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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Como funcionava a democracia soviética nos anos 30(1)



 

 

Sam Darcy(2)

 

(…) Em Dezembro de 1936, o Partido Comunista devia realizar as eleições anuais dos
seus dirigentes. Até ali, as candidaturas e eleições para cargos partidários tinham sido
sempre feitas abertamente. Mas devido a esta prática havia membros que se sentiam
muitas vezes constrangidos em expressar a sua oposição a certas figuras poderosas dos
comitês executivos, com receio de represálias. O Comitê Central decidiu então submeter toda a direção a um teste para saber se os seus membros tinham realmente a aceitação das bases. Aqueles que realizavam um serviço público útil seriam provavelmente reeleitos, enquanto outros, que estavam simplesmente agarrados a uma sinecura e a um lugar de poder, dificilmente manteriam os seus cargos. Com este fim foi introduzido o voto secreto.
Os resultados foram surpreendentes. Em algumas organizações distritais do partido,
direções inteiras foram varridas das suas funções. Noutras houve uma sanção severa à
direção através de um forte voto de oposição, embora, no seu conjunto, a direção nacional do partido tenha recebido um retumbante apoio. O partido sentiu-se fortemente revigorado pelos novos quadros eleitos e pelo afastamento daqueles que se tinham tornado burocratas empedernidos e já não eram bem-vistos em cargos de direção.
Desde a implantação do poder soviético que a luta contra a burocracia constituía uma
das principais tarefas assumidas pelos dirigentes mais responsáveis. O nepotismo, o
favoritismo e as práticas de grupos fracionistas tinham criado uma situação malsã:
quando alguém chegava a um posto de responsabilidade, na indústria ou serviço do
Estado, trazia imediatamente como adjuntos todas as pessoas que, por uma razão ou
outra, favorecia, e colocava-as nos melhores postos sob a sua dependência. Com
frequência estas pessoas não eram qualificadas e mesmo quando o eram o sentimento de que tinham um protetor levava-as a tornarem-se preguiçosas e burocráticas. Além disso, estes dirigentes tinham tendência para aumentar o pessoal acima das necessidades da empresa, fosse porque queriam «cuidar» de todos os seus amigos, fosse porque sentiam que quantas mais pessoas estivessem sob o seu controlo, maior era a sua influência.
O problema tornou-se de tal modo sério que o governo adotou medidas que
começaram a ser aplicadas em 1935. Em dada altura surgiu uma grave penúria de braços para a colheita. Em contrapartida estimava-se que havia pelo menos 25 mil funcionários públicos em Moscou que não eram absolutamente necessários para assegurar o normal funcionamento da economia do país. Depois de uma campanha educativa, cada instituição do Estado recebeu simplesmente uma quota de trabalhadores que teria de destinar ao trabalho agrícola. Após uma seleção adequada, 25 mil funcionários foram transferidos de Moscou para os locais de produção.
A batalha para manter o país nos eixos, contra a paralisia crescente (que, por um lado, a
oposição tentava deliberadamente apresentar e, por outro, a simples existência da
burocracia tinha tendência a provocar), foi travada com particular severidade nas eleições gerais, realizadas em Dezembro de 1935, para o Congresso dos Sovietes da URSS,( 3) que procedeu à aprovação da nova Constituição [em Dezembro de 1936].
A observação de perto destas eleições impressionou-me, uma vez que, em todas as
discussões sobre a democracia soviética e na sua comparação com as práticas
democráticas noutros países, raramente se obtinha uma imagem do funcionamento dos
canais da expressão democrática do povo no novo processo eleitoral.
Vendo isto a três mil milhas de distância, pareceria que havia um boletim de voto e que
ao povo era dada a possibilidade de votar «sim» ou «não». Isso era de fato verdade nas
eleições nazis, mas constituía uma imagem completamente falsa no que respeita à União Soviética.
Para começar, na União Soviética, a política e as eleições não são deveres especiais de
um partido político. Se não compreendermos este fato essencial, tudo o resto será
provavelmente confuso. As escolhas para cargos públicos não são feitas apenas por um
partido político. É certo que o partido comunista apresenta muitos candidatos, mas
também os sindicatos indicam candidatos independentes para cargos políticos, tal como as cooperativas, as organizações culturais, as academias científicas, as organizações da juventude, as organizações de mulheres e quaisquer outras instituições ou organizações que o desejem. Em suma, as nomeações para cargos públicos, que no nosso país emanam unicamente dos partidos políticos, na União Soviética emanam de todas as organizações populares possíveis.
A segunda coisa que se tem de compreender a respeito das eleições soviéticas, e que
lhes confere a sua qualidade democrática especial, é o fato de o momento decisivo da
seleção dos candidatos não está na votação final, mas no processo de apuramento das
candidaturas.
Tive o privilégio de observar do princípio ao fim as candidaturas e as eleições na zona
em que vivi e trabalhei. A eleição específica a que me refiro foi para os delegados ao
Congresso dos Sovietes da URSS, que equivale à eleição dos membros para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos em Washington. Cada instituição da circunscrição eleitoral em que residi e trabalhei realizou as suas reuniões para a apresentação de candidatos. Houve reuniões nas fábricas. A Universidade de Moscou que se situava nesta circunscrição realizou a sua reunião. O pessoal da Grande Biblioteca Lênin reuniu-se para designar candidatos. Também o fizeram todas as associações cooperativas de lojas comerciais da zona, os sindicatos, o partido comunista, as organizações de juventude, etc.
Em cada reunião era proposto um grande número de candidatos. O procedimento de cada candidato consistia em levantar-se, apresentar uma breve biografia e as razões pelas quais considerava que a sua candidatura deveria ser ou não aceite. A recusa por parte do nomeado era vista como uma falta de responsabilidade cívica. Se considerava que não devia ser eleito, tinha o dever de subir ao palanque, apresentar a sua breve biografia e explicar porque é que a sua nomeação não devia ser aceite. Este processo durou duas semanas inteiras. Algumas organizações reuniam-se todas as noites durante este período para examinar milhares de candidaturas. Cada candidato tinha de se submeter às perguntas da assembleia. No final, um ou mais candidatos eram propostos para representar toda a circunscrição, com indicação do organismo que os tinha escolhido.
Para além da propor os seus candidatos, cada grupo elegeu um determinado número de
delegados, numa base de representação proporcional, à conferência congressual da
circunscrição. Os trabalhos desta conferência duraram também cerca de duas semanas. As candidaturas foram apresentadas a este órgão. Seguiu-se o mesmo procedimento. Cada candidato foi examinado, confrontaram-se as respectivas qualificações com as dos
restantes candidatos e finalmente as propostas foram colocadas à votação dos delegados para uma seleção final.
Com frequência este órgão aprovava não um mas dois, três ou mesmo mais candidatos.
Depois deste meticuloso processo de apuramento, os candidatos eram submetidos ao
eleitorado para uma votação final. E assim, o eleitorado escolhia por maioria de votos um dos candidatos que representaria a circunscrição no Congresso dos Sovietes da URSS.
Por aqui se pode ver que, longe carecer de democracia, este é um processo muito
democrático, uma vez que dá às pessoas comuns a possibilidade de participar de forma
muito direta na escolha dos candidatos, e nós sabemos pelo nosso próprio sistema
eleitoral que, em última análise, a escolha do candidato é o aspecto crítico de qualquer
eleição.
Nas eleições de que fui testemunha vi candidatos a serem «passados pelo crivo» de uma maneira que seria muito benéfica se fosse aplicada no nosso país. As suas contribuições e participação nas atividades sociais, o seu interesse pelos assuntos públicos, o seu historial de serviços prestados desinteressadamente, os seus estudos, educação e grau de aproveitamento em termos de progresso pessoal e de benefício para a sociedade – tudo passava pelo crivo. Um indivíduo com má conduta pessoal e moral que se apresentasse como candidato era logo confrontado em plena assembleia pelos vizinhos e colegas de trabalho que o conheciam bem. Em certos aspectos assemelhava-se à nossa «Reunião de Cidade»(4) da Nova Inglaterra, aplicada à colossal escala nacional, num sufrágio que envolvia 170 milhões de pessoas. É deste processo que provém o incentivo à participação e empenhamento social e o interesse das pessoas pelos assuntos públicos em todo o país.
Nestas eleições, por exemplo, cerca de metade dos membros do Congresso dos Sovietes da URSS não foram reeleitos. Muitas figuras gradas bem instaladas, incluindo numerosos membros do partido comunista, ficaram surpreendidas quando no final das eleições se viram rejeitadas, enquanto muitas outras pessoas, que nem sequer eram membros do partido comunista e que nunca tinham pensado em cargos políticos, mas que haviam prestado grandes serviços à causa pública, com verdadeira devoção pelas pessoas, nas suas profissões ou ocupações, ou nalguma organização de voluntariado, viram-se membros do órgão supremo de poder da URSS, o novo Congresso dos Sovietes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Este é um novo tipo de democracia e eu diria que os serve muito bem.
Cada geração tem de estar vigilante em relação às suas próprias liberdades. Ninguém
pode garantir as liberdades das gerações vindouras. As liberdades conquistadas podem
voltar a perder-se. Por conseguinte, a mera organização eleitoral mecânica não é em si
uma garantia para sempre de que as liberdades do povo serão salvaguardadas, mas, na
medida em que é possível orientar uma qualquer estrutura política para dar a melhor
resposta aos anseios e necessidades das pessoas, eu diria que a União Soviética tem feito grandes progressos nessa direção.
Mas mesmo a União Soviética, como constantemente nos recordavam, não é uma
entidade isolada vivendo no vácuo, ela faz parte do mundo real. A Europa Ocidental e a
Ásia estavam em efervescência com as primeiras batalhas da II Guerra Mundial. Havia
coisas a fazer para ajudar o povo espanhol sitiado, havia ainda o movimento clandestino nos países dominados pelos nazis, a organização de movimentos de frente popular contra os nazis nos países democráticos e o crescimento das forças anti-japonesas na China.
O meu interesse primordial era obviamente os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos
também não vivem como um entidade isolada, no vácuo, e o futuro do nosso país decidia se em grande medida na Europa e na Ásia. Como milhares de outros americanos decidi dar uma ajuda lá onde pudesse ser útil. Tive sorte de poder fazer uma escolha quase livre. 

1 Texto transcrito por George Gruenthal, do manuscrito das Memórias de Sam Darcy, capítulo XX, pp. 25-31, Biblioteca Tamiment, Nova Iorque.

2 Darcy, Sam Adams, verdadeiro nome Samuel Dardeck, (1905-2005), dirigente do Partido Comunista dos EUA, nasceu na Ucrânia, donde foi levado pelos pais para os Estados Unidos, tinha apenas três anos de idade. Em 1920 adere à Liga dos Jovens Trabalhadores e, antes de ingressar na Universidade de Nova Iorque, trabalha no Daily Worker, o órgão central do partido.

3 Secretário nacional da Liga dos Jovens Trabalhadores Comunistas (1925-27), é designado, em 1927, representante dos EUA no Comitê Executivo da Internacional da Juventude Comunista, em Moscou. Regressando ao país em 1928, foi editor do Daily Worker e diretor da Workers School de Nova Iorque. Na primeira metade dos anos 30 dirige o partido no Estado da Califórnia. Em 1935 volta para Moscou, como  representante do PCEUA na Internacional Comunista. A partir de 1938, como representante do Comitê Central, desempenha tarefas de direção em várias regiões
dos EUA, porém, devido à sua oposição ativa ao então secretário-geral, Earl Browder, é expulso do partido em 1944, permanecendo um ativista político até ao fim da vida (8 de Novembro de 2005). Com vários livros publicados sobre temas políticos, sociais e econômicos, as suas memórias permanecem em manuscrito, na Biblioteca Tamiment, em Nova Iorque. (N. Ed.) 

4 No original: New England Town Meeting. A «Reunião de Cidade» é uma forma de governo local em alguns estados dos EUA. Surgiu na região da Nova Inglaterra ainda nos tempos coloniais, sendo adotada no século XIX noutras regiões do país. (N. Ed.)

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