Como na
saga Guerra nas Estrelas, a história dos “mensalões” nacionais foi
contada, até agora, de trás para frente. Assim como no clássico de George
Lucas, a TV Justiça, no caso do “mensalão do PT”, apresentou ao público o
enredo final de um psicodrama político sem antes informar o contexto da
tragédia providencialmente encenada antes do segundo turno das recentes
eleições municipais. A origem do épico mensaleiro espera, contudo, a hora de
entrar em cartaz, assim que acabar o dilema da dosimetria dos 25 condenados do
escândalo petista. Teremos, finalmente, caso a série realmente chegue ao final,
a explicação sobre como Marcos Valério de Souza foi essencial no derrame de 100
milhões de reais no caixa 2 do PSDB com o apoio de empresas estatais mineiras
comandadas pelo então governador do estado, o atual deputado federal Eduardo
Azeredo.
Vem aí
(vem?) o
“mensalão tucano”, a origem de tudo. Chamado de “mensalão mineiro” por setores
condescendentes da mídia, foi formalmente classificado como “tucanoduto” e
“valerioduto tucano” pelos agentes federais que o investigaram. Para quem
assistiu ao julgamento do caso do PT no Supremo Tribunal Federal, ninho de inovadoras
teses de domínio de fato e a condenações baseadas em percepções sensoriais, o
“mensalão tucano” será ainda mais surpreendente por ter em abundância aquilo
que muita falta fez no caso de agora: provas contundentes.
Marcos
Valério, na gênese do valerioduto
A
certidão de nascimento do milionário esquema de lavagem de dinheiro montado por
Marcos Valério em Minas e depois exportado ao PT é uma lista de pagamentos
elaborada por Cláudio Mourão, tesoureiro da campanha de Azeredo, em 1998.
Revelada em 2007, a lista trata de um total de repasses equivalente a 10,8
milhões de reais a parlamentares de 11 partidos, inclusive do PT, mas onde
reinam soberanos o PSDB e o PFL, atual DEM. Mourão tentou negar a veracidade da
lista, mas foi obrigado a reconhecer sua assinatura no papel depois de ser
desmentido por uma perícia da Polícia Federal.
Em julho
deste ano, CartaCapital trouxe à baila outra lista, desta feita assinada
por Marcos Valério, entregue à Polícia Federal e ao ministro Joaquim Barbosa
pelo advogado Dino Miraglia, de Belo Horizonte. Miraglia conseguiu a lista com
um cliente famoso, o lobista Nilton Monteiro, antigo operador das hostes
tucanas em Minas, também responsável pela divulgação de uma terceira lista, em
2002, com doações clandestinas desviadas dos cofres da estatal Furnas Centrais
Elétricas, a famosa “Lista de Furnas”, onde novamente o PSDB aparece no comando
da farra do caixa 2.
Na lista
de Marcos Valério, na qual os valores chegam a mais de 100 milhões de reais, a
novidade foi o aparecimento do nome do ministro Gilmar Mendes, do STF,
supostamente beneficiado com uma bolada de 185 mil. Na época da publicação da
reportagem, Marcos Valério negou ter registrado pagamentos em uma lista. Mas
neste início de novembro, o advogado dele, Marcelo Leonardo, desmentiu o
cliente.
Na
quarta-feira 7, em um texto no pé de uma página do jornal O Estado de S.
Paulo, Leonardo revelou ter entregue à Procuradoria-Geral da República, em
2007, uma lista com nomes de 79 políticos beneficiados com recursos do
“mensalão tucano”. Sobre o fato, o ex-procurador-geral Antonio Fernando de
Souza, destinatário da lista, desconversou: “Faz tanto tempo que saí de lá,
quase quatro anos, que sinceramente não tenho lembrança”. Na verdade, Souza
ignorou a denúncia com a desculpa de que, como se tratava de crime eleitoral, a
punibilidade estaria prescrita.
Leonardo
estranhou o fato de Souza ter ignorado a lista de Marcos Valério, pois, ao
contrário das listas de Mourão e de Furnas, esta foi acompanhada de
comprovantes do Banco Rural e do Banco de Crédito Nacional (BCN) de depósitos
nominais feitos a 79 dos mais de 300 nomes listados no documento. Conforme
havia sido noticiado por CartaCapital há três meses, os pagamentos foram
feitos pela SMP&B Comunicação. Além disso, todas as 26 páginas da lista são
rubricadas pelo publicitário mineiro, com assinatura reconhecida em cartório no
final do documento datado de 28 de março de 1999. Há ainda uma declaração
assinada por Valério, de 12 de setembro de 2007, na qual apresenta a lista à
Justiça de Minas e informa ter repassado 4,5 milhões de reais ao ex-governador
Azeredo.
Miraglia
conheceu Nilton
Monteiro enquanto atuava como assistente de acusação da família de Cristiana
Aparecida Ferreira, morta aos 24 anos por envenenamento seguido de estrangulamento
em um flat da capital mineira, em agosto de 2000. Filha de um funcionário
aposentado da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), Cristiana tinha
ligações com diversos políticos mineiros. No inquérito policial sobre o crime,
é descrita como garota de programa, mas os investigadores desconfiam que a sua
principal ocupação fosse entregar malas de dinheiro aos beneficiários do
esquema. Na lista assinada por Marcos Valério, ela aparece como destinatária de
1,8 milhão de reais. “Foi queima de arquivo”, acredita o advogado.
Também
graças a Miraglia, a Polícia Federal, a Corregedoria de Polícia Civil de Minas,
o Conselho Nacional de Justiça e o ministro Joaquim Barbosa receberam, há dois
meses, um calhamaço de informações retiradas de um CD apreendido pela polícia
mineira na casa de Monteiro. Trata-se de uma série de diálogos gravados
clandestinamente por Joaquim Egler Filho, ex-advogado do lobista.
O auto de
apreensão, datado de 21 de outubro de 2011, é assinado pelo delegado Márcio
Simões Nabak, então chefe da Divisão Especializada de Operações Especiais da
Polícia Civil mineira. No registro que se seguiu ao cumprimento do mandado na
casa de Monteiro, Nabak afirma ter encontrado um “CD-R marca Multilaser” com
diálogos entre seis pessoas, entre as quais estavam Marcos Valério e Cláudio
Mourão. Nas transcrições se fala de tudo: planos de assassinato, corrupção
policial, fraudes periciais, aventuras sexuais de autoridades tucanas, relato
de uso de drogas, tráfico de influência e propina.
Em um
trecho, supostamente gravado em outubro de 2011, Marcos Valério informa a
Mourão ter sabido que “a velha cúpula do PSDB”, segundo ele formada por FHC, os
ex-senadores Tasso Jereissati (CE) e Arthur Virgílio Neto (AM), além do senador
Álvaro Dias (PR), teria convencido alguns ministros do STF “a julgar o processo
do mensalão do PT primeiro, e somente depois o do tucanoduto de seu amigão
Eduardo Azeredo” – exatamente como ocorre agora. O publicitário teria citado
nominalmente quatro ministros.
Em outro
trecho, Mourão afirma que o delegado Nabak grampeou os telefones de Monteiro e,
em seguida, faz uma revelação bombástica: Nabak teria fechado um acordo “com o
diretor da Veja, um tal de Policarpo e (Nabak) vai receber pelos
serviços 250 mil reais para passar informações sigilosas do inquérito do Dimas
Toledo (Lista de Furnas) e do espólio e da prisão de Nilton Monteiro”. O
“tal Policarpo” é Policarpo Junior, diretor da Veja em Brasília, também
apontado como colaborador do bicheiro Carlinhos Cachoeira, atualmente preso no
presídio da Papuda, na capital federal, acusado de comandar o crime organizado
em Goiás.
CartaCapital enviou à Secretaria de Defesa Social de
Minas Gerais, à qual a Polícia Civil local está subordinada, uma cópia do auto
de apreensão, a fim de checar a veracidade do documento. Na terça-feira 6, por
telefone, o delegado Nabak deu uma explicação caótica sobre o tema. Nervoso, o
policial alegou que o documento enviado apresentava “indícios de falsificação”.
Em seguida, afirmou que a informação sobre o CD teria sido inserida no
documento para justificar a existência das degravações de Egler Filho. O
delegado informou que a papelada foi submetida a uma perícia do Instituto de
Criminalística da Polícia Civil, onde se teria constatado tratar-se de uma
montagem. Mas não soube dizer quando foi feita a tal perícia nem muito menos
quem a fez.
O
delegado Nabak recusou-se a fornecer o auto de apreensão original e, em
seguida, ameaçou abrir um inquérito para forçar o repórter a informar a origem
da cópia enviada a ele. Alterado, aconselhou a busca do documento original
diretamente no fórum de Belo Horizonte. Nem precisava do conselho: o auto de
apreensão que mexeu com os nervos do delegado é um documento público e pode ser
acessado, a qualquer momento, na 2ª e na 11ª Vara Criminal de Belo Horizonte, e
consta dos autos do inquérito 3.530 do STF, do “mensalão tucano”. Está assinado
por Nabak, por um escrivão da polícia, por Monteiro, pelo promotor Adriano
Botelho Estrela e pelo advogado Raul Almada. Todas as assinaturas tiveram
reconhecimento de firma em cartório, inclusive a do delegado.
Na
quinta-feira 8, a
Central de Imprensa da Secretaria de Governo de Minas Gerais enviou, por
e-mail, cópia de outro auto de apreensão supostamente feito na casa de Monteiro
em 20 de outubro de 2011, mas assinado por outro delegado, Éric Flávio de
Freitas, no qual não consta o CD com as gravações de Egler Filho. O documento
não tem, porém, assinatura do advogado de Monteiro, nem do próprio, nem do
representante do Ministério Público. A assessoria não enviou a cópia do suposto
laudo das degravações. Apenas informou que ele foi concluído em 6 de dezembro
de 2011 pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil sob o número 54175-1.
Para
entender todo o caso é preciso, primeiro, compreender o que se passava em 1998,
quando o PSDB ainda sonhava com um projeto de ao menos duas décadas no poder
central. Naquele ano, o presidente Fernando Henrique Cardoso derrotaria Lula e
seria reeleito para um segundo mandato, graças a um expediente constitucional
aprovado em meio a um comprovado esquema de compra de votos no Congresso
Nacional. Em Minas, o discreto Azeredo se empenhava na mesma luta, mas numa
briga difícil contra o falecido ex-presidente Itamar Franco, do PMDB.
Ciente
dos custos financeiros de uma campanha acirrada, os tucanos decidiram montar
uma máquina clandestina para arrecadar fundos de campanha longe da vigilância
da Justiça Eleitoral e da Receita Federal. É esperar para ver o que virá à tona
quando o mesmo ministro Joaquim Barbosa, caso continue a ser o relator do
“mensalão tucano” no STF, começar a descrever o que a turma de Azeredo aprontou
em Minas enquanto Marcos Valério se especializava nas artes dos empréstimos
falsos, notas frias e lavagem de dinheiro.
Ocorrido
há 14 anos, o esquema tucano foi descoberto apenas sete anos depois, em 2005,
quando a oposição enchia o Congresso de CPIs para fazer sangrar o primeiro
governo Lula com o escândalo do “mensalão”. Na época, Azeredo era senador e
presidia o PSDB. Como muitos correligionários, sabia que, ao menos em Minas, a
súbita notoriedade de Marcos Valério era um prenúncio de desastre. Protegido
pelo noticiário, inteiramente engajado na luta pelo afastamento de Lula, o
partido tirou Azeredo da presidência e se fingiu de morto.
A
denúncia sobre o
“mensalão tucano” foi feita há cinco anos por Antonio Fernando de Souza. E aí
começariam as diferenças de tratamento em relação ao caso do PT. Algoz de
Dirceu na denúncia do “mensalão petista”, a quem chamou de “chefe de quadrilha”
responsável pelo comando da compra de votos no Congresso, Souza viu a questão
do PSDB com outros olhos. Acatou, por exemplo, a tese do caixa 2. No Supremo,
outra discrepância: o processo foi desmembrado para que somente os acusados com
foro privilegiado, Azeredo e o senador Clésio Andrade (PMDB), fossem julgados
na Corte. Os outros 14 envolvidos passaram a ser responsabilidade da 9ª Vara
Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Na
denúncia apresentada ao STF, em novembro de 2007, Azeredo é acusado de ser “um
dos principais mentores e principal beneficiário” do esquema clandestino de
arrecadação montado para a fracassada campanha de 1998. O ex-governador foi
denunciado por peculato (apropriação de dinheiro por funcionário público) e
lavagem de dinheiro. O ex-procurador-geral detectou uma série de telefonemas
entre o tucano e Marcos Valério. Para Souza, o esquema de Minas serviu de
“laboratório do mensalão nacional”.
O outro
réu no STF, Clésio Andrade, é presidente da Confederação Nacional dos
Transportes (CNT) e foi vice-governador do estado no primeiro governo do atual
senador Aécio Neves. No processo, Andrade aparece como um dos principais
distribuidores de recursos de caixa 2 arrecadados por Mourão para políticos,
empresários, jornalistas, “laranjas” e correligionários tucanos registrados na
lista assinada por Marcos Valério.
A
denúncia do ex-procurador-geral informa que a campanha de Azeredo arrecadou
ilegalmente mais de 100 milhões de reais, embora o PSDB, à época, tenha
informado oficialmente 8 milhões de reais. Toda a operação do esquema de
arrecadação e pagamentos, assim como no caso do “mensalão do PT”, ficou por
conta da SMP&B, de Marcos Valério, por meio da emissão de notas fiscais
frias. Segundo Antônio Fernando, constatou-se em Minas Gerais a existência de
uma “complexa organização criminosa que atuava a partir de uma divisão muito
aprofundada de tarefas”.
Embora
tenha tentado, ainda durante as investigações da PF, negar sua vinculação
direta com a campanha de Azeredo, da qual foi o principal coordenador, o
ex-ministro Walfrido dos Mares Guia, então no PTB, teria muito a explicar sobre
o tucanoduto, mas está prestes a escapar do processo. Mares Guia vai completar
70 anos dia 24 de novembro. Com essa idade, poderá requerer a prescrição dos
crimes de peculato e lavagem de dinheiro, pelos quais foi denunciado pelo
Ministério Público Federal. O prazo de prescrição é de 16 anos, mas cai pela
metade para um réu septuagenário.
Uma das
provas
materiais mais contundentes colhidas pela PF é um conjunto de quatro folhas
manuscritas na qual Mares Guia registrou uma série de valores de arrecadação e
pagamento do esquema. O coordenador da campanha de Azeredo admitiu, ao depor
para o delegado federal Luiz Flávio Zampronha, que, de fato, era o autor do
arrazoado de nomes de empreiteiras, siglas, abreviações de nomes e valores em
reais. Foi por meio desse documento que a PF descobriu, por exemplo, que o
apoio da ex-senadora Júnia Marise à candidatura de Azeredo custou exatos 175
mil reais. O dinheiro foi transferido, via depósito bancário, pela SMP&B
para uma conta de uma assessora da parlamentar.
Tanto o
relatório da Polícia Federal quanto a denúncia da PGR apontam Clésio Andrade,
supostamente o verdadeiro dono da SMP&B, como o homem que colocou Valério
na jogada. Em 1998, Andrade era candidato a vice-governador pelo PFL na chapa
de Azeredo, cargo que só conseguiria ocupar em 2002, no primeiro mandato de
Aécio. Como operador da quadrilha, Marcos Valério criou uma complexa cadeia de
fluxo financeiro a partir de empréstimos fraudulentos feitos com por meio de
três bancos: Rural, Cidade e o de Crédito Nacional. A maior parte dos recursos
foi desviada, segundo a PF, da Companhia de Saneamento (Copasa), Companhia
Mineradora (Comig), Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge) e da Companhia
Energética do estado (Cemig).
Embora
tenha sido praticamente ignorado pela Procuradoria-Geral da República, o
relatório do delegado Zampronha concluiu que o esquema de lavagem de dinheiro
em Minas funcionava exatamente como no “mensalão do PT”, com uma ressalva
importante: no caso do tucanoduto, os desvios de recursos públicos são
explícitos. O mais emblemático deles diz respeito a um tradicional evento
estadual, o Enduro da Independência, uma prova de motocross pelas trilhas da
antiga Estrada Real de Minas. Para patrocinar a corrida, o governo Azeredo
jogou pesado e usou descaradamente a máquina estatal para drenar dinheiro para
a campanha. Ao todo, seis estatais foram mobilizadas para doar 10,7 milhões de
reais ao Enduro, tudo registrado na lista contábil de Mourão.
No relatório
de Zampronha ficou demonstrado que, apesar dos repasses milionários do governo
mineiro via Cemig, Copasa e Comig, a SMP&B repassou apenas 98 mil reais à
Confederação Brasileira de Motociclismo, organizadora oficial do evento. A
diferença serviu para alimentar o esquema de caixa 2 e pagar os empréstimos que
o publicitário fazia em nome do PSDB. De acordo com a lista de Mourão, a
sangria de dinheiro público da campanha de Azeredo, contudo, era só parte de um
esquema que iria arrecadar outros 90 milhões de reais entre empréstimos
fraudulentos e doações privadas feitas em contrapartida por serviços públicos.
A lista
elaborada pelo
tesoureiro de campanha tucana em Minas tornou-se a Pedra de Roseta da
investigação. A PF chegou até ela graças a uma rusga entre Mourão e Azeredo,
por conta de uma dívida de campanha de 500 mil reais. Em 1999, um ano depois do
fracasso da reeleição em Minas, o tesoureiro resolveu processar o chefe tucano
para receber os créditos devidos a locadoras de automóveis contratadas pelo
comitê de campanha.
Em 2002,
candidato ao Senado, Azeredo achou por bem dar um jeito de pagar o
ex-colaborador. Para tal, procurou Mares Guia e voltou a mergulhar nas águas
turvas do tucanoduto. Contabilizados os juros, a dívida de Azeredo com Mourão
havia chegado, naquele ano, a 900 mil reais, mas o acerto ficou em 700 mil
reais. Tarde demais. Os rastros dessa operação, aliados a mais uma centena de
indícios, poderão render a Azeredo, no STF, o mesmo fim dos “mensaleiros”
petistas. Vai depender da disposição dos ministros do Supremo.
Na
Justiça mineira, é difícil constatar o ímpeto em concluir os processos. A
pressão pelo julgamento dos envolvidos no tucanoduto em Minas Gerais, se vier,
terá de partir de fora do estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário