HISTÓRIA
DO MATERIALISMO -
I. — Necessidade de
estudar essa história.
II. — O materialismo
pré-marxista:
1. A antiguidade
grega.
2. O materialismo
inglês.
3. O materialismo na França.
4. O materialismo no
século XVIII.
III. — De onde vem o
idealismo?
IV. — De onde vem a
religião?
V. — Os méritos do
materialismo pré-marxista.
VI. — Os defeitos do
materialismo pré-marxista.
Estudamos, até aqui,
o que é o materialismo em geral e quais são as ideias comuns a todos
os materialistas.
Vamos ver, agora,
como evoluiu desde a antiguidade, até chegar ao materialismo moderno. Em poucas
palavras, vamos seguir rapidamente a história do materialismo.
Não temos a pretensão
de explicar, em tão poucas páginas, os 2000 anos de história do materialismo;
queremos, simplesmente, dar indicações gerais, que guiarão as leituras.
Para estudar bem,
mesmo sumariamente, essa história, é indispensável ver, a cada instante, porque
razão as coisas se desenrolaram assim. Mais valeria não citar
certos nomes históricos, do que não aplicar este método.
Mas, mesmo não
querendo sobrecarregar o cérebro dos nossos leitores, pensamos que é necessário
nomear, por ordem histórica, os principais filósofos materialistas mais ou
menos seus conhecidos.
É por isso que, para
simplificar o trabalho, vamos consagrar estas primeiras páginas ao lado
puramente histórico, pois, na segunda parte deste capítulo, veremos porque é
que a evolução do materialismo teve que suportar
a forma de desenvolvimento que conheceu.
I.
— Necessidade de estudar essa
história.
A
burguesia não gosta da história do materialismo, e é por
isso que, ensinada nos livros burgueses, é inteiramente incompleta e sempre
falsa. Empregam-se diversos processos de falsificação:
1. Não podendo
ignorar os grandes pensadores materialistas, nomeiam-nos falando de tudo o que
escreveram, salvo dos
seus estudos materialistas, e esquecem-se de
dizer que são filósofos materialistas.
Há muitos destes
casos de esquecimento na
história da filosofia, tal como é ensinada nos liceus ou na Universidade, e
citaremos, como exemplo, Diderot, que foi o imaior
pensador materialista antes de Marx e Engels.
2. Houve, no decurso
da história, numerosos pensadores que foram materialistas sem o saber, ou inconseqüentes.
Quer dizer, em alguns dos seus escritos, eram materialistas, noutros,
idealistas: Descartes, por exemplo.
Ora, a história
escrita pela burguesia deixa na sombra tudo o que, nesses pensadores, tem, não
somente influenciado o materialismo, mas dado origem a toda uma corrente desta
filosofia.
3. Portanto, se estes
dois processos de falsificação não conseguem camuflar certos autores,
suprimem-nos, pura e simplesmente.
É assim que se ensina
a história da literatura e da filosofia do século XVIII, ignorando d'Holbach e Helvétius, que foram
grandes pensadores dessa época.
Por que é assim?
Porque a história do materialismo é particularmente instrutiva para conhecer e
compreender os problemas do mundo; e, também, porque o desenvolvimento do materialismo
é funesto às ideologias que sustentam os privilégios das classes dirigentes.
São estas as razões
pelas quais a burguesia apresenta o materialismo como uma doutrina que,
congelada desde há vinte séculos, não mudou, quando, pelo contrário, o materialismo
foi qualquer coisa de vivo e sempre em movimento.
Tal
como o idealismo passou por toda uma série de fases de desenvolvimento, o mesmo
acontece com o materialismo. Com cada descoberta que faz época no domínio das
ciências naturais, é-lhe necessário modificar a sua forma.29
Compreendemos agora
melhor a necessidade de estudar, mesmo sumariamente, essa história do
materialismo. Para o fazer, devemos distinguir dois períodos: 1.°, da origem
(antiguidade grega) até Marx e Engels; 2.°, do materialismo de Marx e Engels
aos nossos dias. (Estudaremos esta segunda parte com o materialismo dialético.)
Chamamos ao primeiro
período «materialismo pré-marxista» e ao segundo «materialismo marxista», ou
«materialismo dialético».
II.
— O materialismo pré-marxista.
1. A
antiguidade grega.
Recordamos que o
materialismo é uma doutrina que esteve sempre ligada às ciências, que evoluiu e
progrediu com elas. Logo que, na antiguidade grega, nos séculos IV e V antes da
nossa era, as ciências começaram a manifestar-se com os «físicos», forma-se,
nesse momento, uma corrente materialista que atrai os melhores pensadores e
filósofos dessa época (Tales, Anaximene, Heráclito). Esses primeiros filósofos
serão, como disse Engels, «naturalmente dialéticos». Ficam realmente surpreendidos
por acharem em tudo o movimento, a mudança, e que as coisas não estão isoladas,
mas intimamente ligadas umas às outras...
Heráclito, a quem se
chama o «pai da dialética», dizia: Nada é imóvel; tudo corre; nunca nos
banhamos duas vezes no mesmo rio, porque ele nunca é, em dois momentos
sucessivos, o mesmo: de um momento ao outro, mudou; tornou-se outro.
Heráclito, o
primeiro, procura explicar o movimento, a mudança, e vê na contradição
as razões da evolução das coisas.
As concepções destes
primeiros filósofos estavam certas, e se foram abandonadas foi porque tinham o
senão de serem formuladas à priori, isto
é, o estado das ciências dessa época não permitia provar o que eles
antecipavam. Por outro lado, as condições sociais necessárias ao
desenvolvimento da dialética (veremos, mais adiante, quais são) não estavam
ainda realizadas.
É só muito mais
tarde, no século XX, que as condições (sociais e intelectuais), permitindo às
ciências provar a exatidão da dialética, serão realizadas.
Outros pensadores
gregos tiveram concepções materialistas: Leucipo (século V antes da nossa era),
que foi o mestre de Demócrito, discutia já esse problema dos átomos de que
vimos a teoria estabelecida por este último.
Epicuro (341-270
antes da nossa era), discípulo de Demócrito, é um grande pensador cuja
filosofia foi completamente falsificada pela Igreja, na idade média.
Por antipatia ao
materialismo filosófico, esta apresentou a doutrina epicurista como uma
doutrina profundamente imoral, como uma apologia das mais baixas paixões. Na
realidade, Epicuro era um asceta, e a sua filosofia visa dar um fundamento
científico (portanto anti-religioso) à vida humana.
Todos esses filósofos
tinham consciência de que a filosofia estava ligada ao destino da humanidade, e
constatamos já, por parte deles, uma oposição à teoria oficial; oposição entre
o idealismo e o materialismo.
Mas um grande
pensador domina a Grécia antiga: é Aristóteles, que era acima de tudo
idealista. A sua influência foi considerável. E é por isso que devemos citá-lo
muito particularmente. Organizou o inventário dos conhecimentos humanos dessa
época, cheio das lacunas criadas pelas ciências novas. Espírito universal,
escreveu numerosos livros, sobre todos os assuntos. Pela universalidade do seu
saber, de que retivemos apenas as tendências idealistas, negligenciando os seus
aspectos materialistas e científicos, teve sobre as concepções filosóficas uma
influência considerável até ao fim da idade média, isto é, durante vinte
séculos.
Durante todo este
período, seguiu-se, pois, a tradição antiga, e pensava-se apenas por
Aristóteles. Uma repressão selvagem procedia cruelmente contra os que pensavam
de maneira diferente. Apesar de tudo, pelo fim da idade média, uma luta se
estabeleceu entre os idealistas que negavam a matéria e os que pensavam que
existia uma realidade material.
Nos séculos XI e XII,
esta disputa prosseguiu na França e, sobretudo, na Inglaterra.
De início, é
principalmente neste último país que o materialismo se desenvolve. Marx disse:
O materialismo é o verdadeiro filho da Grã-Bretanha30.
Um pouco mais tarde,
é na França que o materialismo se expandirá. Em todo o caso, vemos, nos séculos
XV e XVI, manifestarem-se duas correntes: uma, o materialismo inglês, a outra,
o materialismo francês, cuja reunião contribuirá para o prodigioso
desenvolvimento do materialismo no século XVIII.
2. O
materialismo inglês .
O autêntico pai do
materialismo inglês e de toda a ciência experimental moderna é Bacon. A ciência
da natureza é, aos seus olhos, a verdadeira ciência, e a física, baseada na
experiência sensível, é a parte fundamental mais nobre31.
Bacon é célebre como
fundador do método experimental no estudo das ciências. O importante, para ele,
é estudar a ciência no «grande livro da natureza», e isso é particularmente
interessante numa época em que se estuda a ciência nos
livros que Aristóteles deixara alguns anos antes.
Para estudar a
física, por exemplo, eis como se procedia: sobre um certo assunto, tomava-se as
passagens escritas por Aristóteles; em seguida, pegava-se nos livros de S.
Tomás de Aquino, que era um grande teólogo, e lia-se o que este último
escrevera sobre a passagem de Aristóteles. O professor não fazia comentário
pessoal, ainda menos dizia o que pensava, mas reportava-se a uma terceira obra,
que repetia Aristóteles e S. Tomás. Era isto a ciência da idade média, a que se
chamou escolástica: era uma ciência livresca, porque
se estudava somente nos livros.
É contra esta
escolástica, este ensinamento congelado, que Bacon reagiu, chamando a estudar
no «grande livro da natureza».
Nessa época, uma
pergunta se punha:
De onde vêm as nossas
ideias? de onde vêm os nossos conhecimentos? Cada um de nós tem ideias, a ideia
de casa, por exemplo. Esta ocorre-nos porque há casas, dizem os materialistas.
Os idealistas pensam que é Deus que nos dá a ideia de casa. Bacon, esse dizia
que a ideia apenas existia porque se viam ou tocavam as coisas, mas não podia
ainda demonstrá-lo.
É Locke (1632-1704)
que tentou demonstrar como as ideias provêm da experiência. Mostrou que todas
vêm da experiência, e que só esta nos dá aquelas. A ideia da primeira mesa veio
ao homem antes que ela existisse, porque, pela experiência, se servia já de um
tronco de árvore ou de uma pedra como mesa.
Com as ideias de
Locke, entra em França, na primeira metade do século XVIII, o materialismo
inglês, porque, enquanto esta filosofia se desenvolvia de um modo particular na
Inglaterra, aparecera uma corrente materialista em França.
3. O
materialismo na França .
Pode situar-se a
partir de Descartes (1596-1650) o nascimento na França de uma corrente
nitidamente materialista. Descartes teve uma grande influência nesta filosofia,
mas, em geral, não se fala nisso!
Nessa época em que a
ideologia feudal estava muito viva, até nas ciências, em que se estudava de
modo escolástico, como vimos, Descartes entra em luta contra tal estado de
coisas.
A ideologia feudal
está impregnada de mentalidade religiosa. Considera, portanto, que a Igreja,
representando Deus na terra, tem o monopólio da verdade. Resulta disso que
nenhum homem pode pretender a verdade, se não subordina o seu pensamento aos
ensinamentos da Igreja. Descartes rebate os argumentos desta concepção. Não se
opõe, certamente, à Igreja como tal, mas professa ousadamente que todo o homem,
crente ou não, pode
chegar à verdade pelo exercício da razão (a «luz natural»).
Descartes declara
desde o princípio do seu «Discurso do método»: «O bom senso é a coisa mais bem
dividida do mundo». Por consequência, toda a gente, perante a ciência, tem os
mesmo direitos. E se faz, por exemplo, uma boa crítica da medicina do seu tempo
(o «Doente imaginário», de Molière, é um eco das críticas de Descartes), é
porque quer fazer uma ciência que seja verdadeira, baseada no estudo da
natureza e
rejeitando a ensinada
até ele, em que Aristóteles e S. Tomás eram os únicos «argumentos».
Descartes vivia no
começo do século XVII; no século seguinte, a Revolução ia rebentar, e é por
isso que se pode dizer dele que sai de um mundo que vai desaparecer, para
entrar num mundo novo, naquele que vai nascer. Esta posição faz com que
Descartes seja um conciliador; quer criar uma ciência materialista e, ao
mesmo tempo, é
idealista, porque quer salvar a religião.
Quando, na sua época,
se perguntava: por que há animais que vivem?, respondia-se, segundo as
respostas definitivas da teologia: porque há um princípio que os faz viver.
Descartes, pelo contrário, sustentava que as leis da vida animal são
simplesmente da matéria. Acreditava, aliás, e afirmava que os animais são
apenas máquinas de carne e músculos, como as outras máquinas são de ferro e
madeira. Pensava mesmo que uns e outras não tinham sensações, e quando, na
abadia de Port-Royal, durante as semanas de estudos, homens que se valiam da
sua filosofia picavam cães, diziam: «Como a natureza está bem feita, dir-se-ia
que sofrem!...».
Para o Descartes
materialista, os animais aram, portanto, máquinas. Mas o homem, esse é
diferente, porque tem uma alma, diz o Descartes idealista...
Das ideias
desenvolvidas e defendidas por Descartes, vão nascer, por um lado, uma corrente
filosófica nitidamente materialista e, por outro, uma idealista.
Entre os que
continuam o ramo cartesiano materialista, retemos La Mettrie (1709-1751).
Retomando essa tese do animal-máquina, estende-a até ao homem.
Por que não seria
este uma máquina?... A própria alma humana, vê-a como uma mecânica em que as
ideias seriam movimentos mecânicos.
É nessa época que
penetra na França, com as ideias de Locke, o materialismo inglês. Da junção
dessas duas correntes vai nascer um materialismo mais evoluído. Será:
4. O
materialismo do século XVIII .
Este materialismo foi
defendido por filósofos que souberam também ser lutadores e escritores
admiráveis; criticando continuamente as instituições sociais e a religião,
aplicando a teoria à prática, e sempre em luta com o poder, foram, por vezes,
encerrados na Bastilha ou em Vincennes.
Foram eles que
reuniram os seus trabalhos na grande «Enciclopédia», onde fixam a nova
orientação do materialismo. Tiveram, aliás, uma grande influência, uma vez que
esta filosofia era, como o diz Engels, «a condição de toda a juventude culta».
Foi mesmo, na
história da filosofia na França, a única época em que uma filosofia, tendo um
caráter francês, se tornou verdadeiramente popular.
Diderot, nascido em
Langres em 1713, morto em Paris em 1784, domina todo esse movimento. O que é
preciso dizer, antes de mais, e que a história burguesa não refere, é que foi,
antes de Marx e Engels, o maior pensador materialista. Diderot, disse Lenine,
chega quase às conclusões do materialismo
contemporâneo (dialético).
Foi um verdadeiro
militante; sempre em luta contra a Igreja, contra o estado social, conheceu os
cárceres. A história escrita pela burguesia contemporânea suprimiu-o muito. Mas
é preciso ler «Conversas de Diderot e d'Alembert», «Sobrinho de Rameau»,
«Jaime, o fatalista» para compreender a enorme influência de Diderot
sobre o materialismo32.
Na primeira metade do
século XIX, por causa dos acontecimentos históricos, constatamos um retrocesso
do materialismo. A burguesia de todos os países faz uma grande propaganda em
favor do idealismo e da religião, porque, não só já não quer que se propaguem
as ideias progressistas (materialistas), mas, ainda, precisa adormecer os
pensadores e as massas, para se manter no poder.
É então que vemos, na
Alemanha, Feuerbach afirmar, no meio de todos os filósofos idealistas, as suas
convicções materialistas, repondo, solidamente, de novo o
materialismo no trono33.
Desenvolvendo
essencialmente uma crítica da religião, retoma, de uma maneira justa e atual,
as bases do materialismo, que tinham sido esquecidas, e influencia, assim, os
filósofos da sua época.
Chegamos ao período
do século XIX em que se constata um progresso enorme nas ciências, devido,
particularmente, a estas três grandes descobertas: a célula viva, a transformação
da energia, a evolução (de Darwin)34,
que vão permitir a Marx e Engels, influenciados por Feuerbach, fazer evoluir o
materialismo, para nos dar o materialismo moderno, ou dialético.
Acabamos de ver, de
um modo inteiramente sumário, a história do materialismo antes de Marx e
Engels.
Sabemos que, se
estavam de acordo com os materialistas que os precederam sobre numerosos pontos
comuns, julgaram também, pelo contrário, que a Obra destes apresentava
numerosos defeitos e lacunas.
Para compreender as
transformações por eles trazidas ao materialismo pré-marxista é, portanto,
absolutamente necessário investigar quais foram esses defeitos e lacunas, e porque
foi assim.
Por outras palavras,
o nosso estudo da história do materialismo ficaria incompleto se, depois de
enumerar os diferentes pensadores que contribuíram para fazer progredir o
materialismo, não procurássemos saber como e em que sentido se efetuou esse
avanço, e porque razão sofreu esta ou aquela forma de evolução.
Interessamo-nos
particularmente pelo materialismo do século XVIII, porque foi o resultado das
diferentes correntes desta filosofia.
Vamos, pois, estudar
quais eram os erros desse materialismo, quais foram as suas lacunas, porém,
como nunca devemos ver as coisas de um modo unilateral, mas, pelo contrário, no
seu conjunto, sublinharemos, também, quais foram os seus méritos.
O materialismo,
dialético nas suas origens, não pôde continuar a desenvolver-se nessas bases. O
raciocínio dialético, por causa da insuficiência dos conhecimentos científicos,
teve que ser abandonado. Era preciso, primeiro, criar e desenvolver as
ciências.
Era preciso saber,
primeiro, o que era esta ou aquela coisa, antes de poder estudar os processos35.
É, portanto, a união
muito íntima do materialismo e da ciência que permitirá a esta filosofia voltar
a ser de novo, em bases mais sólidas e científicas, o materialismo dialético, o
de Marx e Engels.
Encontraremos, pois,
o ato de nascimento do materialismo ao lado do da ciência. Mas, se reconhecemos
sempre de onde vem o materialismo, devemos estabelecer, também, de onde vem o
idealismo.
III.
— De onde vem o idealismo?
Se, no decurso da
história, o idealismo pôde existir ao lado da religião, tolerado e aprovado por
ela, é um fato que nasceu e provém da religião.
Lenine escreveu, a
esse respeito, uma fórmula que devemos estudar: «O idealismo não é mais do que
uma forma apurada e refinada da religião». O que é que isso quer dizer? Isto: o
idealismo sabe apresentar as suas concepções muito mais agilmente do que a
religião. Pretende que o universo foi criado por um espírito que pairava sobre
as trevas, que Deus é imaterial, para depois, bruscamente, como o faz a
religião, declarar que fala (pelo Verbo) e tem um filho (Jesus); é esta uma
série de ideias apresentadas brutalmente.
O idealismo,
afirmando que o mundo existe apenas no nosso pensamento, no nosso espírito,
apresenta-se de uma maneira mais subtil. De fato, sabêmo-lo, vem tudo a dar na
mesma, quanto ao fundamento, mas a forma é menos brutal, mais elegante. É por
isso que o idealismo é uma forma mais apurada da religião.
Também é refinada,
porque os filósofos idealistas sabem, nas discussões, prever as perguntas,
estender as armadilhas, como Philonous ao pobre Hylas, nos diálogos de
Berkeley.
Mas dizer que o
idealismo provém da religião é simplesmente afastar o problema, e devemos
perguntar imediatamente:
IV.
— De onde vem a religião?
Engels deu-nos, sobre
este assunto, uma resposta muito clara: «A religião nasce das concepções
restritas do homem». (Restrito é tomado, aqui, no sentido de limitado.)
Para os primeiros
homens, esta ignorância é dupla: ignorância da natureza, ignorância deles
próprios. É preciso pensar constantemente nessa dupla ignorância, quando se
estuda a história dos homens primitivos.
Na antiguidade grega,
que consideramos já como uma civilização avançada, tal ignorância parece-nos
infantil, por exemplo, quando se vê que Aristóteles pensava que a terra era
imóvel, que era o centro do mundo, e à sua volta giravam planetas. (Estes, que
via em número de 46, estavam fixos, como pregos num teto, e era esse conjunto
que girava à volta da terra...)
Os Gregos pensavam,
também, que havia quatro elementos: a água, a terra, o ar e o fogo, e que não
era possível decompô-los. Sabemos que tudo isso é falso, uma vez que decompomos,
agora, a água, a terra e o ar, não considerando o fogo como um corpo da mesma
ordem.
Acerca do próprio
homem, os Gregos eram também muito ignorantes, uma vez que não conheciam a
função dos nossos órgãos, e consideravam, por exemplo, o coração como o centro
da coragem!
Se a ignorância dos
sábios gregos, que consideramos já como mais avançados, era tão grande, como
seria, então, a dos homens que viveram milhares de anos antes deles? As
concepções que os homens primitivos tinham da natureza e deles próprios eram
limitadas pela ignorância. Mas tentavam, apesar de tudo, explicar as coisas.
Todos os documentos que possuímos sobre os homens primitivos dizem-nos que
estavam muito preocupados com os sonhos. Vimos, desde o primeiro capítulo, como
tinham resolvido este problema dos sonhos pela crença na existência de um
«duplo» do homem. No início, atribuíam a esse duplo uma espécie de corpo
transparente e leve, com uma consistência ainda material. Só muito mais tarde,
nascerá no seu
espírito a concepção
de que o homem tem nele um princípio imaterial, que
lhe sobrevive, um princípio espiritual (a palavra vem de espírito,
que, em latim, quer dizer sopro, o
sopro que se vai com o último suspiro, quando se entrega a alma a Deus,
só subsistindo o «duplo»). É, então, a alma
que explica o pensamento, o sonho.
Na idade média,
tinha-se concepções bizarras sobre a alma. Pensava-se que, num corpo gordo,
havia uma
alma diminuta e, num
corpo franzino, uma grande alma; é por isso que, nessa época, os ascetas faziam
longos e frequentes jejuns, para ter uma grande alma, fazer uma morada grande
para ela.
Admitindo, sob a
forma do duplo transparente, depois sob a da alma, princípio espiritual, a
sobrevivência do homem após a morte, os homens primitivos criaram os deuses.
Acreditando,
primeiramente, em seres mais poderosos do que os homens, existindo sob uma
forma ainda material, chegaram, insensivelmente, à crença em deuses, existindo
sob a forma de uma alma superior à nossa. E é deste modo que, depois de ter
criado uma multidão de deuses, cada um com a sua função definida, como na
antiguidade grega, chegaram à concepção de um só Deus. Então, foi criada a
religião monoteísta36 atual. Assim, vemos
que, na origem da religião, mesmo sob a sua forma atual, esteve à ignorância.
O idealismo nasce,
pois, das concepções limitadas do homem, da sua ignorância; enquanto que o
materialismo, pelo contrário, do recuo desses limites.
Vamos assistir, no
decurso da história da filosofia, a essa luta contínua entre o idealismo e o
materialismo.
Este quer fazer
recuar as fronteiras da ignorância, e isto será uma das suas glórias e um dos
seus méritos. O idealismo, pelo contrário, e a religião que o alimenta fazem
todos os esforços para manter a ignorância e
tirar proveito desta ignorância das massas, para lhes fazer admitir a opressão,
a exploração econômica e social.
V.
— Os méritos do materialismo
pré-marxista.
Vimos nascer o
materialismo entre os Gregos, desde que existe um embrião de ciência. Segundo
este princípio que: quando a ciência se desenvolve, se desenvolve o
materialismo, constatamos, no decorrer da história:
1. Na idade media, um
fraco desenvolvimento das ciências, uma estagnação do materialismo.
2. Nos séculos XVII e
XVIII, a um enorme desenvolvimento das ciências corresponde um grande
desenvolvimento do materialismo. O materialismo francês do século XVIII é a conseqüência
direta do seu desenvolvimento.
3. No século XIX,
assistimos a numerosas e grandes descobertas, e o materialismo sofre uma grande
transformação com Marx e Engels.
4. Hoje, as ciências
progridem enormemente e, ao mesmo tempo, o materialismo. Vêem-se os melhores
sábios aplicar nos seus trabalhos o materialismo dialético.
O idealismo e o
materialismo têm, portanto, origens completamente opostas; e constatamos, no
decurso dos séculos, uma luta entre estas duas filosofias, que dura ainda nos
nossos dias, e não foi apenas acadêmica.
Esta luta que,
através da história da humanidade, se trava entre a ciência e a ignorância é a
luta entre duas correntes. Uma atira a humanidade para a ignorância, mantendo-a
nela; a outra, pelo contrário, aspira à libertação dos homens, substituindo a
ignorância pela ciência.
Tal luta tomou,
algumas vezes, formas graves, como no tempo da Inquisição, em que podemos
tomar, entre outros, o exemplo de Galileu. Este afirmou que a terra girava. Era
um conhecimento novo, que estava em contradição com a Bíblia e, também, com
Aristóteles: se a terra gira, é porque não é o centro do mundo, mas,
simplesmente, um ponto nele, e, então, é preciso alargar as fronteiras dos
nossos .pensamentos. Que se fez, então, perante essa descoberta de Galileu?
Para manter a
humanidade na ignorância, foi instituído um tribunal religioso, e Galileu
condenado a retratar se publicamente. Eis um exemplo da luta entre a ignorância
e a ciência.
Devemos, pois, julgar
os filósofos e os sábios dessa época situando-os nesta luta da ignorância
contra a ciência, e constataremos que, defendendo a ciência, defendiam o
materialismo, sem eles próprios o saberem.
Assim, Descartes,
pelos seus raciocínios, forneceu ideias que puderam fazer progredir o
materialismo.
É necessário ver,
também, que esta luta no decurso da história não é simplesmente teórica, mas
social e política. As classes dominantes nesta batalha estão sempre do lado da
ignorância. A ciência é revolucionária, contribuindo para a libertação da
humanidade.
O caso da burguesia é
típico. No século XVIII, a burguesia é dominada pela classe feudal; nesse
momento, ela é a favor das ciências; conduz a
luta contra a ignorância, e dá-nos a «Enciclopédia»37.
No século XX, a burguesia é a classe dominante, e, nesta luta contra a
ignorância e a ciência, é pela ignorância, com
uma ferocidade muito maior do que antes (lembrai-vos do nazismo).
Vemos, portanto, que
o materialismo pré-marxista representou um papel considerável, e teve uma
importância histórica muito grande. No decurso desta luta entre a ignorância e
a ciência, soube desenvolver uma concepção geral do mundo que pôde ser oposta à
religião, à ignorância, portanto. É graças, também, à evolução do materialismo,
a esta sucessão dos seus trabalhos, que as condições indispensáveis à eclosão
do materialismo dialético foram realizadas.
VI.
— Os defeitos do materialismo
pré-marxista.
Para compreender a
evolução do materialismo, ver bem os seus defeitos e lacunas, é preciso não
esquecer nunca que ciência e materialismo estão ligados.
No princípio, o
materialismo estava adiantado às ciências, e é por isso que esta filosofia não
pôde afirmar-se subitamente. Era preciso criar e desenvolver as ciências, para
provar que o materialismo dialético tinha razão; mas isso levou mais de vinte
séculos. Durante esse longo período, o materialismo sofreu a influência das
ciências e, especialmente, a do espírito das ciências, assim como a das
ciências particulares mais
desenvolvidas.
É por isso
que
o materialismo do século .precedente [isto é, do século XVIII] era, antes de
mais, mecanicista, porque, nessa época» de todas as ciências naturais, só a
mecânica, e ainda apenas a dos corpos sólidos, celestes e terrestres, numa
palavra, a mecânica da gravidade, chegara a uma certa perfeição. A química
ainda só existia na sua forma infantil, flogística. A biologia estava ainda nos
começos; o organismo vegetal e animal
apenas
tinha sido estudado grosseiramente, explicado por causas puramente mecânicas;
para os materialistas do século XVIII, o homem era uma máquina, tal como o
animal para Descartes38.
Eis, pois, o que era
o materialismo resultante de uma longa e lenta evolução das ciências, depois do
período «hibernal da idade média cristã».
O grande erro, nesse
período, foi considerar o mundo como uma grande mecânica, julgar todas as
coisas segundo as leis da ciência que se chama mecânica. Considerando o
movimento como um simples movimento mecânico, pensava-se que os mesmos
acontecimentos deviam reproduzir-se continuamente. Via-se o lado
máquina das coisas,
mas não o lado vivo. Também
se chama a este materialismo: mecânico (ou mecanicista).
Vejamos um exemplo:
Como explicavam esses materialistas o pensamento? Desta maneira: «o cérebro
segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis»! É um pouco simplista! O
materialismo de Marx, pelo contrário, dá uma série de precisões. Os nossos
pensamentos não provêm unicamente do cérebro. É preciso ver porque temos certos
pensamentos, certas ideias, primeiro que outros; repara-se, então, que a
sociedade, o ambiente, etc., selecionam as nossas ideias. O materialismo
mecânico considera o pensamento como um simples fenômeno mecânico. Ora, ele é
bem mais!
Esta
aplicação exclusiva da mecânica a fenômenos de natureza química e orgânica, no
âmbito dos quais as leis mecânicas atuaram, sem dúvida, também, mas postas em
segundo plano por leis de ordem superior, constitui um acanhamento específico,
mas inevitável nessa época do materialismo francês clássico39.
Eis o primeiro grande
erro do materialismo do século XVIII.
As suas conseqüências
eram ignorar a história em geral, isto é, o ponto de vista do desenvolvimento
histórico, do progresso: tal materialismo considerava que o mundo não evolui e
volta, com intervalos regulares, a estados semelhantes, jamais concebendo uma
evolução do homem e dos animais.
Esse
materialismo... na sua incapacidade para considerar o mundo no que respeita a
progresso, a matéria ajustada num desenvolvimento histórico... correspondia ao
nível que tinham atingido na época as ciências naturais e ao modo metafísico40. Isto é, anti-dialético de
filosofar que daí resultava. Sabia-se que a natureza estava empenhada num
movimento perpétuo, mas este, segundo a concepção da época, descrevia também um
círculo perpétuo, nunca mudando, por consequência, de lugar; produzia sempre os
mesmos resultados41.
Eis o segundo defeito
desse materialismo.
O seu terceiro erro,
é que era muito contemplativo; não via suficientemente o papel da ação
humana no mundo e na sociedade. O materialismo de Marx
ensina que não devemos apenas explicar o mundo, mas transformá-lo.
O homem é, na história, um elemento ativo que pode trazer
mudanças ao mundo.
O materialismo
pré-marxista não tinha consciência desta concepção da ação do homem.
Pensava-se, nessa época, que era um produto do meio42,
enquanto que Marx nos ensina que o meio é um produto do homem, sendo este,
portanto, um produto da sua própria atividade, em certas condições dadas à
partida. Se o homem
sofre a influência do
meio, pode transformá-lo, à sociedade; pode, pois, por consequência,
transformar-se a si mesmo.
O materialismo do
século XVIII era, portanto, muito contemplativo, porque ignorava o
desenvolvimento histórico de todas as coisas, e isso era então inevitável, uma
vez que os conhecimentos científicos não estavam bastante avançados para
conceber o mundo e as coisas de outro modo que não fosse através do velho
método de pensar: metafísico.
LEITURAS
MARX
e
ENGELS: «A Sagrada Família», em Estudos
filosóficos.
MARX:
«Teses sobre Feuerbach», Obras Escolhidas de Marx e Engels em 3 Tomos, Tomo I,
p.1, Ed. Avante
PLÉKHANOV:
«Ensaios sobre a história do materialismo» (d'Holbach,
Helvétius, Marx). Edições sociais, 1957.
29
Friedrich ENGELS:
«Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã», Obras Escolhidas de
Marx e Engels em Três Tomos, Ed. Avante 1985, Tomo III, pp 375-421
30
MARX-ENGELS: «A Sagrada Família», Estudos filosóficos, Edições sociais,
1961.
31
ENGELS: «Do Socialismo utópico ao socialismo
cientifico», Introdução, Obras Escolhidas de Marx e Engels em três Tomos, pp.
104-149
33 Friedrich ENGELS: «Ludwig Feuerbach»
34 Idem,
35
Friedrich ENGELS:
«Ludwig Feuerbach»
36
Do grego monos: um só — e thêos:
deus.
37
Ver «Páginas escolhidas da Enciclopédia». Os
Clássicos do povo, Edições sociais.
38
Friedrich ENGELS:
«Ludwig Feuerbach»
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