Judiciário
em democracia tem de ser garantista. O STF ignorou essa tradição.
Direito penal com deduções não deve existir, por mais clamor popular que
exista.
Em 11 de novembro, a Folha
publicou entrevista com o jurista Claus Roxin em que são estabelecidas
duas premissas para a atuação do Judiciário em matéria penal. Uma é a
comprovação da autoria para designar o dolo. A outra é e que o
Judiciário, nas democracias, é garantista.
Roxin consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:
1)
"A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever
de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso
do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou
os sequestros e homicídios realizados."
2)
"É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações
severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não
corresponde ao direito".
Na
seara penal, portanto, o Judiciário age como a instância que garante as
liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma
inequívoca o que alega.
Assim,
atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel previamente
estabelecido, pelo qual "fazer justiça" significa o cumprimento correto
dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Com
Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever ao cumprimento
de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se
submeter ao clamor popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e
as garantias fundamentais.
Nesse
sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal 470, o STF se
distanciou do papel que lhe foi confiado pela Constituição de 1988,
optando em adotar uma posição não garantista, contornando uma tradição
liberal que remonta à Revolução Francesa.
Esses
equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal 470
num processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não
adotou corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico
apropriado. Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do
seguinte modo:
1)
O relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo,
utilizando-se do mesmo método da acusação. O relator vinculou o
consequente ao antecedente, presumindo-se assim a culpabilidade dos
réus.
2)
Em muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a ausência de provas.
Falou-se até em um genérico "conjunto probatório", mas nunca se apontou
em que prova o dolo foi demonstrado.
Por
isso, partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança
entre a ficção e a realidade. Foi substituída a necessária comprovação
das teses da acusação por deduções, em que não se delineia a acusação a
cada um dos réus nem as provas, limitando-se a inseri-los numa narrativa
para chegar à conclusão de suas condenações em blocos.
3)
Por fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as provas não
são suficientes para fundamentar condenações na seara penal,
substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil.
A
inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações
entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo realmente
acontecera. Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito se
chama responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.
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