Depois do Mali, Paris intervém na República Centro-Africana, convida parceiros europeus à aventura e finge esquecer resultados trágicos da Conferência de Berlim, em 1885
Por Vinícius Gomes
Se havia dúvidas de que o governo “socialista” francês sente-se nostálgico das velhas relações entre Europa e África, elas terminaram nesta terça-feira . Ao falar ao Parlamento de seu país, o ministro das Relações Exteriores, Laurent Fabius, anunciou que “diversos países europeus” seguirão a iniciativa francesa e enviarão soldados à República Centro-Africana (RCA), a pretexto de “restarurar a paz”. A iniciativa põe em evidência, mais uma vez, os impasses da África, dividida entre países que vivem surtos (às vezes desordenados) de desenvolvimento e outros, em que o Estado nacional desmorona. Porém, a novidade principal é o regresso de um sentimento europeu atávico: a crença de que o Velho Continente tem a “missão” de civilizar o mundo.
A situação da República Centro-Africana é, de fato, dramática. Em março, um golpe de Estado derrubou o presidente François Bozizé – que assumira o poder dez anos antes, também por força das armas. Os últimos meses foram de caos crescente. Os golpistas, que se articulam no movimento Séléka, praticaram saques, estupros e execuções. Contra eles, formaram-se milícias igualmente violentas. Choques entre ambas as partes provocaram centenas de mortes e desabrigaram 400 mil pessoas – um em cada dez habitantes –, nas últimas semanas. A religião é a linha divisória entre os dois grupos, o que torna mais difícil uma solução. O Séléka é majoritariamente muçulmano; as milícias, cristãs.
A França, que já havia intervido na Líbia, tentara instigar uma agressão ocidental à Síria e ocupara o Mali, no início do ano, resolveu por as mãos também na República Centro-Africana. Cerca de 1,6 mil soldados franceses, com armamento muito superior ao dos grupos africanos, estão no país desde o final de novembro. Duas mortes, entre os invasores, fizeram despencar o apoio à intervenção na França. Por isso, o ministro Fabius está ansioso por envolver outras nações europeias.
Mas por trás das disputas na RCA está também… a Europa. O país é apenas mais um entre os que tiveram suas fronteiras forjadas pela “imaginação” europeia, no século 19. O episódio marcante desta intervenção foi a Conferência de Berlim, em 1885. Nela, governantes do Ocidente partilharam entre si o continente africano. Oito potências – Grã Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, Áustria-Hungia e Império Otomano – dedicaram-se a esse exercício macabro, em consórcio com suas grandes empresas.
Desrespeitaram história, relações étnicas e culturais dos povos nativos. Traçaram as fronteiras do continente com a força de seus exércitos e a bússola de seus próprios interesses. As consequências podem ser sentidas mais de cem anos depois. Expressam-se nos genocídios de Ruanda e Darfur, na necessidade de criar o Sudão do Sul e em violentos conflitos entre muçulmanos e cristãos na Nigéria e, agora, na RCA.
Mas por que a França tem desempenhado papel central? Num texto recente, o sociólogo Immanuel Wallerstein sugere: que “o que permite essa agressividade francesa é o declínio do poder efetivo dos EUA no cenário mundial”. E o palco da ação de Paris é a África, continente que a França sempre viu como seu “quintal” e onde ainda mantém três grandes bases militares.
O próprio Wallerstein lembra, contudo, que tudo tem um preço: “Assim como os EUA descobriram no Oriente Médio, pode ser bem difícil retirar suas tropas uma vez que elas entram [no país]“, e geralmente, a opinião pública doméstica não apoia mais a intervenção. No caso da RCA, não chegou nem a dez dias.
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