QUEM TEM RAZÃO, O
IDEALISMO OU O MATERIALISMO?
I. — Como devemos pôr
o problema.
II. — É verdade que o
mundo existe apenas no nosso pensamento?
III. — É verdade que
são as nossas ideias que criam as coisas?
IV. — É verdade que o
espírito cria a matéria?
V. — Os materialistas
têm razão, e a ciência prova as suas afirmações.
I.
— Como devemos pôr o problema.
Agora, que conhecemos
as teses dos idealistas e dos materialistas, vamos tentar saber quem tem razão.
Recordemos que nos é
preciso, primeiramente, constatar, por um lado, que elas são absolutamente
opostas e contraditórias; por outro, que, logo que se defende uma ou outra
teoria, esta nos leva a conclusões que, pelas suas consequências, são muito
importantes.
Para saber quem tem
razão, devemos reportar-nos aos três pontos pelos quais resumimos cada
argumentação.
Os idealistas
afirmam:
1. Que é o espírito
que cria a matéria;
2. Que a matéria não
existe fora do nosso pensamento, que é, portanto, para nós, apenas uma ilusão;
3. Que são as nossas
ideias que criam as coisas. Os materialistas, esses afirmam exatamente o
contrário.
Para facilitar o
nosso trabalho, é preciso, em primeiro lugar, estudar o que é sobremaneira
evidente e o que mais nos surpreende.
1. É verdade que o
mundo não existe senão nO nosso pensamento?
2. É verdade que são
as nossas ideias que criam as coisas?
Eis dois argumentos
defendidos pelo idealismo «imaterialista» de Berkeley, cujas conclusões
terminam, como em todas as teologias, na nossa terceira pergunta:
3. É verdade que o
espírito cria a matéria? São perguntas muito importantes, uma vez que se
relacionam com o problema fundamental da filosofia. É, por consequência,
discutindo-as que vamos saber quem tem razão; são particularmente interessantes
para os materialistas, no sentido em que as suas respostas a tais perguntas são
comuns a todas as
filosofias materialistas - e, por consequência, ao materialismo dialético
.
II.
— É verdade que o mundo existe
apertas no nosso pensamento?
Antes de estudar esta
questão, é-nos necessário situar dois termos filosóficos de que somos chamados
a servir-nos e encontraremos freqüentemente nas nossas leituras.
Realidade
subjetiva (que quer dizer: realidade que existe somente no nosso
pensamento).
Realidade
objetiva (realidade que existe fora do nosso pensamento).
Os idealistas dizem
que o mundo não é uma realidade objetiva, mas subjetiva.
Os materialistas
dizem que o mundo é uma realidade objetiva.
Para nos demonstrar
que o mundo e as coisas não existem a não ser no nosso pensamento, o bispo
Berkeley decompõe nas suas propriedades (cor, tamanho, densidade, etc).
Demonstra-nos que estas, propriedades, que variam consoante os indivíduos, não
estão nas próprias coisas, mas no espírito de cada um de nós.
Deduziu, pois, que a
matéria é um conjunto de propriedades não objetivas, mas subjetivas, e que, por
consequência, não existe.
Se retomarmos o
exemplo do sol, Berkeley pergunta-nos se acreditamos na realidade objetiva do
disco vermelho, e demonstra-nos, com o seu método de discussão das
propriedades, que não é vermelho nem um disco. Não é, portanto, uma realidade
objetiva, porque não existe por si próprio, mas uma simples realidade
subjetiva, uma vez que existe apenas no nosso pensamento.
Mesmo assim, os
materialistas afirmam que o sol existe, não porque o vemos como um disco
achatado e vermelho, porque isso é realismo ingênuo, o das crianças e dos
primeiros homens, que não tinham senão os seus sentidos para controlar a
realidade, mas afirmam que existe invocando a ciência. Esta permite-nos, com
efeito, retificar os erros que os sentidos nos fazem cometer.
Mas devemos, neste
exemplo do sol, pôr claramente o problema.
Com Berkeley, diremos
que não é um disco e que não é vermelho, mas não aceitamos as suas conclusões:
a sua negação como realidade objetiva.
Não pomos em causa as
propriedades das coisas, mas a sua existência.
Não discutimos para
saber se os sentidos nos enganam e deformam a realidade material, mas se esta
existe fora deles.
Pois bem! os
materialistas afirmam a sua existência fora de nós, e fornecem argumentos que
são a própria ciência.
Que fazem os
idealistas para nos demonstrar que têm razão? Discutem as palavras, fazem
grandes discursos, escrevem numerosas páginas.
(Suponhamos, por um
instante, que têm razão. Se o mundo existe apenas no nosso pensamento, não
existiu antes dos homens. Sabemos que isso é falso, uma vez que a ciência nos
demonstra que o homem apareceu muito mais tarde sobre a terra. Certos
idealistas dir-nos-ão, então, que, antes dele, havia os animais, e que o
pensamento podia habitá-los. Mas sabemos que, antes dos animais, existia uma
terra inabitável, na qual nenhuma vida orgânica era possível. Outros, ainda,
dir-nos-ão que, mesmo que apenas existisse o sistema solar, e o homem ainda
não, o pensamento, o espírito já existiam em Deus. É assim que chegamos à forma
suprema do idealismo. É-nos preciso escolher entre Deus e a ciência. O
idealismo não pode manter-se sem Deus, e Deus não pode existir sem o idealismo.
Eis, pois, exatamente
como deve ser posto o problema do idealismo e do materialismo. Quem tem razão?
Deus ou a ciência?
Deus é um puro
espírito criador da matéria, uma afirmação sem prova.
A ciência vai
demonstrar-nos, pela prática e pela experiência, que o mundo é uma realidade
objetiva, e vai permitir-nos responder à pergunta:
III.
— É verdade que são as nossas
ideias que criam as coisas?
Tomemos, como
exemplo, um automóvel que passa no momento em que atravessamos a rua em
companhia de um idealista, com quem discutimos para saber se as coisas têm uma
realidade objetiva ou subjetiva, e se é verdade que são as nossas ideias que as
criam. É bem certo que, se não quisermos ser esmagados,
prestaremos muita
atenção. Portanto, na prática, o idealista é obrigado a reconhecer a existência
do automóvel. Para ele, praticamente, não há diferença entre um automóvel
objetivo e um outro subjetivo sendo isto de tal modo exato, que a prática
fornece a prova de que os idealistas, na vida, são materialistas.
Poderíamos, sobre
este assunto, citar numerosos exemplos, pelos quais veríamos que os filósofos
idealistas e os que sustentam tal filosofia não desdenham certas baixezas
«objetivas», para obter o que, para eles, não é mais que realidade subjetiva.
É por isso, aliás,
que não se vê mais ninguém afirmar, como Berkeley, que o mundo não existe. Os
argumentos são muito mais subtis e ocultos. (Consultai, como exemplo do modo de
argumentar dos idealistas, o capítulo intitulado A
descoberta dos elementos do mundo, no livro de Lenine: «Materialismo e
empirocriticismo»15).
É, pois, segundo a
palavra de Lenine, «o critério da prática» que nos permitirá confundir os
idealistas.
Estes, por outro
lado, não deixarão de dizer que a teoria e a prática não se identificam, e que
são duas coisas completamente diferentes. Não é verdade. Se uma concepção é
exata ou falsa, é só a prática que, pela experiência, no-lo demonstrará.
O exemplo do automóvel
mostra que o mundo tem, pois, uma realidade objetiva e não é uma ilusão criada
pelo nosso espírito.
Resta-nos ver agora,
sendo dado que a teoria do imaterialismo de Berkeley não pode manter-se face às
ciências, nem resistir ao critério da prática, se, como o afirmam todas as
conclusões das filosofias idealistas, das religiões e
das teologias, o espírito cria a matéria.
IV.
— É verdade que o espírito
cria a matéria?
Como já foi visto, o
espírito, para os idealistas, tem a sua forma suprema em Deus. Ele é a resposta
final, a conclusão da sua teoria, e é por isso que o problema espírito-matéria
se põe em última análise, saber quem, do idealista ou do
materialista tem razão, sob a forma do problema: «Deus ou a ciência».
Os idealistas afirmam
que Deus existiu desde sempre, e que, não tendo sofrido qualquer mudança, é
sempre o mesmo. É o espírito puro, para quem o tempo e o espaço não existem. É
o criador da matéria.
Nem mesmo para
sustentar a sua afirmação de Deus, os idealistas apresentam qualquer argumento.
Para defender o
criador da matéria, recorreram a uma profusão de mistérios, que um espírito
científico não pode aceitar.
Quando se remonta às
origens da ciência, e se vê que é pelo coração e proporcionalmente à sua grande
ignorância que os homens primitivos forjaram no seu espírito a ideia de Deus,
constata-se que os idealistas do século XXI continuam, como os primeiros
homens, a ignorar tudo o que um trabalho paciente e perseverante permitiu
conhecer. (Porque, no fim de contas, Deus, para os idealistas, não pode
explicar-se, e continua a ser para eles uma crença sem
qualquer prova. Quando os idealistas nos querem «provar» a necessidade de uma
criação do mundo, dizendo que a matéria não pôde existir sempre, que foi, na
verdade, necessário que tenha tido um começo, recorrem a um Deus que, ele,
nunca teve princípio. Em que é mais
clara esta
explicação?
Para sustentar os
seus argumentos, os materialistas, pelo contrário, servir-se-ão da ciência, que
os homens desenvolveram à medida que faziam recuar as «fronteiras da sua
ignorância».
Ora, a ciência
permite-nos pensar que o espírito tenha criado a matéria? Não.
15
Cap. I, § 2, p. 40 e seguintes.
A ideia de uma
criação por um espírito puro é incompreensível, porque não conhecemos nada de
semelhante na experiência. Para que tal fosse possível, seria preciso, como
dizem os idealistas, que o espírito existisse só, antes da matéria, enquanto
que a ciência nos demonstra que isso não é possível e que nunca há aquele
sem esta. Pelo
contrário, o espírito está sempre ligado à matéria, e constatamos, mais
particularmente, que o espírito do homem está ligado ao cérebro, que é a fonte
das nossas ideias e do nosso pensamento. A ciência não nos permite conceber que
as ideias existem no vazio...
Seria necessário,
portanto, que o espírito Deus, para que possa existir, tenha um cérebro. É por
isso que podemos dizer que não foi Deus que criou a matéria, o homem, portanto,
mas que foi a matéria, sob a forma do cérebro humano, que criou o espírito
Deus.
Veremos, mais
adiante, se a ciência nos dá a possibilidade de acreditar num Deus, ou em
qualquer coisa sobre a. qual o tempo não teria efeito, e para quem o espaço, o
movimento e a mudança não existiriam.
Para já, podemos
concluir. Na sua resposta ao problema fundamental da filosofia:
V.
— Os materialistas têm razão,
e a ciência prova as suas afirmações.
Os materialistas têm
razão, ao afirmar:
1. Contra o idealismo
de Berkeley e os filósofos que se escondem atrás do seu imaterialismo: que o
mundo e as coisas, por um lado, existem, na verdade, fora do nosso pensamento,
e não precisam dele para existir; por outro, que não são as nossas ideias que
criam as coisas, mas, ao contrário, são estas que nos dão aquelas.
2. Contra todas as
filosofias idealistas, porque as suas conclusões levam a afirmar a criação da
matéria pelo espírito, isto é, em última instância, a afirmar a existência de
Deus, e a sustentar as teologias; os materialistas, apoiando-se nas ciências,
afirmam e provam que é a matéria que cria o espírito, e que não necessitam da
«hipótese Deus» para explicar a criação da matéria.
Nota
- Devemos prestar atenção à maneira como os idealistas põem os
problemas. Afirmam que Deus criou o homem, quando vemos que foi este que criou
Deus. Afirmam também, por outro lado, que foi o espírito que criou a matéria,
quando vemos que foi, na verdade, exatamente ao contrário. Há nisso uma maneira
de inverter as perspectivas, que devíamos assinalar.
LEITURAS
LENINE:
«Materialismo e empirocritirismo», p. 52: A
natutureza existia antes do homem?; pp. 62 a
65: O homem pensa com o cérebro?
ENGELS:
«Ludwig Feuerbach», Idealismo e materialismo, p.
14.15 Cap. I, § 2, p. 40 e seguintes
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