Princípios Elementares de Filosofia
O
IDEALISMO
I. — Idealismo moral
e idealismo filosófico.
II. — Por que devemos
estudar o idealismo de Berkeley?
III. — O idealismo de
Berkeley.
IV. — Conseqüências
dos raciocínios «idealistas».
V. — Os argumentos
idealistas:
1. O espírito cria a
matéria.
2. O mundo não existe
fora do nosso pensamento.
3. São as nossas
ideias que criam as coisas.
I.
— Idealismo moral e idealismo
filosófico.
Denunciamos a
confusão criada pela linguagem corrente, no que se refere ao materialismo. A
mesma confusão encontra-se a propósito do idealismo.
Não é necessário
confundir, com efeito, o idealismo moral e
o idealismo filosófico.
O idealismo moral
consiste em devotar-se a uma causa, a um ideal. A história do movimento
operário internacional ensina-nos que um número incalculável de
revolucionários, de marxistas, se devotaram até ao sacrifício da sua vida por
um ideal moral, e, portanto, eram os adversários deste outro idealismo que se
chama idealismo filosófico.
O idealismo
filosófico é uma doutrina que tem por base a explicação do mundo pelo espírito.
É a doutrina que
responde à pergunta fundamental da filosofia, dizendo: «é o pensamento o
elemento principal, o mais importante, o primeiro». E o idealismo afirmando a
importância primeira do pensamento, afirma que é ele que produz o ser, ou, por
outras palavras, que: «é o espírito que produz a matéria».
Tal é a primeira
forma do idealismo; encontrou o seu pleno desenvolvimento nas religiões,
afirmando que Deus, «espírito puro», era o criador da matéria.
A religião, que
pretendeu, e pretende ainda estar fora das discussões filosóficas, é, na
realidade, pelo contrário, a representação direta e lógica da filosofia
idealista.
Ora, a ciência,
intervindo no decurso dos séculos, em breve se tornou necessária para explicar
a matéria, o mundo, as coisas, de outro modo que apenas por Deus. Porque, desde
o século XVI, a ciência começou a explicar os fenômenos da natureza sem ter em
conta Deus e abstendo-se da hipótese da criação.
Para melhor combater
estas explicações científicas, materialistas e ateias, foi preciso, pois, levar
mais longe o idealismo e negar a existência mesmo da
matéria.
Foi ao que se
dedicou, no princípio do século XVIII, um bispo inglês, Berkeley, considerado o
pai do idealismo.
II.
— Por que devemos estudar o
idealismo de Berkeley?
O propósito do seu
sistema filosófico será, pois destruir o materialismo, tentar demonstrar-nos
que a substância material não existe. Escreveu, no prefácio do seu livro
«Diálogos de Hylas e de Philonoüs»: Se estes princípios são aceites
e olhados como verdadeiros, resulta que o ateísmo e o cepticismo são, com o
mesmo golpe, completamente abatidos, as perguntas obscuras esclarecidas,
dificuldades quase insolúveis resolvidas, e os homens que se compraziam com os
paradoxos reduzidos ao senso comum4.
Deste modo, para
Berkeley, o que é verdadeiro é que a matéria não existe, e é paradoxal
pretender o contrário.
Vamos ver como se
agarra a isso, para tal nos demonstrar. Mas, penso que não é inútil insistir
com os que querem estudar filosofia, para que tomem a teoria de Berkeley em
muito grande consideração.
Bem sei que as teses
de Berkeley farão sorrir alguns, mas é preciso não esquecer que vivemos no
século XXI e beneficiamos de todos os estudos do passado. E veremos, aliás,
quando estudarmos o materialismo e a sua história, que os filósofos
materialistas de outrora fazem também, por vezes, sorrir.
É preciso, portanto,
saber que Diderot, que foi, antes de Marx e Engels, o maior dos pensadores
materialistas, ligava ao sistema de Berkeley alguma importância, uma vez que o
descreve como um sistema que, para vergonha do espírito
humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora o mais
absurdo de todos5!
O
próprio Lenine consagrou numerosas páginas à filosofia de Berkeley, e escreveu:
[Os filósofos idealistas mais modernos] não
produziram contra os materialistas qualquer...argumento que não possamos
encontrar no bispo Berkeley6.
Enfim,
eis a apreciação sobre o imaterialismo de Berkeley, dada por um manual de
história da filosofia utilizado nos liceus:
Teoria ainda imperfeita, sem dúvida, mas admirável, e
que deve destruir para sempre, nos espíritos filosóficos, a crença na
existência de uma substância material7.
Eis
a importância para toda a gente - embora por razões diferentes, como vos foi
mostrado por estas citações - de tal raciocínio filosófico.
III.
— O idealismo de Berkeley.
O propósito deste
sistema consiste, pois, em demonstrar que a matéria não existe. Berkeley dizia:
A
matéria não é o que acreditamos, pensando que existe fora do nosso espírito.
Pensamos que as coisas existem, porque as vemos, porque lhes tocamos; é porque
nos dão essas sensações que acreditamos na sua existência.
Mas
as nossas sensações não são mais do que ideias que temos no nosso espírito.
Pelo que os objetos que percebemos através dos nossos sentidos mais não são do
que ideias, e as ideias não podem existir fora do nosso espírito.
Para Berkeley, as
coisas existem; não nega as suas natureza e existência, mas afirma que não
existem a não ser sob a forma de sensações que no-las fazem conhecer, e conclui
que as nossas sensações e os objetos são
apenas uma e a mesma coisa.
As coisas existem, é
certo, mas em nós, diz
ele, no nosso espírito, e não têm qualquer realidade fora do espírito.
Concebemos as coisas
com o auxílio da vista; percebemos, com a ajuda do tacto; o olfato
esclarece-nos sobre o cheiro; o paladar, sobre o gosto; o ouvido, sobre os
sons. Estas diversas sensações dão-nos ideias, que, combinadas umas com as
outras, nos levam a dar-lhes um nome comum e a considerá-las como objetos.
Observamos,
por exemplo, uma cor, um gosto, um cheiro, uma forma, uma consistência
determinadas... Reconhecemos esse conjunto como um objeto que designamos com a
palavra maçã.
Outras
combinações de sensações dão-nos outras coleções de ideias [que] constituem aquilo
a que chamamos a pedra, a árvore, o livro e os outros objetos sensíveis8,
Somos, pois, vítimas
de ilusões quando pensamos conhecer, como exteriores, o mundo e as coisas, uma
vez que tudo isso não existe a não ser no nosso espírito.
No seu livro «Diálogos
de Hylas e Philonoüs», Berkeley demonstra-nos esta tese da seguinte maneira:
Não
é um absurdo pensar que uma mesma coisa, num dado momento, possa ser diferente?
Por exemplo, quente e fria, no mesmo instante? Imaginai, então, que uma das
vossas mãos esteja quente, a outra fria, e que ambas sejam mergulhadas, ao
mesmo tempo, num recipiente cheio de água, a uma temperatura
intermédia:
não parecerá a água quente, a uma das mãos, e fria, à outra9?
Visto que é absurdo
acreditar que uma coisa, ao mesmo tempo, possa ser, em si mesma, diferente,
devemos concluir que tal coisa não existe a não ser no nosso espírito.
Que faz, pois,
Berkeley, no seu método de raciocínio e de discussão? Despoja os objetos, as
coisas de todas as suas propriedades.
«Dizeis
que os objetos existem, porque têm uma cor, um cheiro, um sabor, porque são
grandes ou pequenos, leves ou pesados? Vou demonstrar-vos que tudo isso não
existe nos objetos, mas, sim, no nosso espírito.
«Eis
um retalho de tecido: dizeis-me que é vermelho. Será isso exato? Pensais que o
vermelho faz mesmo parte do tecido. Será isso certo? Sabeis que há animais que
têm olhos diferentes dos nossos e não verão vermelho esse tecido; de igual
modo, um homem tendo icterícia vê-lo-á amarelo! Então, de que cor é? Isso
depende, dizeis? O vermelho não está, portanto, no tecido, mas no olhar, em
nós.
«Dizeis
que este tecido é leve? Deixai-o cair sobre uma formiga, e ela encontrá-lo-á,
certamente, pesado.
Quem
tem, portanto, razão? Pensais que é quente? Se estiverdes com febre, encontrá-lo-eis
frio! Então, é quente ou frio?
«Numa
palavra, se as mesmas coisas podem ser, a um tempo, para uns, vermelhas,
pesadas, quentes, e, para outros, exatamente o contrário, é porque somos
vítimas de ilusões, e porque as coisas não existem para além do nosso
espírito».
Retirando todas as
suas propriedades aos objetos, chegamos, por conseguinte, a dizer que estes não
existem a não ser no nosso pensamento, isto é, que a
matéria é uma ideia.
Já, antes de
Berkeley, os filósofos gregos diziam, e isso era exato, que certas qualidades,
como o sabor, o som, não estavam mesmo nas coisas, mas em nós.
Porém, o que há de
novo na teoria de Berkeley é, justamente, que ele alarga esta advertência a toda
a espécie de objetos.
Os filósofos gregos
tinham, com efeito, estabelecido entre as qualidades das coisas a seguinte
distinção: Por um lado, as qualidades primeiras, isto
é, as que estão nos objetos, como o peso, o tamanho, a resistência, etc..
Por outro, as qualidades
segundas, isto é, as que estão em nós, como o cheiro, o sabor, o
calor, etc.
Ora, Berkeley aplica
às qualidades primeiras a mesma tese que às segundas: todas as qualidades, todas
as propriedades não estão nos objetos, mas em nós.
Se olhamos o sol,
vêmo-lo redondo, achatado, vermelho. A ciência ensina-nos que nos enganamos,
que não é achatado, não é vermelho. Faremos, portanto, a abstração, com o
auxílio da ciência, de certas falsas propriedades que atribuímos ao sol, mas
sem, com isso, concluir que não existe! É, pois, a uma tal conclusão que
Berkeley conduz.
Berkeley não teve
certamente culpa, mostrando que a distinção dos antigos não resistia à análise
científica, mas comete uma falta de raciocínio, um sofisma, tirando de tais
observações consequências que não comportam. Mostra, com efeito, que as qualidades
das coisas não são exatamente como no-las mostram os
nossos sentidos, isto
é, que estes nos enganam e deformam a realidade material, e, daí, conclui,
imediatamente, que a realidade material não existe.
IV.
— Conseqüências dos
raciocínios idealistas.
Sendo a tese: «Nada
existe senão no nosso espírito», devemos concluir que o mundo exterior não
existe.
Levando este
raciocínio até ao fim, chegaríamos a dizer: «Sou o único a existir, uma vez que
não conheço os outros homens a não ser pelas minhas ideias, que eles não são
para mim, como objetos materiais, mais do que coleções de ideias». É o que em
filosofia se chama o solipsismo (que
quer dizer apenas eu).
Berkeley, diz-nos
Lenine no seu livro já citado, defende-se instintivamente contra a acusação de
sustentar
uma tal teoria.
Constata-se mesmo que o solipsismo, forma extrema do idealismo, não foi
defendido por nenhum filósofo.
É por isso que
devemos interessar-nos, discutindo com os idealistas, em tomar bem patente que
os raciocínios que negam efetivamente a matéria, para serem lógicos e conseqüentes,
devem chegar a esse extremo absurdo que é o solipsismo.
V.
— Os argumentos idealistas.
Dedicamos a resumir,
o mais simplesmente possível, a teoria de Berkeley, porque foi quem mais
abertamente expôs o que é o idealismo filosófico.
Mas é certo que, para
melhor compreender estes raciocínios, que são novos para nós, é agora
indispensável tomá-los muito a serio e fazer um esforço intelectual. Porquê?
Porque veremos em
seguida que, se o idealismo se apresenta de uma maneira mais oculta e a coberto
de palavras e expressões novas, todas as filosofias idealistas mais não fazem
do que retomar os argumentos do «velho Berkeley» (Lenine).
Porque veremos também
quanto a filosofia idealista, que dominou, e domina ainda a história oficial
da filosofia, trazendo consigo um método de pensamento de
que estamos impregnados, soube penetrar-nos, apesar de uma educação
inteiramente laica.
Sendo os raciocínios
do bispo Berkeley a base dos argumentos de todas as filosofias idealistas,
vamos, pois, para resumir este capítulo, procurar esclarecer quais são, e o que
tentam demonstrar-nos.
1. O
espírito cria a matéria .
Esta, sabemo-lo, a
resposta idealista à pergunta fundamental da filosofia; é a primeira forma do
idealismo, que se reflete nas diferentes religiões, onde se afirma que o
espírito criou o mundo.
Tal afirmação pode
ter dois sentidos:
Ou Deus criou o
mundo, e este existe, realmente à nossa volta. É o idealismo comum às teologias10.
Ou Deus criou a ilusão
do mundo, dando-nos ideias que não correspondem a qualquer
realidade material. É o «idealismo imaterialista» de Berkeley, que nos quer
provar que o espírito é a única realidade, sendo a matéria um produto fabricado
por este.
É por isso que os
idealistas afirmam que:
2.
O mundo não existe fora do nosso pensamento.
É o que Berkeley quer
demonstrar-nos, afirmando que cometemos um erro, atribuindo às coisas
propriedades e qualidades que lhes seriam próprias, quando estas existem apenas
no nosso espírito.
Para os idealistas,
os bancos e as mesas existem, na verdade, mas somente no nosso pensamento, e
não em redor de nós, por que
3. São
as nossas ideias que criam as coisas .
Por outras palavras,
as coisas são o reflexo do nosso pensamento. Com efeito, uma vez que é o
espírito que cria a ilusão da matéria, uma vez que é aquele que dá ao nosso
pensamento a ideia desta, uma vez que as sensações que experimentamos perante
as coisas não provêm destas em si, mas, unicamente, do nosso pensamento, a
origem da realidade do mundo e das coisas é o nosso pensamento, e, por
consequência, tudo o que nos rodeia não existe fora do nosso espírito, e não
pode ser senão o reflexo do nosso pensamento. Mas, como, para Berkeley, o
nosso espírito seria incapaz de criar, só
por si, estas ideias, e, por outro lado, não faz o que quer (como
aconteceria se ele próprio as criasse), é preciso admitir que é um outro espírito
mais poderoso o criador. É, pois, Deus que cria o nosso espírito e nos impõe
todas as ideias do mundo que aí encontramos.
Eis as principais
teses sobre as quais repousam as doutrinas idealistas e as repostas que dão à
pergunta fundamental da filosofia. É altura de ver agora qual a resposta da
filosofia materialista à mesma pergunta e aos problemas suscitados por estas
teses.
(8
LÉNINE: «Materialismo e empirocriticismo», p.
18 Ed. Avante 1982)
(9
LÉNINE: «Materialismo e empirocriticismo» Ed.
Avante 1982)
BERKELEY: “Diálogos
de Hylas e Philonoüs”
LÉNINE: “Materialismo
e empirocriticismo”, pp. 17 a 29
10 A teologia é a
«ciência» (!) que se ocupa de Deus e das coisas divinas.
Próximo capitulo: O
MATERIALISMO
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