No filme o "Caçador de Androides" (Blade Runner) de Ridley Scott, o elemento que permite ao caçador diferenciar humanos de androides é a memória. Na verdade, a emoção vinculada á memória. A marca distinguível de nossa condição humana.
Não importa o tempo transcorrido. A memória coletiva de um povo é o determinante de sua identidade e, por consequência, de seu futuro. Não se trata de um simples acesso a uma narrativa do passado. É, principalmente, o caminho que nos explica o presente e determina nossas possibilidades de futuro. Afinal, a história é uma forma elaborada de memória e a invenção de um conteúdo novo só pode ocorrer na forma ilusória de um retorno à verdade original passada.
Transcorridos 27 anos de "Nova República", a ditadura militar segue sendo o trauma central de nossa história. A questão não resolvida. A memória proibida. Paixões, ódios, tensões e rancores vêm á tona quando a nação enfrenta a escolha de seu destino. Por todos os lados nos deparamos com figuras, imagens, condutas e heranças que mostram sua presença e nos recordam que esse episódio histórico não foi superado.
As eleições de 2010 confirmam essa assertiva. Os dois candidatos principais exibiram seu passado de resistência. Se por um lado, os setores mais conservadores da burguesia não podem buscar um candidato que não exiba em seu currículo um histórico de oposição á ditadura, como fizeram com Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por outro, atacaram Dilma Rousseff, exatamente por ter participado da resistência armada neste período.
A ditadura e os que lutaram contra ela, seguem incomodando, como presença constante em nosso imaginário político.
A imagem incontestável da coerência de Carlos Marighella ressurge cantada pela juventude nas periferias, em pichações por todo o país, em biografias e documentários.
A memória nos animando e conferindo forças para encarar os desafios do presente.
Ao contrário do que a versão oficial nos diz, não houve um "acordo político" que resultasse numa transição democrática. As forças populares foram derrotadas e obrigadas a aceitar o ritmo e o processo imposto pela ditadura militar. O momento decisivo foi a derrota das "Diretas Já" em 1984.
Seguimos recalcando a violência e os crimes da ditadura, clamando pelos desaparecidos, suportando a ideia de impunidade presente em torturadores gozando tranquilamente suas aposentadorias. E o que é pior, reconhecendo na atualidade a presença das mesmas práticas nos porões do Estado.
Afinal de contas, os efeitos traumáticos da violência cometida pelo regime de arbítrio permanecem vivos em nossa memória coletiva e a impunidade dos crimes cometidos segue produzindo seus efeitos na sociedade.
Sem lançarmos a luz da verdade nas dores e recordações recalcadas seguiremos aprisionados neste episódio de nossa história.
Em recente entrevista a um grupo de estudantes, Vladimir Safatle nos oferece pistas importantes: "(...) as sociedades nunca esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio armênio, há mais de cem anos. As experiências das ditaduras podem ser simbolizadas, quando você encontra uma inscrição simbólica adequada para este tipo de experiência. Como isso não existiu no Brasil dá-se um fenômeno descrito por Lacan: o que é expulso do simbólico retorna no real, e de forma violenta. Como nunca tivemos uma inscrição simbólica da violência da ditadura, ela volta agora sob a forma do desprezo, que várias parcelas da juventude têm a figuras que cometeram crimes contra a humanidade. Estamos falando do uso do aparato do Estado, da tortura, assassinato, estupros, ocultações de cadáver e coisas desta natureza".
O que é expulso do simbólico retorna no real, e de forma violenta. Exatamente. Eis porque a bandeira da "Verdade, Memória e Justiça" não é a mera satisfação do passado. Enfrentar esse trauma é fundamental na construção
de um projeto popular. Nesta luta residem energias fundamentais de nosso processo de transformação. E deve ser encarada pelas forças populares como uma bandeira central para a construção do futuro.
Não estamos apenas diante de uma bandeira de lutas que foi carregada heroicamente por familiares e vítimas da ditadura e se restringe a eles. Estamos diante da oportunidade histórica de converter o direito á memória, verdade e justiça numa luta ampla, capaz de unificar as forças populares e, principalmente, uma luta vitoriosa.
Daí o enorme efeito simbólico da juventude assumindo essa luta.
Quando jovens que nasceram muitos anos após a ditadura militar se lançam aos escrachos de torturadores abrem uma nova perspectiva para luta e fornecem um importante elemento simbólico. É como se dissessem: não importa quantos anos passem, quantas gerações surjam, essa é a nossa memória e por ela estamos lutando.
Esta forma de luta, recuperada das experiências de nosso continente, inaugurada pelo Levante Popular da Juventude, resgata nossa dignidade e oferece uma mensagem clara e transparente. Se o Estado é cúmplice deste silêncio nós não seremos!
Ao tomarem essa iniciativa, mudando placas de ruas, resgatando episódios históricos, denunciando os criminosos que seguem impunes, a juventude lança a batalha para o território das lutas sociais, abrindo novas possibilidades.
Abafada simbolicamente pelo silencio cúmplice da classe dominante retorna na luta real das gerações atuais, causando surpresa aos que achavam que o tempo havia sepultado a verdade e resgatando a moral que nos permite construir um futuro.
É fundamental alimentarmos essa luta. As inúmeras "Comissões da Verdade" que surgem nas assembleias legislativas, câmaras municipais, universidades, sindicatos, Ordem dos Advogados, movimentos sociais, vão conferindo um sentido mais profundo ao processo de resgate da memória, convertendo a importante e limitada iniciativa de uma comissão oficial, numa ferramenta que poderá trazer á luz mais que denúncias e narrativas do quebra cabeças a ser montado.
Pois a questão central, consequência necessária de nosso direito á verdade é a exigência de punição aos criminosos. Queremos que sejam punidos. Esta é a bandeira que temos que ter a coragem de erguer.
E podemos erguê-la com bons fundamentos.
Ainda que o Supremo Tribunal Federal, na Ação de Preceito Fundamental nº 153, tenha declarado que mesmo os crimes contra a humanidade foram anistiados.
No cerne deste debate encontra-se a auto anistia (Lei nº 6683) promulgada em 28 de agosto de 1979. Recordemos que o projeto de lei foi enviado pelo Ditador de plantão general Figueiredo a um Congresso Nacional de maioria da ARENA, partido da ditadura, graças à eleição indireta de senadores (os chamados biônicos, casuísmo instituído no Pacote de Abril de 1977, após notável
crescimento eleitoral do MDB, partido da oposição consentida).
E supremo escândalo, os "senadores biônicos", com menos legitimidade que o cavalo Incitatus que o Imperador Calígula (12 d.C. – 41 d.C.) "elegeu" para o senado romano, constituíam 32% do Senado Federal!
Recordemos que, mesmo assim, com toda a fraude que torna nulo esse processo, com os manifestantes impedidos de se aproximar do Congresso Nacional, com a censura aos meios de comunicação e repressão nas ruas, a autoanistia foi aprovada por apenas 5 votos!
Numa votação fraudulenta, a ditadura enfrentou o crescimento da campanha popular pela anistia ampla, geral e irrestrita, com o claro intuito de "perdoar" os criminosos agentes da repressão. Não há nenhum "pacto democrático" neste episódio. Nada além do uso da força e do arbítrio para que os criminosos escapassem da punição.
É esta fraude que o Supremo Tribunal Federal afirma que devemos respeitar?
Não.
Assim como na Argentina, Uruguai e Chile, as decisões da Justiça serão reformadas nas ruas. Em nosso caso, contando com um sólido argumento jurídico. Ao reconhecer a figura penal do "Crime contra a Humanidade", nosso país autolimitou sua soberania e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a invalidade da chamada Lei da Anistia quando estendida aos responsáveis pelos crimes praticados por agentes da repressão no período da ditadura militar.
Portanto, temos a legitimidade e a legalidade ao nosso lado, para exigir a punição aos torturadores,
assassinos e estupradores e a investigação de todos os crimes que cometeram.
Não aceitaremos o pacto do silêncio, pois a luta popular contra a ditadura não foi concluída. Nenhum torturador poderá dormir em paz, enquanto não conquistarmos o direito á Justiça.
Nosso desafio é organizar esta luta. Ampliá-la, massificá-la. Suscitar o debate jurídico que enfrente a decisão do Supremo Tribunal Federal, construir escrachos constantes que relembrem, a cada momento, quem são os criminosos. Envolver novos setores sociais e forças políticas nesta campanha. Em resumo, despertar a criatividade para conquistar na luta popular aquilo que nos impedem nas regras institucionais.
Em cada atitude de nossa luta estaremos enfrentando o esquecimento que querem nos lançar. Os criminosos saberão que se até hoje escaparam da punição do Estado, não escaparão do desprezo público. Estaremos inscrevendo simbolicamente, com a autoestima que se obtém quando se luta aquilo que tentaram sufocar ao longo de tantos anos.
Não se trata apenas de reencontrar a memória de um passado. É pelo futuro que lutaremos.
Ricardo Gebrim, militante da Consulta Popular.
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