Em todo o mundo, direitos sociais estão ameaçados.
Exceções, China e Brasil estimulam consumo popular. Não é uma
alternativa real
Por Immanuel Wallerstein | Tradução: Gabriela Leite e Antonio Martins | Imagem: Julian Behal
A austeridade está, em todo o mundo, no centro das
politicas. Há aparentes exceções, em alguns países – China, Brasil, os
Estados do Golfo e talvez outros. Mas são exceções a algo que permeia o
sistema mundial, hoje – e que equivale, em parte, a uma grande
impostura. Quais são as questões?
Por um lado, o incrível desperdício de um sistema
capitalista levou a uma situação na qual o sistema mundial está ameaçado
por sua real incapacidade de continuar consumindo, globalmente, nos
níveis que eram habituais — em especial, porque isso provoca um
crescimento constante do consumo global. Estamos esgotando os elementos
básicos para a sobrevivência humana, dado que o consumismo tem sido a
base de nossas atividades produtivas e especulativas.
Por outro lado, sabemos que o consumo global tem sido
altamente desigual, tanto entre os países quanto dentro de cada país.
Além disso, a lacuna entre os beneficiários e perdedores atuais cresce
persistentemente. Essas discrepâncias constituem a polarização
fundamental de nosso sistema mundial, não apenas economicamente, mas
política e culturalmente.
E já nem se trata de um segredo, para as populações do
mundo. A mudança climática e suas consequências, a escassez de comida e
água e suas consequências são visíveis para cada vez mais pessoas,
muitas das quais estão começando a clamar por uma mudança de valores
civilizacionais – que supere o consumismo.
As consequências políticas são muito preocupantes para
alguns dos maiores produtores capitalistas. Eles estão percebendo que
não oferecem mais uma proposta política convincente, e portanto
enfrentam a restrição inevitável de sua habilidade para controlar os
recursos e riquezas. As demandas atuais por austeridade são um tipo de
esforço de última hora para segurar a onda da crise estrutural do
sistema mundial.
A austeridade que está sendo praticada é uma política
imposta aos setores economicamente mais fracos da população mundial. Os
governos estão procurando salvar-se da perspectiva de quebras bancárias e
blindar as megacorporações (especialmente, mas não somente os
megabancos), para que estas não paguem o preço de suas loucuras notórias
e sofrimentos autoinfligidos. A forma de fazê-lo é, essencialmente,
cortar (ou eliminar completamente) as redes de seguridade social que
foram erguidas historicamente para proteger os cidadãos das
consequências do desemprego, de doenças sérias, incapacidade de pagar
hipotecas e todos os outros problemas concretos que as pessoas e suas
famílias regularmente enfrentam.
Quem busca vantagens de curto prazo continua a apostar
no mercado financeiro, em transações constantes e rápidas. Mas também
esse jogo depende, no médio prazo, na capacidade de encontrar
compradores para as mercadorias produzidas. E a demanda efetiva está
desaparecendo, tanto devido aos cortes nos sistemas de seguridade quanto
por causa do medo generalizado de que haja ainda mais cortes adiante.
Os defensores da austeridade costumam assegurar, de
tempos em tempos, que estamos virando a página ou vamos fazê-lo em
breve, de modo que os tempos de prosperidade voltarão. Na verdade, nunca
estivemos próximos deste ponto mítico de virada, e as promessas de
retomada vão se tornando cada vez mais modestas e projetadas para mais
tarde
Há quem pense, também que uma saída social-democrata
ainda exista. Ao invés de austeridade, deveríamos ampliar os gastos
governamentais e tributar os mais ricos. Mesmo se isso fosse
politicamente realizável, daria certo? Os defensores da austeridade têm
um único argumento plausível. Não há, no mundo, recursos suficientes
para sustentar o nível de consumo que hoje todos desejam – já que cada
vez mais indivíduos reivindicam ampliar seu poder aquisitivo.
Aqui entram as exceções às quais me referi. Não são
países que estão alterando o grupo dos que mais consomem, mas
expandindo-o. As exceções estão, portanto, ampliando os dilemas
econômicos relacionados à crise — e não resolvendo-os.
Há apenas duas saídas para tais dilemas. Uma é estabelecer um sistema
mundo autoritário e não-capitalista, que usará a força e a dissuasão,
ao invés do “mercado”, para manter e ampliar a distribuição desigual do
consumo básico. A outra é mudar nossos valores civilizacionais.
Para construir um sistema histórico relativamente
democrático e relativamente igualitário, não precisamos de
“crescimento”, mas do que tem sido chamado, na América Latina, de bien vivir. Significa
promover continua discussão racional sobre como alocar os recursos do
planeta de modo que todos possam ter acesso a tudo o que é realmente
necessário para viver — e, além disso, assegurar que as futuras gerações
tenham a possibilidade de desfrutar do mesmo.
Para parte das populações do mundo, isso significa que
seus filhos irão consumir menos; para outras, que consumirão mais. Mas
esse sistema torna possível que todos tenham a “rede de segurança” de
uma vida garantida pela solidariedade social.
Nos próximos vinte a quarenta anos, assistiremos a uma
enorme batalha política. O que estará em jogo não é a sobrevivência do
capitalismo (que já esgotou suas possibilidades), mas o tipo de sistema
que iremos, coletivamente, “escolher” para substituí-lo. Ou um modelo
autoritário, que impõe polarização continuada (e expandida); ou um
outro, relativamente democrático e relativamente igualitário.
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