Dênis de Moraes*
Em memória de Juan Díaz Bordenave
O cenário que envolve o jornalismo atual é complexo e intrincado. De um lado, há uma profusão de conteúdos industrializados na proporção exigida por canais multimídias em crescimento contínuo. De outro, há uma perversa concentração das informações nas mãos de poucos conglomerados empresariais, em sintonia com a meta de ampliar o valor mercantil e os padrões de acumulação e lucratividade do setor. Se apontamos essa concentração em torno de estruturas de industrialização de notícias pertencentes a megagrupos, o que é produzido obedece a uma escala de valores e de visões geralmente restrita às avaliações e conveniências das fontes controladoras. A "diversidade" apregoada pelos arautos do neoliberalismo está, quase sempre, sob forte controle das fontes de emissão, responsáveis pela mercantilização generalizada da produção simbólica.
Por outro lado, o acesso aos conteúdos é profundamente desigual. Há grave assimetria entre a expansão dos sistemas tecnológicos e a capacidade de inclusão da base da sociedade nos benefícios decorrentes. Os países mais ricos e as elites dominantes são os que mais desfrutam dos acessos, usos e vantagens do excesso de estímulos impressos e audiovisuais. Tanto os usos das tecnologias avançadas quanto a propalada "diversidade" são estratificadas e sob controle, não são para todos. Conforme o Mapa das Desigualdades Digitais, no Brasil os 10% mais ricos usufruem até cinco vezes mais dos benefícios da rede do que os 40% mais pobres da população. Como se deduz, o universo de usuários, por mais que se contem aos milhões, não corresponde à totalidade social, que é paradoxal, desigual e injusta. Existem diferentes padrões educacionais e socioeconômicos envolvidos nos processos comunicacionais e culturais, o que significa perceber que tais diferenças são intrinsecamente portadoras de desigualdades e exclusões que vicejam em meio à explosão tecnológica. Então, não há como deixar de reconhecer que consequências negativas de uma sociedade estratificada e desnivelada se projetam no usufruto seletivo e privilegiado de informações, saberes e conhecimentos.
O quadro acima sumarizado provoca uma série de impactos na práxis jornalística. Costumo dizer que o jornalismo envolve, ao mesmo tempo, a melhor profissão do mundo e uma das profissões mais problemáticas do mundo. Porque, se nenhuma outra profissão tem a variedade de contatos e trocas com a condição humana como o jornalismo, é forçoso reconhecer que a estrutura empresarial que rege o jornalismo de mercado é profundamente verticalizada, avessa a expressões autônomas e participativas por parte dos jornalistas. Essa estrutura empresarial, sob a égide dos grupos econômicos, assume e controla, monopolicamente, os processos de produção e veiculação das informações que circulam socialmente. Trata-se de uma “estrutura piramidal”, como assinala Milton Santos: “No topo, ficam os que podem captar as informações, orientá-las a um centro coletor, que as seleciona, organiza e redistribui em função do interesse próprio. Para os demais, não há, praticamente, caminho de ida e volta. São apenas receptores, sobretudo os menos capazes de decifrar os sinais e os códigos com que a mídia trabalha.” (1)
Os mecanismos de controle cresceram enormemente nas empresas de mídia, gerando, como efeito colateral, uma sensível diminuição da possibilidade de interferência autoral dos jornalistas nos produtos e mensagens que elaboram. Resultam daí ambivalências e frustrações. Sem dúvida, há desvios nos processos informativos, provocados, em larga medida, pelas conveniências de toda ordem dos grupos empresariais do setor e pelos modelos autoritários que regem as relações internas das redações - um modelo que filtra e enquadra as notícias em sintonia com as ênfases e os ocultamentos determinados, unilateralmente, por cada veículo.
Frente a tal quadro, propício a desvios e prepotências, a impaciência analítica se manifesta quando só se mede a atividade jornalística por equívocos e manipulações. Trata-se, no caso, de achar que só existe um jornalismo, quando existem jornalismos, no plural. Ora, o jornalismo só se torna prisioneiro de si mesmo quando se contenta em ser de mão única, geralmente porta-voz das frações mais acirradas das classes dominantes e, não por acaso, sempre vulnerável ao que Rodolfo Walsh situou, primorosamente, como “mentiras irrisórias, calúnias pagas e estupidez elevada à virtude”. (2)
As experiências do jornal Brasil de Fato e dos sites Carta Maior, Correio da Cidadania e Ópera Mundi têm alguma coisa a ver com o jornalismo empresarial? Evidente que não. Isso não quer dizer, obviamente, que tudo que se faz no jornalismo dos grupos midiáticos seja um lixo. Absolutizar as impugnações é ceder ao dogmatismo e desconhecer as próprias contradições e ambivalências de cada meio noticioso, bem como ignorar circunstanciais olhares críticos e brechas de inteligência dentro dos domínios midiáticos (ainda que em espaços exíguos e ocasionais para se manifestar sem embaraços). Sem subestimar a reverberação do ideário dominante nos canais midiáticos, devemos reconhecer que fatores mercadológicos, socioculturais e políticos repercutem de alguma maneira na definição de conteúdos e programações. Os meios estão entranhados no mercado e dele dependem para suas ambições monopólicas. Um de seus traços distintivos da mídia, enquanto sistema de produção de sentido, é a capacidade de processar certas demandas da audiência, o máximo possível dentro das margens de controle delineadas por estrategistas e gestores corporativos.
O que diferencia Carta Maior, Brasil de Fato, Correio da Cidadania e Ópera Mundi é que eles produzem um outro tipo de jornalismo, mais insubordinado e comprometido com a crítica ao capitalismo, ao neoliberalismo e às elites dominantes – vale dizer, ao modo de produção elitista e excludente que serve de lastro a modelos verticalizados como os da maior parte das empresas de comunicação. São publicações que se pautam por temáticas e óticas comprometidas com o universo das necessidades, reivindicações, conflitos e expectativas sociais, nos diferentes planos da vida cotidiana. Recusam assumir o cinismo das formulações sobre “objetividade” e “neutralidade”, cujo fim último é dissimular ou apagar as marcas dos interesses de classe presentes nas enunciações das máquinas midiáticas. Têm ciência de que são produtores de interpretações e leituras do mundo, de acordo com suas convicções e alvos. Mas se propõem a não confundir o tomar partido com o silenciamento ou a interdição das posições antagônicas, através da estigmatização e até da destruição das razões do outro pela artilharia de editoriais, manchetes e textos tendenciosos.
Quando tomamos contato com veículos contra-hegemônicos e alternativos, verificamos, em muitos deles, múltiplas interpretações sobre acontecimentos e situações sociais, políticas, econômicas e culturais. É, tendencialmente, um tipo de jornalismo mais plural, inclusivo no sentido de revelar-se mais permeável às causas comunitárias e populares. E, no entanto, é jornalismo. E as pessoas que fazem essas publicações são jornalistas. Quem dirige essas redações são jornalistas. Insisto que devemos adotar um raciocínio dialético em relação aos jornalistas e pensar sua práxis de uma maneira abrangente e complexa.
As formas de atuação dos jornalistas dentro das corporações podem oscilar, seja por suas posturas, habilidades ou alinhamentos, seja pelas múltiplas experiências vividas, seja por nuanças ideológicas, programáticas e mercadológicas nas diretrizes empresariais. Não podemos esquecer que, entre os jornalistas da grande imprensa, existem aqueles que tentam explorar brechas, fissuras e fendas dentro dos próprios aparatos. Com efeito, é fundamental não reduzir o jornalismo enquanto atividade complexa e plural ao tipo de jornalismo com o qual estamos em desacordo, que é aquele jornalismo que neutraliza e menospreza expressões do contraditório.
A crítica à mídia é decisiva, imperiosa e inadiável. Impossível sermos indiferentes a distorções por ela praticadas. Os principais órgãos de difusão dizem representar a vontade geral, apresentando-se à opinião pública como intérpretes do senso comum e guardiães da moralidade, quando, em verdade, espelham prioridades comerciais, intentos políticos e pretensões de poder de seus controladores, eles próprios integrantes de frações das classes dominantes. Esses desvios se chocam com interesses coletivos, que deveriam ser o ponto central a ser preservado pelos atores participantes do campo jornalístico e dos processos informativos em particular, principalmente por veículos que detêm concessões públicas de canais de rádio e televisão.
Reivindico apenas que tenhamos um olhar mais abrangente sobre a produção jornalística como um todo. Não percamos de vista que o jornalismo, por definição, é uma atividade que, a despeito de limitações e coerções, tem a ver com a liberdade de expressão e a diversidade, estando em contato privilegiado com a condição humana, a partir de uma relação febril com a realidade social. O fascínio pelo jornalismo está, a meu ver, associado à sua relação com aspirações, vicissitudes e expectativas dos homens concretos, como também à possibilidade de traduzir em textos, sons e imagens os acontecimentos sociais, econômicos, políticos e esportivos, os conflitos humanos, as criações culturais, o entretenimento, os fatos da vida cotidiana etc.
Devemos manter o espírito crítico aceso em relação aos desvios e manipulações cometidas pelos veículos de massa, sem esquecer em momento algum que existem outros jornalismos. E quando me refiro a outros jornalismos não estou me referindo apenas ao jornalismo contra-hegemônico em sentido estrito; existem vários outros jornalismos: sindical, estudantil, cultural, científico, ambientalista... Sem contar revistas e tabloides, sites, portais, TVs universitárias e educativas, agências de notícias independentes, ONGs, coletivos de produção independente, o jornalismo dos movimentos sociais, o jornalismo das rádios e televisoras comunitárias, o jornalismo das redes sociais, dos blogs, dos tablets, dos celulares, dos murais, dos telões...
Há uma pluralidade que tem que ser contemplada na análise, e nós não podemos confundir os vários jornalismos diante de nós com o jornalismo problemático da grande mídia. Nem podemos, igualmente, ignorar que o jornalismo alternativo enfrenta barreiras e tropeços: sustentabilidade; profissionalização e infra-estrutura limitadas; abrangência, circulação e penetração mais restritas. Entretanto, projetos participativos e criativos desenvolvem, presencial ou virtualmente, práticas editoriais, agendas informativas, enfoques, dinâmicas comunicacionais e interações que, não raro, põem em xeque o monolitismo ideológico-cultural que costuma caracterizar os meios tradicionais. Valorizam a diversidade no sentido proposto por Eduardo Galeano: a variedade de mundos que o mundo contém.
À luz desses pressupostos, parece-me essencial interferir nos múltiplos cenários que envolvem a atividade jornalística. A começar pela formação dos novos jornalistas, tentando superar insuficiências e percepções afoitas. Deveríamos, por exemplo, descartar a inculcação dos valores do sucesso, da competitividade e da ascensão a qualquer custo. Isso contribui para cristalizar a idéia fixa e preocupante de direcionar currículos e vocações para o mercado da grande mídia, como se fosse este o único destino promissor. Entre os efeitos colaterais dos cursos para o mercado, estão o desestímulo à reflexão crítica, o atrelamento aos tecnicismos e mandamentos corporativos, na medida em que se ajustam conteúdos ministrados a critérios e filtros estabelecidos pelas empresas de mídia para recrutar pessoas e compor seus quadros – critérios, via de regra, desfavoráveis a posturas críticas. É uma visão estreita que celebra o jornalismo tradicional e sufoca alternativas - como se fosse intolerável ter nas redações profissionais que se distinguem da geléia geral por ousar pensar para além das convenções, sanções e manuais uniformizadores. Daí a importância de se tentar reequilibrar, progressivamente, as ênfases entre o aprendizado de técnicas e linguagens, a formação humanística e o espírito crítico, abrindo o leque de perspectivas para a atuação profissional.
Por que não envolver a sociedade numa discussão ampla das atividades jornalísticas, contemplando os primados da ética, da informação veraz, da liberdade de opinião e do compromisso com a cidadania? Por que não avançar na definição de instâncias e modos de verificação de procedimentos editoriais e padrões éticos no jornalismo? São questões que a arrogância dos grupos midiáticos quer diluir e evitar, pois desejam se manter fora do alcance de mecanismos de acompanhamento e interpelação de seus eventuais equívocos ou abusos na tarefa de informar.
Mais ainda: o outro jornalismo possível exige uma urgente reformulação da legislação de comunicação no Brasil, alterando o regime de concessões de licenças de rádio e televisão. A providência se impõe tanto para coibir o clientelismo político e abrir oportunidades a canais comunitários e a uma comunicação pública não-governamental quanto para ampliar os mecanismos democráticos de fiscalização das empresas concessionárias. O poder público precisa intensificar linhas de financiamento, apoios e patrocínios que fortaleçam os meios alternativos, comunitários, sindicais e populares, que se estruturam em torno da partilha, do intercâmbio e da colaboração, sem finalidades lucrativas. Melhorar a qualidade de programação da televisão aberta também passa pela contenção da obsessão mercantil das emissoras.
Apesar dos obstáculos, há chances de evoluirmos para exercícios mais instigantes do jornalismo, inclusive aproveitando ferramentas e ecossistemas digitais (sem cair na ilusão de achar que a internet é a solução para todos os males, até porque os tentáculos da mercantilização se alastram pela rede) e desenvolvendo formas colaborativas, compartilhadas e descentralizadas de produção informativa e cultural. Significa reunir projetos convergentes e mobilizar energias criativas e consciências questionadoras para fazer reviver a inquietação jornalística e impulsionar o vigor crítico diante de um mundo reificado. Pois afinal foi esta inquietação que motivou tantos de nós, quando jovens, a escolher o jornalismo não apenas como profissão, mas também como destino histórico para nossos espíritos indomáveis.
NOTAS
(1) Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007, p. 155.
(2) Rodolfo Walsh. Ese hombre e otros papeles personales. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2007, p. 223.
* Dênis de Moraes
é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (1993) e pós-doutor pelo
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso, Argentina, 2005).
Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e
Mídia da UFF e pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Autor de mais de 20
livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba, entre
os quais Vozes abertas da América Latina (2011), La cruzada de los medios en América Latina (2011), Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital (2010), A batalha da mídia (2009), Cultura mediática y poder mundial (2006), Sociedade midiatizada (2006) e Por uma outra comunicação (2003). Pela Editora Expressão Popular publicou A esquerda e o golpe de 64 (2011).
Fonte: Editora Expressão Popular
Nenhum comentário:
Postar um comentário