Sam Darcy(2)
(…) Em Dezembro de
1936, o Partido Comunista devia realizar as eleições anuais dos
seus dirigentes.
Até ali, as candidaturas e eleições para cargos partidários tinham sido
sempre feitas
abertamente. Mas devido a esta prática havia membros que se sentiam
muitas vezes
constrangidos em expressar a sua oposição a certas figuras poderosas dos
comitês executivos,
com receio de represálias. O Comitê Central decidiu então submeter toda a direção
a um teste para saber se os seus membros tinham realmente a aceitação das
bases. Aqueles que realizavam um serviço público útil seriam provavelmente
reeleitos, enquanto outros, que estavam simplesmente agarrados a uma sinecura e
a um lugar de poder, dificilmente manteriam os seus cargos. Com este fim foi
introduzido o voto secreto.
Os resultados foram
surpreendentes. Em algumas organizações distritais do partido,
direções inteiras
foram varridas das suas funções. Noutras houve uma sanção severa à
direção através de
um forte voto de oposição, embora, no seu conjunto, a direção nacional do
partido tenha recebido um retumbante apoio. O partido sentiu-se fortemente revigorado
pelos novos quadros eleitos e pelo afastamento daqueles que se tinham tornado
burocratas empedernidos e já não eram bem-vistos em cargos de direção.
Desde a implantação
do poder soviético que a luta contra a burocracia constituía uma
das principais
tarefas assumidas pelos dirigentes mais responsáveis. O nepotismo, o
favoritismo e as
práticas de grupos fracionistas tinham criado uma situação malsã:
quando alguém
chegava a um posto de responsabilidade, na indústria ou serviço do
Estado, trazia
imediatamente como adjuntos todas as pessoas que, por uma razão ou
outra, favorecia, e
colocava-as nos melhores postos sob a sua dependência. Com
frequência estas
pessoas não eram qualificadas e mesmo quando o eram o sentimento de que tinham
um protetor levava-as a tornarem-se preguiçosas e burocráticas. Além disso, estes
dirigentes tinham tendência para aumentar o pessoal acima das necessidades da empresa,
fosse porque queriam «cuidar» de todos os seus amigos, fosse porque sentiam que
quantas mais pessoas estivessem sob o seu controlo, maior era a sua influência.
O problema
tornou-se de tal modo sério que o governo adotou medidas que
começaram a ser
aplicadas em 1935. Em dada altura surgiu uma grave penúria de braços para a
colheita. Em contrapartida estimava-se que havia pelo menos 25 mil funcionários
públicos em Moscou que não eram absolutamente necessários para assegurar o
normal funcionamento da economia do país. Depois de uma campanha educativa,
cada instituição do Estado recebeu simplesmente uma quota de trabalhadores que
teria de destinar ao trabalho agrícola. Após uma seleção adequada, 25 mil
funcionários foram transferidos de Moscou para os locais de produção.
A batalha para
manter o país nos eixos, contra a paralisia crescente (que, por um lado, a
oposição tentava
deliberadamente apresentar e, por outro, a simples existência da
burocracia tinha
tendência a provocar), foi travada com particular severidade nas eleições gerais,
realizadas em Dezembro de 1935, para o Congresso dos Sovietes da URSS,( 3) que procedeu
à aprovação da nova Constituição [em Dezembro de 1936].
A observação de
perto destas eleições impressionou-me, uma vez que, em todas as
discussões sobre a
democracia soviética e na sua comparação com as práticas
democráticas
noutros países, raramente se obtinha uma imagem do funcionamento dos
canais da expressão
democrática do povo no novo processo eleitoral.
Vendo isto a três
mil milhas de distância, pareceria que havia um boletim de voto e que
ao povo era dada a
possibilidade de votar «sim» ou «não». Isso era de fato verdade nas
eleições nazis, mas
constituía uma imagem completamente falsa no que respeita à União Soviética.
Para começar, na
União Soviética, a política e as eleições não são deveres especiais de
um partido
político. Se não compreendermos este fato essencial, tudo o resto será
provavelmente
confuso. As escolhas para cargos públicos não são feitas apenas por um
partido político. É
certo que o partido comunista apresenta muitos candidatos, mas
também os
sindicatos indicam candidatos independentes para cargos políticos, tal como as
cooperativas, as organizações culturais, as academias científicas, as organizações
da juventude, as organizações de mulheres e quaisquer outras instituições ou
organizações que o desejem. Em suma, as nomeações para cargos públicos, que no
nosso país emanam unicamente dos partidos políticos, na União Soviética emanam
de todas as organizações populares possíveis.
A segunda coisa que
se tem de compreender a respeito das eleições soviéticas, e que
lhes confere a sua
qualidade democrática especial, é o fato de o momento decisivo da
seleção dos
candidatos não está na votação final, mas no processo de apuramento das
candidaturas.
Tive o privilégio
de observar do princípio ao fim as candidaturas e as eleições na zona
em que vivi e
trabalhei. A eleição específica a que me refiro foi para os delegados ao
Congresso dos
Sovietes da URSS, que equivale à eleição dos membros para a Câmara dos Representantes
dos Estados Unidos em Washington. Cada instituição da circunscrição eleitoral
em que residi e trabalhei realizou as suas reuniões para a apresentação de candidatos.
Houve reuniões nas fábricas. A Universidade de Moscou que se situava nesta circunscrição
realizou a sua reunião. O pessoal da Grande Biblioteca Lênin reuniu-se para
designar candidatos. Também o fizeram todas as associações cooperativas de
lojas comerciais da zona, os sindicatos, o partido comunista, as organizações
de juventude, etc.
Em cada reunião era
proposto um grande número de candidatos. O procedimento de cada candidato
consistia em levantar-se, apresentar uma breve biografia e as razões pelas
quais considerava que a sua candidatura deveria ser ou não aceite. A recusa por
parte do nomeado era vista como uma falta de responsabilidade cívica. Se
considerava que não devia ser eleito, tinha o dever de subir ao palanque,
apresentar a sua breve biografia e explicar porque é que a sua nomeação não
devia ser aceite. Este processo durou duas semanas inteiras. Algumas
organizações reuniam-se todas as noites durante este período para examinar
milhares de candidaturas. Cada candidato tinha de se submeter às perguntas da
assembleia. No final, um ou mais candidatos eram propostos para representar
toda a circunscrição, com indicação do organismo que os tinha escolhido.
Para além da propor
os seus candidatos, cada grupo elegeu um determinado número de
delegados, numa
base de representação proporcional, à conferência congressual da
circunscrição. Os
trabalhos desta conferência duraram também cerca de duas semanas. As candidaturas
foram apresentadas a este órgão. Seguiu-se o mesmo procedimento. Cada candidato
foi examinado, confrontaram-se as respectivas qualificações com as dos
restantes
candidatos e finalmente as propostas foram colocadas à votação dos delegados para
uma seleção final.
Com frequência este
órgão aprovava não um mas dois, três ou mesmo mais candidatos.
Depois deste
meticuloso processo de apuramento, os candidatos eram submetidos ao
eleitorado para uma
votação final. E assim, o eleitorado escolhia por maioria de votos um dos
candidatos que representaria a circunscrição no Congresso dos Sovietes da URSS.
Por aqui se pode
ver que, longe carecer de democracia, este é um processo muito
democrático, uma
vez que dá às pessoas comuns a possibilidade de participar de forma
muito direta na
escolha dos candidatos, e nós sabemos pelo nosso próprio sistema
eleitoral que, em
última análise, a escolha do candidato é o aspecto crítico de qualquer
eleição.
Nas eleições de que
fui testemunha vi candidatos a serem «passados pelo crivo» de uma maneira que
seria muito benéfica se fosse aplicada no nosso país. As suas contribuições e participação
nas atividades sociais, o seu interesse pelos assuntos públicos, o seu
historial de serviços prestados desinteressadamente, os seus estudos, educação
e grau de aproveitamento em termos de progresso pessoal e de benefício para a
sociedade – tudo passava pelo crivo. Um indivíduo com má conduta pessoal e
moral que se apresentasse como candidato era logo confrontado em plena
assembleia pelos vizinhos e colegas de trabalho que o conheciam bem. Em certos
aspectos assemelhava-se à nossa «Reunião de Cidade»(4) da Nova Inglaterra,
aplicada à colossal escala nacional, num sufrágio que envolvia 170 milhões de
pessoas. É deste processo que provém o incentivo à participação e empenhamento
social e o interesse das pessoas pelos assuntos públicos em todo o país.
Nestas eleições,
por exemplo, cerca de metade dos membros do Congresso dos Sovietes da URSS não
foram reeleitos. Muitas figuras gradas bem instaladas, incluindo numerosos membros
do partido comunista, ficaram surpreendidas quando no final das eleições se viram
rejeitadas, enquanto muitas outras pessoas, que nem sequer eram membros do partido
comunista e que nunca tinham pensado em cargos políticos, mas que haviam prestado
grandes serviços à causa pública, com verdadeira devoção pelas pessoas, nas
suas profissões ou ocupações, ou nalguma organização de voluntariado, viram-se
membros do órgão supremo de poder da URSS, o novo Congresso dos Sovietes da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Este é um novo tipo de democracia
e eu diria que os serve muito bem.
Cada geração tem de
estar vigilante em relação às suas próprias liberdades. Ninguém
pode garantir as
liberdades das gerações vindouras. As liberdades conquistadas podem
voltar a perder-se.
Por conseguinte, a mera organização eleitoral mecânica não é em si
uma garantia para
sempre de que as liberdades do povo serão salvaguardadas, mas, na
medida em que é
possível orientar uma qualquer estrutura política para dar a melhor
resposta aos
anseios e necessidades das pessoas, eu diria que a União Soviética tem feito grandes
progressos nessa direção.
Mas mesmo a União
Soviética, como constantemente nos recordavam, não é uma
entidade isolada
vivendo no vácuo, ela faz parte do mundo real. A Europa Ocidental e a
Ásia estavam em
efervescência com as primeiras batalhas da II Guerra Mundial. Havia
coisas a fazer para
ajudar o povo espanhol sitiado, havia ainda o movimento clandestino nos países
dominados pelos nazis, a organização de movimentos de frente popular contra os
nazis nos países democráticos e o crescimento das forças anti-japonesas na
China.
O meu interesse
primordial era obviamente os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos
também não vivem
como um entidade isolada, no vácuo, e o futuro do nosso país decidia se em
grande medida na Europa e na Ásia. Como milhares de outros americanos decidi dar
uma ajuda lá onde pudesse ser útil. Tive sorte de poder fazer uma escolha quase
livre.
1 Texto transcrito
por George Gruenthal, do manuscrito das Memórias de Sam Darcy, capítulo XX,
pp. 25-31, Biblioteca Tamiment, Nova Iorque.
2 Darcy, Sam
Adams, verdadeiro nome Samuel Dardeck, (1905-2005), dirigente do Partido Comunista
dos EUA, nasceu na Ucrânia, donde foi levado pelos pais para os Estados Unidos,
tinha apenas três anos de idade. Em 1920 adere à Liga dos Jovens Trabalhadores
e, antes de ingressar na Universidade de Nova Iorque, trabalha no Daily
Worker, o órgão central do partido.
3 Secretário
nacional da Liga dos Jovens Trabalhadores Comunistas (1925-27), é designado, em
1927, representante dos EUA no Comitê Executivo da Internacional da Juventude
Comunista, em Moscou. Regressando ao país em 1928, foi editor do Daily
Worker e diretor da Workers School de Nova Iorque. Na primeira
metade dos anos 30 dirige o partido no Estado da Califórnia. Em 1935 volta para
Moscou, como representante do PCEUA na
Internacional Comunista. A partir de 1938, como representante do Comitê
Central, desempenha tarefas de direção em várias regiões
dos EUA, porém,
devido à sua oposição ativa ao então secretário-geral, Earl Browder, é expulso do
partido em 1944, permanecendo um ativista político até ao fim da vida (8 de
Novembro de 2005). Com vários livros publicados sobre temas políticos, sociais
e econômicos, as suas memórias permanecem em manuscrito, na Biblioteca
Tamiment, em Nova Iorque. (N. Ed.)
4 No original: New England Town Meeting. A «Reunião de Cidade» é uma forma de governo local em alguns
estados dos EUA. Surgiu na região da Nova Inglaterra ainda nos tempos coloniais,
sendo adotada no século XIX noutras regiões do país. (N. Ed.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário