa semelhante para futuro próximo. Afinal, depois dos ataques contra New York em 2001, as agências norte-americanas de espionagem receberam carta branca para eliminar todos os declarados inimigos dos EUA. Ninguém cancelou essa ordem.

As muitas faces da ira saudita

Publicado no Instituto João Goulart
MK Bhadrakumar, Strategic Culture
http://www.strategic-culture.org/news/2013/12/24/the-saudi-anger-has-many-faces-i.html ss.

Na última quinzena, a Arábia Saudita elevou muito o tom de sua retórica para manifestar fúria contra as políticas regionais dos EUA no Oriente Médio, especialmente para Síria e Irã. Semana passada, o tom chegou a picos altíssimos, com duas figuras chaves do regime saudita alternadamente satirizando e ameaçando o governo Obama.

O desafio estratégico pelo regime saudita contra os EUA é sustentável, ou logo se verá que não passa de bravado ou, até, de estratégia de defesa para encobrir os mais obscuros medos? Há inúmeras razões para supor-se que seja a expressão de uma ira de muitas faces. Há indicação de que os EUA enviaram luz de alerta à Casa de Saud, de que a discrição é a melhor face da coragem, e que os sauditas não estão em posição que lhes permita ameaçar a Casa Branca. É claro que os sauditas entenderam, mas teremos de esperar e observar, para saber como assimilarão a ‘dica’.

A retórica dos sauditas contra o governo Obama ao longo da última quinzena foi realmente espantosa, sem precedentes, pelo tom de desafio e forte agitar dos sabres.

Tal discurso seria impossível durante a presidência de George W. Bush (porque a família Bush mantém laços muito próximos com a Casa de Saud há três gerações), mas, além disso, esse tipo de retórica jamais foi estilo saudita. Riad sempre preferiu operar no subsolo, longe dos olhares de aves de rapina, em tudo que tivesse a ver com as suas absolutamente importantes relações com Washington.

Analisado o quadro pelo que se vê por fora, as duas coisas que enfureceram o regime saudita foram o visível empenho do presidente Obama de fazer avançar o engajamento dos EUA com o Irã; e, em segundo lugar, o absolutamente claro movimento de Washington, que se desengaja do projeto de ‘mudança de regime’ na Síria. Obama já fala abertamente sobre um acordo definitivo EUA-Irã sobre a questão nuclear, e vozes de peso, além de funcionários, cada vez mais se fazem ouvir, inclusive em reunião recente dos ‘Amigos da Síria’ em Londres, no sentido de que pode interessar à estabilidade síria e à luta contra a al-Qaeda– bem como à segurança regional em geral – que o presidente Bashar Al-Assad mantenha-se na liderança e concorra às eleições presidenciais marcadas para o próximo ano.

Certo é, em todos os casos, que longe vão os dias em que Washington falava de“todas as opções estão sobre a mesa”, ou de “Bashar tem de sair”. Claro que Riad já viu tudo isso, tanto quanto já viu também que pouco conseguiu com a robusta campanha do lobby saudita em Washington, inclusive com a ameaça implícita de que a Arábia Saudita se aproximaria de outras grandes superpotências, como contrapeso aos EUA – lobby e ameaça que não impressionaram o governo Obama. Dito de outro modo, os sauditas vivem hoje experiência absolutamente nova, a saber: que já não têm poder de veto contra políticas dos EUA para o Oriente Médio, as quais, doravante, serão construídas e implantadas como parte das estratégias globais de Washington. Para regime que investiu fé total no poder do dinheiro para ditar e comandar planos e navegar livremente pelos corredores do poder em Washington, é mudança de paradigma – que Riad não está digerindo bem.

Turki Al Faisal

Já era evidente, do ataque muito forte contra o governo Obama, vindo de um importante príncipe saudita, Turki-al-Faisal (irmão do ministro de Relações Exteriores Saud al-Faisal, ele próprio ex-chefe da inteligência saudita e embaixador em Washington) em recente conferência de segurança em Mônaco, da qual participavam políticos importantes, árabes e europeus, além de líderes do empresariado, e, também em entrevista que deu ao Wall Street Journal, à parte, mas durante a realização da conferência.

Turki virtualmente acusou o governo Obama de perfídia, por ter trabalhado pelas costas de Riad para fazer avançar a reaproximação com Teerã; disse que Washington é culpada por “negligência criminosa”, quando a violência na Síria já custou 130 mil vidas. “O que surpreende é que as conversas que estavam em andamento [entre Washington e Teerã] foram mantidas escondidas de nós [Riad]. Como é possível falar em confiança, se você mantém segredos, até para os supostos aliados mais próximos?”[1]– disse Turki.

Obviamente, os sauditas ficaram lívidos ao saber que o governo Obama não só não notificou Riad sobre as conversas secretas com o Irã até o outono (“quando as coisas ficaram substantivas”), mas, para piorar, esfregou sal na vaidade ferida dos sauditas ao iniciar aqueles contatos no final de março em Omã, bem no nariz dos sauditas. Na verdade, o acordo provisório sobre a questão nuclear que foi discutido em Genebra mês passado, passou a perna nos sauditas, e Turki manifestou preocupação porque o acordo nada faz para garantir que Teerã não venha a desenvolver armas atômicas. Por trás de tudo isso, é claro, está a angústia existencial de que a détente EUA-Irã venha a erodir ainda mais o status da Arábia Saudita como aliado destacado de Washington no Oriente Médio.


Assim também, as marcadas diferenças quanto à Síria isolaram a Arábia Saudita, internacionalmente e na região. Dois dias depois da fala de Turki, o ataque contra o governo Obama prosseguiu, dessa vez pelo embaixador saudita no Reino Unido e membro da Casa de Saud, Mohammed bin Nawaf Abdulaziz al Saud, o qual, em coluna no New York Times publicada na 3ª-feira passada praticamente ameaçou que as políticas dos EUA tanto no Irã quanto na Síria são “jogo perigoso”, e que a Arábia Saudita “não pode permanecer calada, nem ficará de lado, inerte”. Alegou que “as políticas dos EUA ameaçam a estabilidade do Oriente Médio e a Segurança do mundo árabe [...] O Reino da Arábia Saudita não tem outra escolha além de tornar-se mais assertivo nas questões internacionais: mais determinado que nunca em defender a genuína estabilidade de que nossa região carece tão desesperadamente. [...] Temos de agir para responder a essas responsabilidades, com ou sem o apoio de nossos parceiros ocidentais.”[2]

Mais importante, o artigo diz claramente que os sauditas manterão – e aumentarão – o apoio que dão à Frente Islamista extremista na Síria. “A Arábia Saudita continuará nessa sua nova trilha, por quanto tempo prove-se necessário” – escreveu Mohammed bin Nawaf.2

Mas a grande questão é até que ponto o regime saudita avançará nessa sua perigosa “nova trilha” de desafio estratégico aberto aos EUA?

Para responder essa pergunta, temos de viajar para bem além de questões síria e iraniana; até, de volta, a setembro de 2001.

Inexplicavelmente, o governo Obama permitiu há algum tempo, pela primeira vez, que dois congressistas – Walter B. Jones (Republicano) e Stephen Lynch (Democrata) – tivessem acesso às 28 páginas do relatório da Comissão de Investigação de Inteligência Conjunta [orig. Joint Intelligence Committee Inquiry (JICI)] sobre o ataque do 11/9, que as famílias das vítimas, sobreviventes mutilados e o público em geral esperam ardentemente que tragam algumas respostas sobre conexões sauditas, naquele ataque. Afinal de contas, 15 dos 19 sequestradores envolvidos no ataque do 11/9 eram cidadãos sauditas e sempre houve notícias esporádicas de que tivessem ligações com a Casa de Saud e, até, que teriam recebido apoio financeiro do governo saudita, além do que receberam de vários estranhos misteriosos milionários sauditas que, naquele momento, moravam em San Diego.

Eis o que Jones escreveu, redação dele, depois de ler as 28 páginas top-top secret do relatório da JICI: “Fiquei absolutamente chocado com o que li. O que me surpreendeu é que aqueles homens nos quais pensávamos que pudéssemos confiar me desapontaram. Não posso dizer mais que isso. Tive de assinar um termo de compromisso/juramento, de que tudo q li tem de continuar confidencial. Mas a informação que li ali me desapontou enormemente.”[3]

Para resumir a missa, no início de dezembro os dois congressistas, Jones e Lynch apresentaram projeto de resolução que exige que o presidente Obama levante o sigilo que impede a publicação daquelas 28 páginas (que Bush tornou absolutamente sigilosas, sob a explicação de que a divulgação daquelas páginas“viola a segurança nacional”).

Parece que já começou um jogo de gato-e-rato que envolve a Casa Branca, o Capitólio e a opinião pública doméstica – além do judiciário norte-americano –e a Casa de Saud.

Há muito tempo especula-se que aquele relatório de 28 páginas do Joint Intelligence Committee Inquiry [JICI]de 2002 demonstra que o governo saudita teve, pelo menos, papel indireto no apoio aos terroristas responsáveis pelo ataque de 11/9.

De fato, o ex-senador Bob Graham, que presidiu a Comissão JICI já disse à imprensa, sem pedir sigilo, que está convencido de que “o governo saudita, sem dúvida alguma, apoiava os sequestradores que viviam em San Diego”. Ora, tudo persiste até hoje como simples objeto de curiosidade, ou material puramente especulativo, para diz-que-dizem de deputados, senadores ou mídia – e até, talvez, do judiciário...

Por estranha coincidência, semana passada a Corte de Apelação dos EUA manteve o direito das vítimas dos ataques do 11/9 a dar prosseguimento ao processo que iniciaram em 2003 para julgar o Reino da Arábia Saudita, acusado de ter assegurado apoio considerável à al-Qaeda, pouco antes do ataque terrorista. Na essência, a Corte confirmou que é necessário incluir a Arábia Saudita no conjunto de acusados (réus) naquele processo.

De fato, advogados que trabalham nos processos do 11/9 várias vezes já citaram o relatório JICI, como base para as alegações de que a Arábia Saudita foi principal fonte de financiamento para a al-Qaeda, mas os que defendem os sauditas sempre respondem que o relatório JICI disponível para a defesa não mostra qualquer evidência de que nem sauditas governantes nem funcionários do governo saudita ou cidadão saudita jamais financiaram a al-Qaeda.

Nesse ponto, precisamente, é onde ganha importância a liberação para o público de todo o relatório JICI, completo. É questão de timing estratégico para o Congresso (e para o governo dos EUA), ou será simples coincidência, que a Casa Branca tenha liberado aquelas 28 páginas do relatório JICI, para leitura de dois congressistas, sob estritas condições de confidencialidade, justamente nesse momento em que a Corte de Apelação se aprontava para manifestar-se sobre o possível envolvimento (criminal) do governo saudita nos ataques do 11/9?

Pela via oposta, o que acontece se, à luz desses desenvolvimentos, as partes que querem processar o governo saudita insistem em exibir, como prova, o relatório completo da JICI? Por aí se entra diretamente centro de um labirinto escuro.

Mas em última análise, a bola, como dizem os norte-americanos, está na quadra de Obama. Depende exclusivamente do governo Obama não vetar a resolução do Congresso para que o estado levante a proibição que impede a divulgação do relatório JICI, se for aprovada na Câmara de Deputados e no Senado.

Aqui é onde a porca torce o rabo. É fato bem conhecido que, diferente de seus predecessores no Salão Oval – George Herbert Walker Bush, William Jefferson Clinton e George Walker Bush – Barack Hussein Obama não é presidente que se envolva diretamente e pessoalmente e profundamente nas relações com a Arábia Saudita. Obama é presidente que, como o New York Times escreveu há alguns meses no contexto da Síria, “raramente manifestou opiniões de peso nas reuniões do gabinete, e [cuja linguagem corporal] sempre era bem clara: Obama sempre parecia impaciente ou desinteressado enquanto ouvia os debates, às vezes passando os olhos pelas mensagens que chegavam ao seu Blackberry, ou de olhos distantes, mastigando chiclete”.[4]

É verdade: pode não passar de crítica impiedosamente enviesada, de colunista doTimes dedicado a fazer a sua própria opinião pessoal soar como se fosse opinião pública, porque é claro que Obama compreende a gravidade da crise; mas nesse caso ele também conhece bem os limites da capacidade dos EUA para influenciar os pontos mais quentes do Oriente Médio emergente. Como escreveu recentemente Robert Hunter, ex-embaixador dos EUA na OTAN e diretor de Assuntos do Oriente Médio no Conselho de Segurança Nacional dos EUA no governo de Jimmy Carter, os EUA têm alguns interesses específicos a buscar na atual situação no Oriente Médio e, portanto, “a estratégia dos EUA sobre parceiros e aliados no Golfo Persa precisa ir além da fixação de instrumentos miliares e focar-se em redesenvolver o engajamento e os compromissos dos EUA em termos não militares.”

Enquanto isso, de volta ao relatório JICI, aumenta a pressão pública das “Famílias do 11/9 Unidas por Justiça contra o Terrorismo”, grupo ativista que reúne as vítimas do ataque, e nem a Casa Branca nem os Congressistas podem ser indiferentes a uma questão tão fortemente emocional como essa, que deixou marca indelével na psique nacional norte-americana. Os veículos da imprensa-empresa mostram o quanto as famílias das vítimas dos ataques do 11/9 apreciaram o veredito da Corte de Apelação. O pai de um jovem de 25 anos morto na Torre Norte do WTC disse à rede ABC News: “Esse ano, o Natal chegou antes, para as famílias do 11/9. Vamos festejar nosso Natal no Tribunal.”

Na verdade, o processo, se efetivamente prosseguir e for bem-sucedido, pode resultar em o governo e membros da família real saudita que contribuíam para organizações que financiavam a al-Qaeda terem de pagar indenizações de dezenas, talvez centenas de bilhões de dólares. Depois que o paquiderme legal se puser em movimento, ninguém sabe até onde chegará.

O que torna toda a questão altamente explosiva é que o embaixador dos EUA na época dos ataques do 11/9 era ninguém menos que Bandar bin Sultan, atualmente o espião-chefe de Riad.


Além do mais, diz-se que Bandar atuou direta e pessoalmente sobre Bush Jr., que lhe deu permissão especial, diretamente da Casa Branca, para a decolagem de um voo fretado (num momento em que o tráfego aéreo estava fechado sobre todo o território dos EUA), que partiu do Kentucky, com 144 pessoas a bordo, inclusive vários membros da família bin Laden, para que não fossem revistados, entrevistados, contatados nem de modo algum perturbados por efeito dos ataques de 11/9. Depois do voo, funcionários do FBI foram citados, dizendo que o pessoal que fugira dos EUA por intervenção de Bandar (com ativa colaboração pessoal de Bush) era “gente que interessa”.

De fato, a parte mais curiosa é que Bandar também é hoje o personagem chave que conduz avante o projeto saudita para derrubar o governo legítimo do presidente Bashar Al-Assad na Síria. Dito de outro modo: Bandar, que pode vir a ser intimado a depor num tribunal criminal norte-americano que julga o processo das famílias das vítimas do 11/9, é exatamente o mesmo Bandar que, no campo operacional, ameaça torpedear o mais bem construído plano de todo o governo Obama para chegar a um acordo político para a questão síria, na Conferência Genebra-2.

Interessante também, como digressão, que o Saban Center for Middle East Policy do Brookings Institute (o mesmo, cujo Forum Obama escolheu recentemente para dar as primeiras notícias importantes sobre o novo engajamento dos EUA com o Irã) acaba de lançar estudo exaustivo, assinado por Elizabeth Dickson, especialista em Oriente Médio, sob o título “BRINCANDO COM FOGO: Por que o financiamento privado do Golfo para extremistas na Síria pode incendiar o conflito sectário também em casa” [orig. PLAYING WITH FIRE: Why Private Gulf Financing for Syria’s Extremist Rebels Risks Igniting Sectarian Conflict at Home][5].

O trabalho de análise foca em como o Kuwait “emergiu como organização guarda-chuva financeiro e organizacional para ‘organizações de caridade’ e indivíduos que apoiam vasta variedade de grupos rebeldes na Síria”; e diz que“doadores do Golfo contribuíram para o alinhamento ideológico e estratégico que há hoje entre os grupos rebeldes [na Síria], com os extremistas no comando militar das ações.”

O que se vê – e esse talvez seja o aspecto que Bandar deve observar com máxima atenção e seriedade – é que Washington está monitorando de perto o apoio a grupos jihadistas extremistas que operam na Síria, apoio que lhes é assegurado pelos petro-estados do Golfo Árabe e suas chamadas ‘organizações de caridade’. O documento diz claramente: “O Tesouro dos EUA tem conhecimento dessa atividade e manifestou preocupação sobre esse fluxo de financiamento privado.”

Nesse ponto, pode-se acrescentar a esse caldeirão fervente mais um ingrediente: a luta interna pelo poder dentro do regime saudita, com Bandar convertido em alvo de críticas (raríssimas), na própria imprensa-empresa saudita.

O bem conectado escritor e jornalista saudita Jamal Kashoggi escreveu recentemente no jornal Al Hayat do establishment saudita, crítica velada, mas perfeitamente inteligível, contra Bandar: “Seria erro desafiar o poder da história, com a ilusão de que os poderosos poderiam forjar acordos e planejar o futuro distanciados dos povos que, divididos e sem qualquer contato ou experiência com a democracia, acabam abusados por forças locais, regionais e internacionais. Mesmo assim, esses povos continuam em estado de liquidez e fúria. Sabem o que querem, mas estão confusos sobre como chegar lá. O que é certo é que não esperarão que um cavaleiro surja, montado num cavalo branco, para guiá-los a uma nova luminosa aurora. O tempo do só-eu-posso-tudo acabou”.

Kashoggi não escreveria isso, se não tivesse firme convicção de que o que escreveu tinha de ser escrito.

A fuzilaria de Jamal Kashoggi contra o príncipe Bandar bin Sultan é o máximo a que pode chegar a crítica na imprensa-empresa saudita contra membro poderoso da Casa de Saud, mas, de fato, as tensões entre os príncipes rivais já respingam para os jornais; e as políticas que Bandar, atual chefe da inteligência saudita, já começam a ser atacadas.

Além do mais, a Síria não é o único front no qual Bandar está ou esteve envolvido. Bandar também pilotou, em nome dos sauditas, o golpe militar no Egito. De fato, em todos os teatros onde se veem as pegadas de Bandar – Egito, Iêmen, Líbano, Síria – as coisas vão mal para a Arábia Saudita e são teatros interconectados.

O Egito parece ser o albatroz no pescoço dos sauditas.[6]A expectativa saudita era que o país fosse rapidamente pacificado, mas a agitação só fermenta, sem fim à vista. O desenvolvimento mais recente é que a Fraternidade Muçulmana, de longe o grupo mais bem organizado e a plataforma política mais popular no Egito, foi declarado “organização terrorista”.Democracia e estabilidade “inclusivas” e a recuperação econômica do Egito são hoje quimera, algo que a atual geração não conhecerá. Pois mesmo assim a Arábia Saudita mantém e financia aquele estado paralisado e falido. Até quando poderá continuar?

Os Emirados Árabes Unidos já informaram ao Cairo que o apoio árabe para a junta não durará muito. Já se comparou a mais recente dose de ajuda enviada dos Emirados ao Egito ($3,9 bilhões) a transfusão de sangue a doente que sangra rapidamente, incessantemente e incontrolavelmente. De fato, o confronto entre a deposta Fraternidade Muçulmana no Egito teve impacto real nos alinhamentos regionais. Levou a Turquia para os braços do Irã. Teerã já começou a falar das relações iraniano-turcas como “de raízes profundas e fraternas”. Isso tudo considerado, o front egípcio está dando terrivelmente errado para Bandar. Bem claramente, as coisas chegaram a um ponto no qual as tensões em torno de tanto aventureirismo vão-se convertendo em disputas por poder dentro da própria Casa de Saud.

Em suma, a retórica estridente que cerca hoje as políticas externas sauditas, que sempre, tradicionalmente, foram discretas e cautelosas e conduzidas sem oposição, tem muitas faces. Tem de ser vista como a irrupção de várias tensões que se sobrepõem na matriz complexa que cerca a Casa de Saud, onde grupos rivais disputam as atenções do velho rei e as rivalidades já contaminam o rumo que o grupo de Bandar está dando às políticas externas sauditas. Elaborando sobre esse tópico recentemente, David Hearst, do Guardian, resumiu bem: “Intrigas de corte podem explicar por que a política externa saudita, que sempre foi discreta e cautelosa e conduzida quase sempre na coxias, está hoje tão exposta. Pode ser efeito de uma obsessão antiga, que sempre abala as monarquias absolutas: a luta pela sucessão.”

Mesmo assim, a grande pergunta permanece sem resposta: até que ponto a Arábia Saudita empurrará o envelope e desafiará as estratégias dos EUA na Síria e no Irã? Chegará ao ponto de realmente comprometê-las? A intervenção saudita no Bahrain mostra que, onde seus principais interesses estejam envolvidos, Riad é capaz de agir com força extrema. Não há dúvidas de que Riad temia muitíssimo que o levante xiita no Bahrain viesse a ter ressonâncias nas províncias leste da Arábia Saudita, dominadas pelos xiitas, e um empoderamento de xiitas dessa magnitude teria efeitos em vários teatros da política regional. Não surpreendentemente, os sauditas patrocinaram a violenta repressão dos xiitas no Bahrain. Não havia crítica ocidental, por mais ampla ou forte que fosse, capaz de levar os sauditas a repensar sua política para o Bahrain.

Por tudo isso, devem-se acrescentar muitos pontos de interrogação no pedido-monstro que os sauditas encaminharam, para compra de 15 mil unidades de mísseis antitanques –, a serem comprados da empresa Raytheon, ao preço de mais de $1 bilhão. Não é concebível que a Arábia Saudita esteja sob risco de invasão por tanques, e, seja como for, o país já tem estoques gigantes, de mais de 4 mil mísseis antitanques. Como seria de esperar, os especialistas perguntam-se: mas... e de onde virá a ameaça?


Não há nem a mais remota chance de a Arábia Saudita envolver-se em guerra de solo, de contato, com o Irã. Qualquer contato entre os dois adversários, se houver, será naval ou aéreo. Sofisticados mísseis antitanques não têm utilidade nas operações sauditas no Bahrain ou no Iêmen. E a Arábia Saudita tampouco se vê ameaçada pelo Iraque.

A única explicação plausível a que chegaram os especialistas é que essa recente compra saudita pode estar conectada à guerra de Bandar na Síria. É possível que os sauditas tenham mandado para longe suas armas antitanques, servindo-se de outras fontes (não de fontes norte-americanas, porque os EUA monitoram de perto todos os deslocamentos de armas enviados a terceiros) e estejam substituindo as peças de seu próprio arsenal, com material recém-chegado dos EUA. Como disse o ex-embaixador os EUA na Arábia Saudita, Charles Freeman: “Eu diria, especulativamente, que, com um pedido desse tamanho ($1 bilhão), os sauditas estão descarregando seus atuais arsenais na direção da oposição, e substituindo-os por novos itens”.

Se for isso, e Bandar estiver realmente pressionando à frente rumo à guerra saudita contra o regime sírio, inobstantes os recentes sinais emitidos pelas potências ocidentais, as conversas de Genebra-2, mês que vem, podem não levar à remoção do presidente Bashar Al-Assad; e não só sua minoria alawita permanecerá como presença chave em qualquer governo de transição: o presidente Bashar Al-Assad pode também concorrer outra vez à eleição presidencial.

Mas, sim, há outro modo de olhar para tudo isso. Para citar David Kenner, editor-associado da revista Foreign Policy: “Mas a intenção dos sauditas pode ser comprar as armas, mais que qualquer outra coisa. Num momento em que estão às turras com Washington por causa da diplomacia do governo Obama para o Irã e a não intervenção na Síria, os bolsos fundos do reino podem, pelo menos, providenciar para que seus laços com o Pentágono permaneçam tão fortes e firmes como sempre”. De fato. Há motivos para crer que grossas camadas de mentiras e enganação ofuscam as reais intenções que há por trás da retórica saudita.

Considerem por exemplo as reuniões supostamente secretas entre sauditas e israelenses. De repente, a cortina inexplicavelmente se abriu sobre essas reuniões, por mais que as cogitações sauditas-israelenses fossem segredo conhecido há anos, também em nível de inteligência, e um dos fios sempre entretecidos na complicada tapeçaria política do Oriente Médio. Bem claramente, os recentes vazamentos são parte da ‘guerra psicológica’. E, na realidade, tudo pode bem ser, só, uma limitada coincidência de interesses sauditas e israelenses.

O que realmente importa é que Israel e Arábia Saudita operam em níveis enormemente diferentes em Washington. As conexões de Israel nos EUA são profundas e cobrem os padrões políticos, culturais e religiosos da sociedade norte-americana, enquanto o lobby saudita só opera em nível superficial. No coração da diferença está a realidade objetiva de que Israel tem a capacidade para agir para salvaguardar seus interesses de segurança, e por mais que vez ou outra faça pesar a atmosfera sobre os laços com a Casa Branca, esse sempre será traço transitório, e as relações em geral sempre se recuperam, sem grande dano. A Casa de Saud, por sua vez, depende completamente da proteção militar dos EUA.

Em interessante artigo recente, escrito em conjunto por Bernard Haykel, o conhecido professor de Estudos do Oriente Próximo em Princeton, e Daniel Kurtzer, ex-embaixador dos EUA em Israel e no Egito, eles resumem: “Diferente de Israel, a Arábia Saudita tem pequena influência na política doméstica dos EUA, além do apoio de alguns homens do petróleo e fabricantes de armas. Os reis sauditas sequer mantêm relação pessoal calorosa com o presidente Barack Obama, como mantiveram com os presidentes H. W. George Bush, George W. Bush e Bill Clinton, que geriam pessoalmente as relações bilaterais. Assim como não é provável que sauditas e israelenses rebaixem suas relações com os EUA, menos provável ainda é que se aproximem entre si.”[7]Haykel e Kurtzer estimam que qualquer “coordenação diplomática e militar entre israelenses e sauditas pode até gerar manchetes, mas, muito provavelmente, sempre será ficção.”

Por tudo isso, a que se resume o borbulhante descontentamento dos sauditas? A questão é que Riad está cada dia mais desesperada. Considera a Síria uma guerra por procuração contra o Irã e quer que os EUA apoiem o esforço saudita. Não está acontecendo. Em vez disso, Washington engaja o Irã e no processo está dando a Teerã uma nova legitimidade, o que é anátema para Riad. Essa é uma charada que não se deixará resolver facilmente e a Arábia Saudita terá de aprender a viver com ela – pelo menos durante o governo Obama...


[2]17/12/2013, New York Times, em http://www.nytimes.com/2013/12/18/opinion/saudi-arabia-will-go-it-alone.html?_r=0. Ver também 22/12/2013, The Saker, Blog The Vineyard of the Saker, “A Casa de Saud ameaça: verdade ou encenação?”,traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/12/a-casa-de-saud-ameaca-verdade-ou.html[NTs].
[6]É metáfora frequente em inglês, a partir de versos de Coleridge, sobre um marinheiro que vê um albatroz a seguir seu navio (o que todos os marinheiros entendem como sinal de sorte), mas mata o albatroz (o que converte o bom presságio em mau presságio). Para tentar impedir as desgraças provocadas pelo assassinato do albatroz, o marinheiro que o matou é condenado e andar com o corpo do albatroz morto enrolado no pescoço, o que ele faz, até a morte (mais sobre isso em http://en.wikipedia.org/wiki/Albatross_(metaphor)). A metáfora, ligeiramente modificada, tb ocorre em francês, pelo L'Albatros de Charles Baudelaire, em Les Fleurs du mal [NTs].

Vila VuduAs muitas faces da ira saudita 24/12/2013, MK Bhadrakumar, Strategic Culture (I, II e III) http://www.strategic-culture.org/news/2013/12/24/the-saudi-anger-has-many-faces-i.html ss. Na última quinzen
Para Castor Filhoizquierdaunida@yahoogrupos.com.brtlaxcala@googlegroups.com e 2 Mais...
Dez 26 em 8:14 PM

domingo, 29 de dezembro de 2013

O revisionismo e o anti-stalinismo




Uma importante condição para a reconstrução do movimento comunista enquanto movimento marxista-leninista unido


Por Kurt Gossweiler

Para os marxistas não é de forma nenhuma surpresa que o fim da União Soviética e dos estados europeus socialistas tenha trazido consigo o regresso da guerra à Europa e o início de uma ofensiva geral do capital contra a classe trabalhadora e todo o povo trabalhador.
Esta brutal ofensiva do capital só pode ser rechaçada com uma defesa conjunta, unitária, de todos os atingidos. Só por isto é urgentemente necessária a reconstrução de um movimento comunista unido, já para não falar da tarefa de acabar com o domínio do imperialismo. Infelizmente, porém, o movimento comunista ainda está muito longe de ser um movimento unido.
A mim, pelo menos, parece-me que o principal obstáculo à reconstrução da unidade dos comunistas reside menos nas diferenças de opinião sobre as tarefas do presente, do que nas opiniões contraditórias sobre a avaliação do caráter e da política dos países socialistas, em especial da União Soviética, no passado.
Alguns estão convictos de que a URSS e os outros países socialistas da Europa (excluindo a Albânia) não eram países socialistas desde o XX Congresso, mas sim países capitalistas de Estado e consideram como revisionistas todos os que não concordam com este ponto de vista, com os quais não pode haver nada em comum.
Outros – como lhes tem sido contado desde o XX Congresso e desde Gorbatchov com crescente intensidade – veem em Stálin o destruidor do socialismo, por isso declaram que com os «stalinistas» não pode haver nada em comum.
Nesta posição encontra-se a maior parte das organizações que se formaram a partir das ruínas resultantes da decadência dos partidos comunistas e, com efeito, não só aqueles que se assumem abertamente como partidos sociais-democratas, mas também a maioria dos que se consideram partidos comunistas, incluindo o PDS que manobra entre estes dois.
O anti-stalinismo é hoje, realmente, o maior obstáculo à unificação dos comunistas, como foi ontem o fator principal da destruição dos partidos comunistas e dos estados socialistas.
Quero introduzir só duas testemunhas para esta afirmação, que estão longe de qualquer suspeita de «stalinismo».
A primeira é o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros americano, John Foster Dulles, a segunda, ninguém menos do que Gorbatchov.
Dulles, extremamente cheio de esperança, expressou-se assim depois do XX Congresso do PCUS: «A campanha anti-Stálin e a liberalização do seu programa provocaram uma reação em cadeia, que a longo prazo é imparável.»1
Gorbatchov caracterizou acertadamente o anti-stalinismo – e assim involuntariamente também o conteúdo principal da sua ação – quando respondeu a uma pergunta sobre o «stalinismo» na URSS, durante uma entrevista para o jornal do PCF, l'Humanité, em 4 de Fevereiro de 1986: «Stalinismo é um conceito que os adversários do comunismo inventaram e que é usado amplamente para difamar a União Soviética e o socialismo no seu conjunto.» (Ninguém pode, portanto, afirmar que Gorbatchov não sabia o que fazia com a sua campanha anti-Stálin.)
O elemento do anti-stalinismo de longe com mais efeito é a apresentação de Stálin como um déspota ávido de poder, como um assassino de milhões de inocentes sedento de sangue.
Haveria muito a dizer sobre isto. Aqui, resumidamente, só as seguintes notas:
Primeiro: pode lamentar-se profundamente, mas é um fato que, ainda, nunca uma classe dominada deitou fora o jugo da classe dominante, sem que a sua luta de libertação revolucionária e defesa das tentativas de restauração contrarrevolucionárias tenha custado a vida de muitos inocentes.
Segundo: a contrarrevolução sempre usou este fato para rotular os revolucionários, aos olhos das massas, como criminosos detestáveis, como assassinos e sedentos de sangue: Thomas Müntzer, Cromwell, Robespierre, Lênin, Liebknecht, Luxemburg.
Terceiro: só o preconceito cego pode não ver ou negar a relação causal entre o assumir do poder pelo fascismo alemão, assim como o armamento e expansão para Leste, apoiados com simpatia pelas potências vencedoras ocidentais, e os processos de Moscou, assim como as medidas repressivas contra os estrangeiros, imigrantes incluídos. Bertolt Brecht viu muito bem esta relação quando afirmou: «Os processos são um ato de preparação da guerra». Formulado de forma ainda mais exata: foram uma resposta à preparação fascista-imperialista para o assalto à União Soviética.
Sem a certeza do assalto, mais tarde ou mais cedo, à União Soviética – não há nem processos de Moscou, nem «depurações» draconianas para impedir uma 5ª Coluna no país.
Quarto: só politicamente cegos ou muito ingênuos podem ignorar que nem Khruchov, nem Gorbatchov foram conduzidos por sentimentos de repulsa perante a injustiça e a desumanidade na sua denúncia de Stálin; se tivesse sido assim então teriam atacado o imperialismo e os seus expoentes, pelo menos com a mesma implacabilidade com que atacaram Stálin. Mas o contrário foi o caso: o traço característico das suas políticas foi o ganhar a confiança do imperialismo, apesar dos seus crimes sanguinários contra Humanidade!
Quinto: em completa contradição com esta posição está o fato de que mesmo o representante diplomático da principal potência imperialista, o embaixador dos EUA, Joseph A. Davies, fez uma avaliação positiva de Stálin, mas esta e outras avaliações nesse sentido de testemunhas contemporâneas sobre a URSS foram censuradas na URSS desde o XX Congresso.
Por isso, primeiro, algumas apresentações sobre os processos de Moscou.
Em primeiro lugar, excertos do livro de J. E. Davies, publicado em 1943, em Zurique, Embaixador americano em Moscou. Relatórios autênticos e confidenciais sobre a URSS até Outubro de 1941.
Davies acompanhou, como todos os diplomatas que o desejaram, os processos de Moscou como testemunha ocular (era jurista de profissão).
Telegrafou a sua impressão sobre o processo contra Bukharin e outros para Washington em 17 de Março de 1938. Seguem-se excertos do telegrama: «Apesar do preconceito (…) depois da observação diária das testemunhas e da sua forma de depor, por causa da confirmação inconsciente que resultou (…) cheguei à conclusão de que, no que diz respeito aos réus políticos, se provou um número suficiente dos delitos contra a lei soviética enumerados no libelo acusatório e que se encontram fora de dúvida para o pensamento racional, para justificar a averiguação de culpa de traição à pátria e a respectiva condenação com a pena prevista na lei criminal soviética. A opinião dos diplomatas que assistiram regularmente às sessões foi, no geral, que o processo revelou a realidade de um complot seriíssimo e veementemente político, que esclareceu aos diplomatas muitos dos até agora incompreensíveis acontecimentos dos últimos seis meses na URSS.»2
Davies já tinha acompanhado o processo contra Radek e outros e informado, em 17 de Fevereiro de 1937, o secretário de Estado dos EUA. Neste relatório escreve, entre outras coisas:
«Observação objetiva…levou-me (contudo) com repugnância à conclusão de que o Estado provou realmente a sua acusação (pelo menos na medida em que foi posta fora de dúvida a existência, entre dirigentes políticos, de uma conspiração alargada e intrigas secretas contra o Governo soviético e, de acordo com as leis existentes, os supostos crimes do libelo acusatório foram cometidos e são puníveis). Falei com muitos, com quase todos os membros do Corpo Diplomático e, talvez com uma única exceção, todos foram da opinião de que as sessões provaram claramente a existência de um plano secreto político e uma conspiração com o objetivo de derrubar o Governo.»3
No seu diário, Davies anotou, em 11 de Março de 1937, o seguinte episódio significativo: «um outro diplomata fez-me ontem uma observação muito elucidativa. Falávamos sobre os processos e ele afirmou que os réus eram sem dúvida culpados; todos os que assistiam às sessões estavam de acordo sobre isso. Pelo contrário, o mundo parecia pensar de acordo com os relatos do processo, que o processo era pura encenação (chamou-lhe de fachada); ele sabia, na verdade, que não era justo, mas todavia talvez fosse melhor assim, que o mundo adotasse esta [opinião]»4.
Davies relatou também sobre as muitas prisões e falou das «depurações» com o ministro soviético dos Negócios Estrangeiros, Litvinov, em 4 de Julho de 1937. Sobre as exposições de Litvinov relatou: «Litvinov (...) declarou que através destas depurações se tinha de ganhar a segurança de que não existia mais nenhuma traição com a possibilidade de trabalho conjunto com Berlim ou Tóquio. Um dia, o mundo compreenderia que o acontecido tinha sido necessário para proteger o seu Governo “da traição ameaçadora”. Sim, na verdade prestavam um serviço a todo o mundo, já que quando se protegiam do perigo do domínio mundial dos nazistas e de Hitler, a União Soviética tornava-se num poderoso baluarte contra a ameaça nacional-socialista. Chegaria o dia em que o mundo deveria reconhecer que homem excepcional era Stálin.»5
Elucidativa é também a descrição de Davies da sua conversa com Stálin, numa carta à sua filha de 9 de Junho de 1938. Bastante impressionado com a personalidade de Stálin, escreveu: «Se consegues imaginar uma personalidade que em todos os aspectos é completamente o contrário do que o adversário de Stálin mais furioso conseguiu imaginar, então tens a imagem deste homem. As condições, que eu sei que aqui existem, e esta personalidade afastam-se tanto como dois polos. A explicação naturalmente está em que as pessoas estão dispostas a fazer pela sua religião ou “causa”, o que nunca fariam sem isso.»6
Depois do assalto dos fascistas à URSS, Davies resumiu as suas opiniões, em 1941, notando que os processos de lesa-pátria tinham «dado o golpe de misericórdia à 5ª coluna de Hitler na Rússia».7
Já em 1936 tinha decorrido o processo contra Zinoviev e outros. O renomado advogado britânico D. N. Pritt teve a oportunidade de o observar. Relatou as suas impressões no seu livro de memórias, From Right to Left, publicado em Londres em 1965:
«A minha impressão foi de (...), que o processo foi conduzido em geral de forma justa e que os réus eram culpados (…) A impressão de todos os jornalistas com quem pude falar foi também a de que o processo foi justo e os réus culpados e certamente todos os observadores estrangeiros, os quais na sua maioria eram diplomatas, pensavam o mesmo…Ouvi um deles dizer: naturalmente que são culpados. Mas temos de negá-lo por razões de propaganda.»8
Resulta, portanto, que depois do juízo competente de tais especialistas burgueses em direito, como Davies e Pritt, os réus dos processos de Moscou de 1936, 1937 e 1938 foram condenados justamente e foram provados os crimes de que eram acusados.
Neste contexto devem ser lembradas, mais uma vez, as considerações de Bertolt Brecht, nesse tempo, sobre estes perturbantes processos; escreveu por exemplo sobre a concepção dos réus:
«A falsa concepção conduziu-os profundamente ao isolamento e ao crime comum. Toda a escória do país e do estrangeiro, todo o parasitismo, o espiolhar, a criminalidade profissional aninharam-se neles. Tinham o mesmo objetivo com toda esta escumalha. Estou convencido que esta é a verdade e estou convencido que esta verdade certamente tem de soar plausível também na Europa Ocidental aos leitores inimigos (…) O político a quem só a derrota ajuda [a chegar] ao Poder, é pela derrota. O que quer ser “salvador”, introduz uma situação na qual pode salvar, ou seja, uma má situação. (…) Trotski viu, em primeiro lugar, o perigo da derrocada do Estado dos trabalhadores numa guerra, mas depois ela própria tornou-se, cada vez mais, na condição prévia da sua atuação prática. Se a guerra chegar, a construção “precipitada” desabará, o aparelho isolar-se-á das massas, terá de ceder ao exterior a Ucrânia, Sibéria Oriental e etc., fazer concessões no interior, regressar a formas capitalistas, reforçar os kulakes ou deixar que se reforcem; mas tudo isto é simultaneamente a condição prévia de um novo procedimento, do regresso de Trotski.
Os centros anti-stalinistas descobertos não têm a força moral para apelar ao proletariado, não tanto porque esta gente é covarde, mas sim porque não têm realmente bases organizadas nas massas, não podem oferecer nada, não têm tarefas para as forças produtivas do país. Assim é de confiar que eles confessam a mais do que a menos.»9
Se partirmos do princípio que Davies e Pritt (e Brecht) tinham razão na sua análise dos processos de Moscou, então surge necessariamente a pergunta: Os que – como Khruchov e Gorbatchov – declararam posteriormente vítimas inocentes os condenados nos processos, não o terão feito porque simpatizavam com eles ou até eram seus cúmplices secretos e queriam completar a sua causa fracassada na altura?
E quando, então, observamos mais pormenorizadamente a sua ação política (de Khruchov, Gorbatchov e seus iguais) temos de constatar que as confissões dos acusados dos processos de Moscou, sobre as suas intenções e objetivos e os métodos utilizados para os atingir, são como guias para Khruchov e especialmente Gorbatchov. Isto sugere-nos uma dupla conclusão.
Quanto a uma, desde o XX Congresso do PCUS que os processos de Moscou podem servir como chave para o esclarecimento e decifração do que conduziu a União Soviética, outros países socialistas e o movimento comunista ao percurso difícil. Quanto à outra, a ação de Khruchov e Gorbatchov e os seus resultados demonstram que os processos de Moscou não se trataram de uma encenação espetacular, mas sim que neles foram descobertos e frustrados complots do mesmo gênero dos que foram planejados com o mesmo fim e puderam ser finalmente conduzidos por Gorbatchov, porque já nenhum processo de Moscou lhes pôs termo.
Se a descrição de Stálin como um déspota ávido de sangue e o «seu» regime como o inferno na terra serviram para paralisar a resistência contra a contrarrevolução de Khruchov-Gorbatchov, a descrição de Stálin como um adulterador dos princípios leninistas aspirava ao desarmamento teórico e ideológico do movimento comunista e de todos os socialistas. A maior parte deste gênero de munições tem origem no arsenal do trotskismo. Quero apresentar alguns poucos exemplos.

1. A questão da vitória do socialismo num só país
O desmoronamento dos países socialistas europeus e principalmente da URSS é apresentado como prova da correção da tese trotskista sobre a impossibilidade da construção do socialismo num só país, em que normalmente é silenciado que foi Lênin quem pela primeira vez, em 1915, escreveu sobre a possibilidade do socialismo num só país. É conhecido o que Lênin afirmou no artigo, Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa10: «A desigualdade do desenvolvimento econômico e político é uma lei absoluta do capitalismo. Daqui decorre que é possível a vitória do socialismo primeiramente em poucos países ou mesmo num só país capitalista tomado por separado.» Trotski, desde há anos adversário encarniçado de Lênin, contestou de imediato com a afirmação de que era inútil acreditar «que por exemplo uma Rússia revolucionária podia (...) impor-se perante uma Europa conservadora11
Stálin, que de acordo com os trotskistas atuais é o suposto inventor da tese da possibilidade da construção do socialismo num país, defendeu, na verdade, a tese leninista contra Trotski.
«Que significa a possibilidade da vitória do socialismo num só país?
Significa a possibilidade de resolver as contradições entre proletariado e campesinato através das forças internas no nosso país, a possibilidade da tomada do poder pelo proletariado e da utilização deste poder para a construção da sociedade socialista no nosso país, com a simpatia e apoio do proletariado de outros países, mas sem a vitória prévia da revolução proletária noutros países. (…)
Que significa a impossibilidade da vitória completa, final, do socialismo num só país sem a vitória da revolução noutros países? Significa a impossibilidade de uma total garantia contra a intervenção e, consequentemente, contra a restauração da ordem burguesa, sem a vitória da revolução, pelo menos, numa série de países.»12
Mas Stálin não se limitou a defender a tese de Lênin. Sob a sua direção o PCUS forneceu a prova da justeza da tese leninista através da construção do socialismo e a afirmação da URSS contra os agressores fascistas.
Pelo contrário, Trotski foi tão frequentemente desmentido pela História, como quando previu o desmoronamento da URSS, e isto acontecia mais do que uma vez por ano. Numa das suas últimas previsões do gênero, publicada em 23 de Julho de 1939, garante que «o regime político não sobreviverá a uma guerra».13
O desejo é indubitavelmente o pai desta profecia!
Isto transpirava tão claramente de todas as afirmações de Trotski nesses anos, que o escritor burguês alemão, Lion Feuchtwanger, tirou daí a seguinte conclusão: «O que sobreviveu então de todos estes anos de deportação, qual é hoje o objetivo principal de Trotski? Regressar de novo ao país, chegar ao poder a qualquer preço.» Mesmo ao preço do trabalho conjunto com os fascistas: «Se Alcíbiades se passou para os persas, porque não Trotski para os fascistas?».14 (Também Feuchtwanger foi testemunha ocular de um dos processos de Moscou, o segundo, contra Radek, Piatakov e outros, Janeiro 1937.)

2. Stálin e a Nova Política Econômica
Uma das acusações de Gorbatchov contra Stálin consistia na afirmação de que Lênin, nos seus últimos trabalhos de aperfeiçoamento da «Nova Política Econômica», apontou um novo caminho para a construção da nova sociedade socialista, que Stálin abandonou. Esta censura é aproveitada por anti-stalinistas de todas as cores, na qual se afirma que Stálin substituiu a concepção de Lênin da NEP15 por um «rumo monopolista de Estado» e assim arruinou o socialismo.
O núcleo da Nova Política Econômica consistia, segundo Lênin, no alicerçar da união política da classe trabalhadora e do seu Estado com largas camadas do campesinato através da união econômica com a economia rural. «Quando derrotarmos o capitalismo e estabelecermos a união com a economia rural, então seremos uma força invencível», disse no XI Congresso do PCR(B) em 192216. Stálin compreendia exatamente assim a NEP e continuou-a depois da morte de Lênin:
«A NEP é a política da ditadura do proletariado, que está dirigida para a subjugação dos elementos capitalistas e a construção da economia socialista através da utilização do mercado, mediante o mercado, mas não através da troca direta dos produtos sem mercado, sob a exclusão do mercado. Podem os países capitalistas, pelo menos os mais desenvolvidos entre eles, dispensar a NEP na passagem do capitalismo para o socialismo? Penso que não. Neste ou naquele grau, a Nova Política Econômica com as suas relações de mercado, no período da ditadura do proletariado, é absolutamente imprescindível para qualquer país [de economia] capitalista.
Entre nós há camaradas que contestam esta tese. Mas o que significa contestar esta tese?
Significa, em primeiro lugar, partir do princípio de que nós, imediatamente a seguir à tomada do poder pelo proletariado, já disporíamos de aparelhos, cem por cento prontos, de distribuição e abastecimento intermediários das trocas entre cidade e campo, entre indústria e pequena produção, que permitem a imediata troca direta de produtos sem mercado, sem transações de compra e venda, sem o estabelecimento de um economia monetária. Só é preciso colocar esta questão para compreender como seria absurda tal hipótese.
Significa, em segundo lugar, partir do princípio de que a revolução proletária, depois da tomada do poder pelo proletariado, percorre o caminho da expropriação da pequena e média burguesia e tem de se impor o fardo de fornecer trabalho aos milhões de novos desempregados criados artificialmente e cuidar do seu sustento. Só é preciso colocar esta questão para compreender como seria disparatada e insensata uma tal política da ditadura proletária.»17
Porquê uma citação tão pormenorizada sobre um tema tão pouco atual?
Primeiro, porque estamos convencidos que este tema – a política econômica para a construção do socialismo – só está arredado temporariamente da ordem do dia na Europa (e de forma nenhuma noutros lugares); segundo, porque é necessário lembrar que existe uma extraordinária riqueza em conhecimentos teóricos e experiências práticas sobre construção socialista bem sucedida, mas que foi colocada no Index como «stalinismo» pelos sucessores de Lênin e Stálin, para que caísse no esquecimento; finalmente, terceiro, porque entre a esquerda anticapitalista se divulga uma tese de pseudo-esquerda, cujo mais conhecido divulgador é Robert Kurz, segundo a qual a raiz de todo o mal não é o capitalismo mas sim a produção de mercadorias; o socialismo desmoronou-ser porque manteve a produção de mercadorias em vez de passar diretamente para a troca direta de produtos. Perante tais teses a citação acima é até muito atual!
Por que pôde o revisionismo destruir os resultados de décadas de construção socialista?
Naturalmente existem muitas razões. Uma muito importante, na minha opinião, é: o revisionismo apresentou-se durante muito tempo permanentemente como antirrevisionismo, como defesa do leninismo contra a sua suposta falsificação por Stálin. Só quando a sua obra destruidora estava praticamente concluída é que Gorbatchov retirou a máscara do comunista, do leninista e se declarou publicamente simpatizante da socialdemocracia, ou seja anticomunista e antileninista.
Mas o anti-stalinismo foi, desde o início, de acordo com o núcleo da sua natureza, antileninismo, antimarxismo e anticomunismo.
No entanto, mesmo agora, muitos do campo comunista não reconhecem ainda isto, porque se encontram ainda sob a influência de décadas de propaganda de ódio anti-stalinista dos secretários-gerais anticomunistas do PCUS desde o XX Congresso, que compararam Stálin a Hitler – precisamente aquele Stálin que – como Ernst Thälmann previu – partiu o pescoço a Hitler!
Temos de tornar claro que, na luta contra o anti-stalinismo, só se trata à primeira vista da pessoa de Stálin, mas que na sua essência se trata da questão da existência do movimento comunista: mantemo-nos – como Marx, Engels, Lênin e Stálin – firmemente no fundamento da luta de classes ou vamos – como os anti-stalinistas Khruchov, Gorbatchov e seus iguais – para o terreno da conciliação com o imperialismo? Esta é a questão, de cuja resposta depende o destino do movimento comunista. E como esta questão só pode ser corretamente respondida quando se eliminar o veneno revisionista em todas as suas manifestações, será preciso também vencer o anti-stalinismo nas suas fileiras.

1 In: Arquivo do Presente, de 11 de Julho de 1956.
2 J. E. Davies, Embaixador em Moscou, p. 209.
3 Idem, p. 33 e segs.
4 Idem, p. 86.
5 Idem, p. 128.
6 Idem, p. 209.
7 Idem, p. 209.
8 N. Pritt, From Right to Left, Londres, 1965, p. 110 e seg.
9 Bertold Brecht, Escritos sobre Política e Sociedade, Vol. I, 1919-1941, Aufbauverlag, Berlim e Weimar, 1968, p. 172 e seg.
10 Lénine, Obras Escolhidas em 3 Tomos, Edições Avante!, Lisboa, 1977 Vol 1, p. 570 [N. do Ed.].
11 Trotski, Escritos, Vol III, parte I, p. 89 e seg.
12 Stalin, Obras, Vol. 8, p. 58.
13 Leon Trotski, La lutte antibureaucratique en URSS, Paris, 1976, p. 257, cit. por: Ludo Martens, Un autre Regard sur Staline, Version non-définitive, Bruxelles, 1993, p. 133.
14 Lion Feuchtwanger, Moscou, 1937. Um relato de Viagem Para os Meus Amigos, publicado pela primeira vez na Ed. Querido, México, 1937; Nova edição na Aufbau-Taschenbuch-Verlag, Berlim, 1993, p. 89.
15 NEP- Sigla de Novaia Ekonomitcheskaia Politika (Nova Política Econômica). (Nota do editor)..
16 Lênin, Obras, Vol. 33, p.272.
17 Stalin, Obras, Vol. 11, p. 128 e seg.
Para a História do Socialismo
www.hist-socialismo.net

Documento retirado de www.kurt-gossweiler

Álvaro Garcia Linera: Às esquerdas da Europa e do mundo

Falando no IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia, vice-presidente da Bolívia apresentou cinco propostas para a esquerda europeia e mundial.
Alvaro Garcia Linera
Arquivo

O IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia (PIE) reuniu 30 formações de esquerda europeias em Madri, entre os dias 13 e 15 de dezembro, em busca de um discurso para unificar estratégias frente às políticas de austeridade e de submissão de Bruxelas às exigências dos mercados. Este foi o discurso do vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, convidado para o encontro.

Permitam-me celebrar este encontro da Esquerda europeia e, em nome de nosso presidente Evo, em nome do meu país, de nosso povo, agradecer o convite que nos fizeram para compartilhar um conjunto de ideias, reflexões neste tão importante congresso da Esquerda Europeia.

Permitam-me ser direto, franco, mas também propositivo.

O que vemos desde fora da Europa? Vemos uma Europa que enfraquece, uma Europa abatida, uma Europa ensimesmada e satisfeita de si mesmo, até certo ponto apática e cansada. Sei que são palavras muito feias e muito duras, mas é assim que vemos. Ficou para trás a Europa das luzes, das revoltas, das revoluções. Ficou para trás, muito atrás, a Europa dos grandes universalismos que  moveram e enriqueceram o mundo, que empurraram povos de muitas partes do mundo a adquirir uma esperança e mobilizar-se em torno dessa esperança.

Ficaram para trás os grandes desafios intelectuais. Essa interpretação que faziam e que fazem os pós-modernos de que acabaram os grandes relatos, à luz dos últimos acontecimentos, parece que só encobre os grandes negócios das corporações e do sistema financeiro.

Não é o povo europeu que perdeu a virtude ou a esperança, porque a Europa a que me refiro, cansada, a Europa esgotada, a Europa ensimesmada, não é a Europa dos povos, mas sim esta Europa silenciada, encerrada, asfixiada. A única Europa que vemos no mundo hoje é a Europa dos grandes consórcios empresariais, a Europa neoliberal, a Europa dos grandes negócios financeiros, a Europa dos mercados e não a Europa do trabalho.

Carentes de grandes dilemas, horizontes e esperança, só se ouve – parafraseando Montesquieu – o lamentável ruído das pequenas ambições e dos grandes apetites.

Democracias sem esperança e sem fé, são democracias derrotadas, são democracias fossilizadas. Em um sentido estrito, não são democracias. Não há democracia válida que seja simplesmente um apego aborrecido a instituições fósseis com às quais sem cumprem rituais a cada três, quatro ou cinco anos para eleger os que virão decidir (mal) sobre nossos destinos.

Todos sabemos e na esquerda mais ou menos compartilhamos um pensamento comum de como chegamos à semelhante situação. Os estudiosos, os acadêmicos, os debates políticos oferecem um conjunto de linhas interpretativas sobre a situação que estamos e como chegamos a ela. Um primeiro critério compartilhado de como chegamos a isso é que entendemos que o capitalismo adquiriu – não resta dúvida – uma medida geopolítica planetária absoluta. Ele cobre o mundo inteiro. O mundo inteiro tornou-se uma grande oficina mundial. Um rádio, uma televisão, um telefone, já não tem uma origem de criação. O mundo inteiro se converteu nessa origem. Um chip é feito no México, o desenho  vem da Alemanha, a matéria prima é latino-americana, os trabalhadores são asiáticos, a embalagem é norte-americana e a venda é planetária.

Esta é uma característica do moderno capitalista, não resta dúvida, e é partir dessa realidade que devemos agir.

Uma segunda característica dos últimos vinte anos, é uma espécie de retorno a uma acumulação primitiva perpétua. Os textos de Karl Marx, que retratam a origem do capitalismo nos séculos XVI e XVII, se repetem hoje como textos do século XXI. Temos uma permanente acumulação originária que reproduz mecanismos de escravidão, mecanismos de subordinação, de precariedade, de fragmentação, retratados excepcionalmente por Marx. O capitalismo moderno reatualiza a acumulação originária. Ela a expande, a irradia a outros territórios para extrair mais recursos e mais dinheiro. Mas há algo que vem junto com esta acumulação primitiva perpétua – que vai definir as características das classes sociais contemporâneas, tanto em nossos países como no mundo, porque reorganiza a divisão do trabalho local, territorialmente, e a divisão do trabalho planetário.

Junto com isso temos uma espécie de neo-acumulação por expropriação. Temos um capitalismo depredador que acumula, em muitos casos produzindo nas áreas estratégicas: conhecimento, telecomunicações, biotecnologia, indústria automobilística, mas em muitos de nossos países, acumula por expropriação. Ou seja, acumula ocupando os espaços comuns: biodiversidade, água, conhecimentos ancestrais, bosques, recursos naturais. Esta é uma acumulação por expropriação – não por geração de riqueza -, por expropriação de riquezas comuns que se tornam riqueza privada. Essa é a lógica neoliberal. Se criticamos tanto o neoliberalismo, é por sua lógica depredadora e parasitária. Mais que um gerador de riquezas ou um desenvolvedor de forças produtivas, o neoliberalismo é um expropriador de forças produtivas capitalistas e não capitalistas, coletivas, locais, de sociedades inteiras.

Mas a terceira característica da economia moderna não é somente a acumulação primitiva perpétua, acumulação por expropriação, mas também por subordinação – Marx diria subsunção real do conhecimento e da ciência à acumulação capitalista. O que alguns sociólogos chamam de sociedade do conhecimento. Não resta dúvida, essas são as áreas mais potentes e de maior desdobramento das capacidades produtivas da sociedade moderna.

A quarta característica e cada vez mais conflitiva e arriscada, é o processo de subsunção real do sistema integral da vida do planeta, ou seja, dos processos metabólicos entre os seres humanos e a natureza.

Estas quatro características do capitalismo moderno redefinem a geopolítica do capital em escala planetária, redefinem a composição de classes da sociedade e das classes sociais no planeta.

Não estamos falando só da externalização – para as extremidades do corpo capitalista, da classe operária tradicional, que vimos surgir no século XIX e início do século XX, e que agora se transfere para as zonas periféricas, Brasil, México, China, Índia, Filipinas -, mas também do surgimento, nas sociedades mais desenvolvidas, de um novo tipo de proletariado, um novo tipo de classe trabalhadora. Professores, pesquisadores, cientistas, analistas, que não se veem a si mesmos como classe trabalhadora, mas sim como pequenos empresários, mas que no fundo constituem uma nova composição social da classe trabalhadora, do princípio do século XXI. 

Mas, ao mesmo tempo, temos também uma criação no mundo daquilo que poderíamos chamar de proletariado difuso. Sociedades e nações não capitalistas, que são subsumidas formalmente à acumulação capitalista. América Latina, África, Ásia, falamos de sociedades e de nações não estritamente capitalistas, mas que no conjunto aparecem subsumidas e articuladas como formas de proletarização difusas. Não somente por sua qualidade econômica, mas também pelas próprias características de unificação fragmentada, ou de difícil fragmentação por sua dispersão territorial.

Temos então, não somente uma nova modalidade da expansão da acumulação capitalista, mas também uma reacomodação das classes, do proletariado e das classes não proletárias no mundo. O mundo hoje é mais conflitivo. O mundo hoje está mais proletarizado, só que as formas de proletarização são distintas daquelas que conhecemos no século XIX, princípios do século XX. E as formas de proletarização destes proletários difusos, destes proletários profissionais liberais não tomam necessariamente a forma de um sindicato. A forma sindicato perdeu sua centralidade em alguns países e surgem outras formas de unificação do popular, do laboral, do obreiro.

O que fazer? – a velha pergunta de Lenin. O que fazemos? Compartilhamos diagnósticos sobre o que está errado, sobre o que está mudando no mundo e frente a essas mudanças não podemos responder – ou melhor – as respostas que tínhamos antes são insuficientes, caso contrário a direita não estaria governando aqui na Europa. Está faltando algo em nossas respostas e em nossas propostas. Permitam-me, de maneira modesta, fazer cinco sugestões nesta construção coletiva a que se propõe a esquerda europeia.

A esquerda europeia não pode se contentar com o diagnóstico e a denúncia. O diagnóstico e a denúncia servem para gerar indignação moral e é importante a expansão da indignação moral, mas não gera vontade de poder. A denúncia não é uma vontade de poder. Pode ser a antessala de uma vontade de poder, mas não é a própria. A esquerda europeia e a esquerda mundial, diante desse turbilhão destrutivo, depredador da natureza e do ser humano, impulsionado pelo capitalismo contemporâneo, tem que aparecer com propostas ou com iniciativas.

Nós precisamos construir um novo sentido comum. No fundo, a luta política é uma luta pelo sentido comum. Pelo conjunto de juízos e preconceitos. Pela forma como, de modo simples, as pessoas – o jovem estudante, o profissional, a vendedora, o trabalhador, o operário – ordenam o mundo. Esse é o sentido comum. É a concepção de mundo básica com a qual ordenamos a vida cotidiana. A maneira pela qual valoramos o justo e o injusto, o desejável e o possível, o impossível e o provável. A esquerda mundial tem que lutar por um novo sentido comum, progressista, revolucionário, universalista. Mas, obrigatoriamente, um novo sentido comum.

Em segundo lugar, necessitamos recuperar – como apresentou o primeiro expositor de maneira brilhante – o conceito de democracia. A esquerda sempre reivindicou a bandeira da democracia. É nossa bandeira. É a bandeira da justiça, da igualdade, da participação. Mas para isso temos que nos livrar da concepção da democracia como um fato meramente institucional. A democracia são instituições? Sim, são instituições. Mas é muito mais do que isso. A democracia é votar a cada quatro ou cinco anos? Sim, mas é muito mais do que isso. É eleger o Parlamento? Sim, mas é muito mais do que isso. É respeitar as regras da alternância? Sim, mas não é só isso. Essa é a maneira liberal, fossilizada, de entender a democracia na qual às vezes ficamos presos. A democracia são valores? São valores, princípios organizativos do entendimento do mundo: a tolerância, a pluralidade, a liberdade de opinião, a liberdade de associação. Está bem, são princípios, são valores, mas não são somente princípios e valores. São instituições, mas não são somente instituições.

A democracia é prática, é ação coletiva. A democracia, no fundo, é a crescente participação na administração dos bens comuns que uma sociedade possui. Há democracia se os cidadãos participam dessa administração. Se temos como um patrimônio comum a água, então democracia é participar na gestão da água. Se temos como patrimônio comum o idioma, a língua, democracia é a gestão comum do idioma. Se temos como patrimônio comum as matas, a terra, o conhecimento, democracia é a gestão comum destes bens. Crescente participação comum na gestão das matas, na gestão da água, na gestão do ar, na gestão dos recursos naturais. Teremos democracia, no sentido vivo, não fossilizado do termo, se a população (e a esquerda trabalhar para isso) participar de uma gestão comum dos recursos comuns, das instituições, do direito e das riquezas.

Os velhos socialistas dos anos 70 falavam que a democracia deveria tocar as portas das fábricas. É uma boa ideia, mas não é suficiente. Deve tocar a porta das fábricas, a porta dos bancos, das empresas, das instituições, a porta dos recursos, a porta de tudo o que seja comum para as pessoas. Nosso delegado da Grécia me perguntava sobre o tema da água. Como começamos na Bolívia? Por temas básicos, de sobrevivência, água! E, em torno da água, que é uma riqueza comum, que estava sendo expropriada, o povo travou uma “guerra” e recuperou a água para a população. Depois recuperamos não somente a água, fizemos outra guerra social e recuperamos o gás e o petróleo, as minas e as telecomunicações, e falta muito ainda por recuperar. Mas a água foi o ponto de partida para a crescente participação dos cidadãos na gestão dos bens comuns que tem uma sociedade, uma região.

Em terceiro lugar, a esquerda tem que recuperar também a reivindicação do universal, dos ideais universais. Dos comuns. A política como bem comum, a participação como uma participação na gestão dos bens comuns. A recuperação dos bens comuns como direito: direito ao trabalho, direito à aposentadoria, direito à educação gratuita, direito à saúde, a um ar limpo, direito à proteção da mãe terra, direito à proteção da natureza. São direitos. Mas são universais, são bens comuns universais frente aos quais a esquerda, a esquerda revolucionária, tem que propor medidas concretas, objetivas e de mobilização. Eu estava lendo no jornal como na Europa estão se utilizando recursos públicos para salvar bens privados. Isso é uma aberração. Usaram o dinheiro dos poupadores europeus para socorrer os bancos.

Usaram bens comuns para socorrer o privado. O mundo está ao contrário! Tem que ser o inverso disso: usar os bens privados para salvar e ajudar os bens comuns. Não os bens comuns para salvar os bens privados. Os bancos têm que ter um processo de democratização e de socialização de sua gestão. Caso contrário, eles vão acabar tirando não somente seu trabalho, sua casa, sua vida, sua esperança e tudo mais, e isso é algo que não se pode permitir.

Também precisamos reivindicar, em nossa proposta como esquerda, uma nova relação metabólica entre o ser humano e a natureza. Na Bolívia, por nossa herança indígena, chamamos isso de uma nova relação entre ser humano e natureza. Como o presidente Evo diz, a natureza pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não pode existir sem a natureza. Mas não é o caso de cair na lógica da economia verde, que é uma forma hipócrita de ecologismo.

Há empresas que aparecem ante vocês europeus como protetoras da natureza, como se fossem limpas, mas essas mesmas empresas provocam uma série de desperdícios e danos na Amazônica, na América e na África. Aqui são depredadores, aqui são defensores e ali se tornam depredadores. Converteram a natureza em outro negócio. A a preservação radical da ecologia não é um novo negócio, nem uma nova lógica empresarial. É preciso restituir uma nova relação, que é sempre tensa. Porque a riqueza que vai satisfazer necessidades humanas requer transformar a natureza e ao fazermos isso modificamos sua existência, modificamos a biosfera. Ao modificarmos a biosfera, muitas vezes destruímos a natureza e também o ser humano. O capitalismo não se importa com isso, porque para ele tudo não passa de um negócio. Mas para nós sim, para a esquerda, para a humanidade, para a história da humanidade. Precisamos reivindicar uma nova lógica de relação, não diria harmônica, mas sim metabólica, mutuamente benéfica, entre entorno vital natural e ser humano. Trabalho, necessidades.

Por último, não resta dúvida que precisamos reivindicar a dimensão heroica da política. Hegel via a política em sua dimensão heroica. E seguindo a Hegel suponho, Gramsci dizia que as sociedades modernas, a filosofia e um novo horizonte de vida, tem que se converter em fé na sociedade. Isso significa que precisamos reconstruir a esperança, que a esquerda tem ser a estrutura organizativa, flexível, crescentemente unificada, que seja capaz de reabilitar a esperança nas pessoas. Um novo sentido comum, uma nova fé – não no sentido religioso do termo -, mas sim uma nova crença generalizada pela qual as pessoas dediquem heroicamente seu tempo, seu esforço, seu espaço e sua dedicação.

Eu destaco o que comentava minha companheira quando nos dizia que hoje temos 30 organizações políticas reunidas aqui. Excelente. Isso quer dizer que é possível reunir-se, que é possível sair dos espaços fechados. A esquerda tão débil hoje na Europa não pode se dar ao luxo de ficar distante de seus companheiros. Pode haver diferença em 10 ou 20 pontos, mas coincidimos em 100. Esses 100 tem que ser os pontos de acordo, de proximidade, de trabalho. E deixemos os outros 20 para depois. Somos demasiados fracos para nos darmos ao luxo de seguir em brigas doutrinárias e de pequenos feudos, nos distanciando dos demais. É preciso assumir novamente uma lógica gramsciana para unificar, articular e promover ações comuns.

É preciso tomar o poder do Estado, lutar pelo Estado, mas nunca devemos esquecer que o Estado, mais do que uma máquina, é uma relação. Mais do que matéria, é uma ideia. O Estado é fundamentalmente ideia. E um pedaço é matéria. É matéria como relações sociais, como força, como pressões, como orçamentos, acordos, regulamentos, leis. Mas é fundamentalmente ideia como crença de uma ordem comum, de um sentido de comunidade. No fundo, a luta pelo Estado é uma luta por uma nova maneira de nos unificarmos, por um novo universal. Por uma espécie de universalismo que unifique voluntariamente as pessoas.

Mas isso requer uma vitória prévia no terreno das crenças, uma vitória sobre os nossos adversários na palavra, no sentido comum, ter derrotado previamente as concepções dominantes de direita no discurso, na percepção do mundo, nas percepções morais que temos das coisas. E isso requer um trabalho muito árduo. A política não é somente uma questão de correlação de forças, capacidade de mobilização. Em um momento, ela será isso. Mas ela é, fundamentalmente, convencimento, articulação, sentido comum, crença, ideia compartilhada, juízo e conceito compartilhado a respeito da ordem do mundo. E aqui a esquerda não pode se contentar somente com a unidade de suas organizações. Ela tem que se expandir para o âmbito dos sindicatos, que são o suporte da classe trabalhadora e sua forma orgânica de unificação.

É preciso ficar muito atento também, companheiros e companheiras, a outras formas inéditas de organização da sociedade, à reconfiguração das classes sociais na Europa e no mundo, às formas diferentes de unificação, formas mais flexíveis, menos orgânicas, talvez mais territoriais, menos por centros de trabalho. Tudo é necessário. A unificação por centros de trabalho, a unificação territorial, a unificação temática, a unificação ideológica. É um conjunto de formas flexíveis, frente às quais a esquerda tem que ter a capacidade de articular, propor e de seguir adiante.

Permitam-me em nome do presidente, e em meu nome, felicita-los, celebrar esse encontro, desejar-lhes e exigir-lhes – de maneira respeitosa e carinhosa – que lutem, lutem e lutem!. Não nos deixem sós, outros povos que estamos lutando de maneira isolada em alguns lugares, na Síria, na Espanha, na Venezuela, no Equador, na Bolívia. Não nos deixem sós. Precisamos de vocês, precisamos mais ainda de uma Europa que não veja somente à distância o que ocorre em outras partes do mundo, mas sim novamente uma Europa que volte a iluminar o destino do continente e o destino do mundo.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Fonte: Carta Maior