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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Princípios Elementares de Filosofia - CAPITULO II



Princípios Elementares de Filosofia

O IDEALISMO
I. — Idealismo moral e idealismo filosófico.
II. — Por que devemos estudar o idealismo de Berkeley?
III. — O idealismo de Berkeley.
IV. — Conseqüências dos raciocínios «idealistas».
V. — Os argumentos idealistas:
1. O espírito cria a matéria.
2. O mundo não existe fora do nosso pensamento.
3. São as nossas ideias que criam as coisas.

I. — Idealismo moral e idealismo filosófico.
Denunciamos a confusão criada pela linguagem corrente, no que se refere ao materialismo. A mesma confusão encontra-se a propósito do idealismo.
Não é necessário confundir, com efeito, o idealismo moral e o idealismo filosófico.
O idealismo moral consiste em devotar-se a uma causa, a um ideal. A história do movimento operário internacional ensina-nos que um número incalculável de revolucionários, de marxistas, se devotaram até ao sacrifício da sua vida por um ideal moral, e, portanto, eram os adversários deste outro idealismo que se chama idealismo filosófico.
O idealismo filosófico é uma doutrina que tem por base a explicação do mundo pelo espírito.
É a doutrina que responde à pergunta fundamental da filosofia, dizendo: «é o pensamento o elemento principal, o mais importante, o primeiro». E o idealismo afirmando a importância primeira do pensamento, afirma que é ele que produz o ser, ou, por outras palavras, que: «é o espírito que produz a matéria».
Tal é a primeira forma do idealismo; encontrou o seu pleno desenvolvimento nas religiões, afirmando que Deus, «espírito puro», era o criador da matéria.
A religião, que pretendeu, e pretende ainda estar fora das discussões filosóficas, é, na realidade, pelo contrário, a representação direta e lógica da filosofia idealista.
Ora, a ciência, intervindo no decurso dos séculos, em breve se tornou necessária para explicar a matéria, o mundo, as coisas, de outro modo que apenas por Deus. Porque, desde o século XVI, a ciência começou a explicar os fenômenos da natureza sem ter em conta Deus e abstendo-se da hipótese da criação.
Para melhor combater estas explicações científicas, materialistas e ateias, foi preciso, pois, levar mais longe o idealismo e negar a existência mesmo da matéria.
Foi ao que se dedicou, no princípio do século XVIII, um bispo inglês, Berkeley, considerado o pai do idealismo.

II. — Por que devemos estudar o idealismo de Berkeley?
O propósito do seu sistema filosófico será, pois destruir o materialismo, tentar demonstrar-nos que a substância material não existe. Escreveu, no prefácio do seu livro «Diálogos de Hylas e de Philonoüs»: Se estes princípios são aceites e olhados como verdadeiros, resulta que o ateísmo e o cepticismo são, com o mesmo golpe, completamente abatidos, as perguntas obscuras esclarecidas, dificuldades quase insolúveis resolvidas, e os homens que se compraziam com os paradoxos reduzidos ao senso comum4.
Deste modo, para Berkeley, o que é verdadeiro é que a matéria não existe, e é paradoxal pretender o contrário.
Vamos ver como se agarra a isso, para tal nos demonstrar. Mas, penso que não é inútil insistir com os que querem estudar filosofia, para que tomem a teoria de Berkeley em muito grande consideração.
Bem sei que as teses de Berkeley farão sorrir alguns, mas é preciso não esquecer que vivemos no século XXI e beneficiamos de todos os estudos do passado. E veremos, aliás, quando estudarmos o materialismo e a sua história, que os filósofos materialistas de outrora fazem também, por vezes, sorrir.
É preciso, portanto, saber que Diderot, que foi, antes de Marx e Engels, o maior dos pensadores materialistas, ligava ao sistema de Berkeley alguma importância, uma vez que o descreve como um sistema que, para vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora o mais absurdo de todos5!
O próprio Lenine consagrou numerosas páginas à filosofia de Berkeley, e escreveu:
[Os filósofos idealistas mais modernos] não produziram contra os materialistas qualquer...argumento que não possamos encontrar no bispo Berkeley6.
Enfim, eis a apreciação sobre o imaterialismo de Berkeley, dada por um manual de história da filosofia utilizado nos liceus:
Teoria ainda imperfeita, sem dúvida, mas admirável, e que deve destruir para sempre, nos espíritos filosóficos, a crença na existência de uma substância material7.
Eis a importância para toda a gente - embora por razões diferentes, como vos foi mostrado por estas citações - de tal raciocínio filosófico.

III. — O idealismo de Berkeley.
O propósito deste sistema consiste, pois, em demonstrar que a matéria não existe. Berkeley dizia:
A matéria não é o que acreditamos, pensando que existe fora do nosso espírito. Pensamos que as coisas existem, porque as vemos, porque lhes tocamos; é porque nos dão essas sensações que acreditamos na sua existência.
Mas as nossas sensações não são mais do que ideias que temos no nosso espírito. Pelo que os objetos que percebemos através dos nossos sentidos mais não são do que ideias, e as ideias não podem existir fora do nosso espírito.
Para Berkeley, as coisas existem; não nega as suas natureza e existência, mas afirma que não existem a não ser sob a forma de sensações que no-las fazem conhecer, e conclui que as nossas sensações e os objetos são  apenas uma e a mesma coisa.
As coisas existem, é certo, mas em nós, diz ele, no nosso espírito, e não têm qualquer realidade fora do espírito.
Concebemos as coisas com o auxílio da vista; percebemos, com a ajuda do tacto; o olfato esclarece-nos sobre o cheiro; o paladar, sobre o gosto; o ouvido, sobre os sons. Estas diversas sensações dão-nos ideias, que, combinadas umas com as outras, nos levam a dar-lhes um nome comum e a considerá-las como objetos.
Observamos, por exemplo, uma cor, um gosto, um cheiro, uma forma, uma consistência determinadas... Reconhecemos esse conjunto como um objeto que designamos com a palavra maçã.
Outras combinações de sensações dão-nos outras coleções de ideias [que] constituem aquilo a que chamamos a pedra, a árvore, o livro e os outros objetos sensíveis8,
Somos, pois, vítimas de ilusões quando pensamos conhecer, como exteriores, o mundo e as coisas, uma vez que tudo isso não existe a não ser no nosso espírito.
No seu livro «Diálogos de Hylas e Philonoüs», Berkeley demonstra-nos esta tese da seguinte maneira:
Não é um absurdo pensar que uma mesma coisa, num dado momento, possa ser diferente? Por exemplo, quente e fria, no mesmo instante? Imaginai, então, que uma das vossas mãos esteja quente, a outra fria, e que ambas sejam mergulhadas, ao mesmo tempo, num recipiente cheio de água, a uma temperatura
intermédia: não parecerá a água quente, a uma das mãos, e fria, à outra9?
Visto que é absurdo acreditar que uma coisa, ao mesmo tempo, possa ser, em si mesma, diferente, devemos concluir que tal coisa não existe a não ser no nosso espírito.
Que faz, pois, Berkeley, no seu método de raciocínio e de discussão? Despoja os objetos, as coisas de todas as suas propriedades.
«Dizeis que os objetos existem, porque têm uma cor, um cheiro, um sabor, porque são grandes ou pequenos, leves ou pesados? Vou demonstrar-vos que tudo isso não existe nos objetos, mas, sim, no nosso espírito.
«Eis um retalho de tecido: dizeis-me que é vermelho. Será isso exato? Pensais que o vermelho faz mesmo parte do tecido. Será isso certo? Sabeis que há animais que têm olhos diferentes dos nossos e não verão vermelho esse tecido; de igual modo, um homem tendo icterícia vê-lo-á amarelo! Então, de que cor é? Isso depende, dizeis? O vermelho não está, portanto, no tecido, mas no olhar, em nós.
«Dizeis que este tecido é leve? Deixai-o cair sobre uma formiga, e ela encontrá-lo-á, certamente, pesado.
Quem tem, portanto, razão? Pensais que é quente? Se estiverdes com febre, encontrá-lo-eis frio! Então, é quente ou frio?
«Numa palavra, se as mesmas coisas podem ser, a um tempo, para uns, vermelhas, pesadas, quentes, e, para outros, exatamente o contrário, é porque somos vítimas de ilusões, e porque as coisas não existem para além do nosso espírito».
Retirando todas as suas propriedades aos objetos, chegamos, por conseguinte, a dizer que estes não existem a não ser no nosso pensamento, isto é, que a matéria é uma ideia.
Já, antes de Berkeley, os filósofos gregos diziam, e isso era exato, que certas qualidades, como o sabor, o som, não estavam mesmo nas coisas, mas em nós.
Porém, o que há de novo na teoria de Berkeley é, justamente, que ele alarga esta advertência a toda a espécie de objetos.
Os filósofos gregos tinham, com efeito, estabelecido entre as qualidades das coisas a seguinte distinção: Por um lado, as qualidades primeiras, isto é, as que estão nos objetos, como o peso, o tamanho, a resistência, etc..
Por outro, as qualidades segundas, isto é, as que estão em nós, como o cheiro, o sabor, o calor, etc.
Ora, Berkeley aplica às qualidades primeiras a mesma tese que às segundas: todas as qualidades, todas as propriedades não estão nos objetos, mas em nós.
Se olhamos o sol, vêmo-lo redondo, achatado, vermelho. A ciência ensina-nos que nos enganamos, que não é achatado, não é vermelho. Faremos, portanto, a abstração, com o auxílio da ciência, de certas falsas propriedades que atribuímos ao sol, mas sem, com isso, concluir que não existe! É, pois, a uma tal conclusão que Berkeley conduz.
Berkeley não teve certamente culpa, mostrando que a distinção dos antigos não resistia à análise científica, mas comete uma falta de raciocínio, um sofisma, tirando de tais observações consequências que não comportam. Mostra, com efeito, que as qualidades das coisas não são exatamente como no-las mostram os
nossos sentidos, isto é, que estes nos enganam e deformam a realidade material, e, daí, conclui, imediatamente, que a realidade material não existe.

IV. — Conseqüências dos raciocínios idealistas.
Sendo a tese: «Nada existe senão no nosso espírito», devemos concluir que o mundo exterior não existe.
Levando este raciocínio até ao fim, chegaríamos a dizer: «Sou o único a existir, uma vez que não conheço os outros homens a não ser pelas minhas ideias, que eles não são para mim, como objetos materiais, mais do que coleções de ideias». É o que em filosofia se chama o solipsismo (que quer dizer apenas eu).
Berkeley, diz-nos Lenine no seu livro já citado, defende-se instintivamente contra a acusação de sustentar
uma tal teoria. Constata-se mesmo que o solipsismo, forma extrema do idealismo, não foi defendido por nenhum filósofo.
É por isso que devemos interessar-nos, discutindo com os idealistas, em tomar bem patente que os raciocínios que negam efetivamente a matéria, para serem lógicos e conseqüentes, devem chegar a esse extremo absurdo que é o solipsismo.

V. — Os argumentos idealistas.
Dedicamos a resumir, o mais simplesmente possível, a teoria de Berkeley, porque foi quem mais abertamente expôs o que é o idealismo filosófico.
Mas é certo que, para melhor compreender estes raciocínios, que são novos para nós, é agora indispensável tomá-los muito a serio e fazer um esforço intelectual. Porquê?
Porque veremos em seguida que, se o idealismo se apresenta de uma maneira mais oculta e a coberto de palavras e expressões novas, todas as filosofias idealistas mais não fazem do que retomar os argumentos do «velho Berkeley» (Lenine).
Porque veremos também quanto a filosofia idealista, que dominou, e domina ainda a história oficial da filosofia, trazendo consigo um método de pensamento de que estamos impregnados, soube penetrar-nos, apesar de uma educação inteiramente laica.
Sendo os raciocínios do bispo Berkeley a base dos argumentos de todas as filosofias idealistas, vamos, pois, para resumir este capítulo, procurar esclarecer quais são, e o que tentam demonstrar-nos.
1. O espírito cria a matéria .
Esta, sabemo-lo, a resposta idealista à pergunta fundamental da filosofia; é a primeira forma do idealismo, que se reflete nas diferentes religiões, onde se afirma que o espírito criou o mundo.
Tal afirmação pode ter dois sentidos:
Ou Deus criou o mundo, e este existe, realmente à nossa volta. É o idealismo comum às teologias10.
Ou Deus criou a ilusão do mundo, dando-nos ideias que não correspondem a qualquer realidade material. É o «idealismo imaterialista» de Berkeley, que nos quer provar que o espírito é a única realidade, sendo a matéria um produto fabricado por este.
É por isso que os idealistas afirmam que:
2. O mundo não existe fora do nosso pensamento.
É o que Berkeley quer demonstrar-nos, afirmando que cometemos um erro, atribuindo às coisas propriedades e qualidades que lhes seriam próprias, quando estas existem apenas no nosso espírito.
Para os idealistas, os bancos e as mesas existem, na verdade, mas somente no nosso pensamento, e não em redor de nós, por que
3. São as nossas ideias que criam as coisas .
Por outras palavras, as coisas são o reflexo do nosso pensamento. Com efeito, uma vez que é o espírito que cria a ilusão da matéria, uma vez que é aquele que dá ao nosso pensamento a ideia desta, uma vez que as sensações que experimentamos perante as coisas não provêm destas em si, mas, unicamente, do nosso pensamento, a origem da realidade do mundo e das coisas é o nosso pensamento, e, por consequência, tudo o que nos rodeia não existe fora do nosso espírito, e não pode ser senão o reflexo do nosso pensamento. Mas, como, para Berkeley, o nosso espírito seria incapaz de criar, só por si, estas ideias, e, por outro lado, não faz o que quer (como aconteceria se ele próprio as criasse), é preciso admitir que é um outro espírito mais poderoso o criador. É, pois, Deus que cria o nosso espírito e nos impõe todas as ideias do mundo que aí encontramos.
Eis as principais teses sobre as quais repousam as doutrinas idealistas e as repostas que dão à pergunta fundamental da filosofia. É altura de ver agora qual a resposta da filosofia materialista à mesma pergunta e aos problemas suscitados por estas teses.

(8 LÉNINE: «Materialismo e empirocriticismo», p. 18 Ed. Avante 1982)
(9 LÉNINE: «Materialismo e empirocriticismo» Ed. Avante 1982)

BERKELEY: “Diálogos de Hylas e Philonoüs”
LÉNINE: “Materialismo e empirocriticismo”, pp. 17 a 29
10 A teologia é a «ciência» (!) que se ocupa de Deus e das coisas divinas.
Próximo capitulo: O MATERIALISMO

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