ARTIGO
Anotações sobre o golpe de 1964
Por Alipio Freire
Muitos são os fatores que
levaram à derrota das forças que se articulavam em torno do Plano
Trienal e do programa das Reformas de Base capitaneados pelo presidente
João Goulart – o Jango, e a incapacidade de reagir perante os golpistas.
Neste texto tratamos das classes fundamentais (sujeitos) das mudanças
propostas, questão que consideramos pouco discutida e até pouco
conhecida pelas novas gerações de militantes:
1. O capital nacional e a herança do Governo JK
O segundo Governo do
presidente Getúlio Vargas (Partido Trabalhista Brasileiro – PTB), que
teve início em 1950, e que se encerraria de modo dramático com o seu
suicídio em 24 de agosto de 1954, propugnava um desenvolvimento nacional
independente, que implicava investimentos associados entre o Estado e o
capital nacional. Foi também nessa gestão Vargas que foi criado o
monopólio estatal do petróleo – a Petrobras.
Serão exatamente essas duas
questões o motivo central da forte oposição e conspiração da direita e
demais forças reacionárias e entreguistas contra o seu governo – as
mesmas forças – lideradas pela União Democrática Nacional, UDN, e
articuladas com o grande capital internacional e a Casa Branca – que
tentaram impedir a posse do presidente Juscelino Kubitschek – JK, em
1956 e, em seguida, tentaram não permitir a posse do presidente João
Goulart, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros (25 de agosto de
1961) e, por fim, conseguirão sucesso– dez anos depois do suicídio de
Vargas – em 31 de março de 1964.
Embora o programa do
presidente Goulart tivesse como ponto de partida o desenvolvimento
nacional proposto por Vargas, e avançasse acentuadamente no que diz
respeito à distribuição de rendas e nas leis trabalhistas, além de
herdar uma imensa dívida externa do período JK – contraída, sobretudo
com a construção de Brasília e a transferência para a nova cidade da
Capital da República, receberá uma economia no seu setor industrial
dominada por grandes empresas estrangeiras. Mais grave: os capitais
nacionais nos cinco anos do Governo JK, ao invés de se desenvolverem de
modo independente e em parceria com o Estado (como propunha Vargas),
passam a subsidiar as grandes empresas estrangeiras.
Explicamos: por lei, as
empresas internacionais podiam investir e criar suas grandes plantas no
Brasil. No entanto, na área de acessórios, produção de peças e outros
complementos para seus produtos, elas se obrigavam a ter como
fornecedores, empresas de capital brasileiro. Ora, neste momento, um
grande número de capitais nacionais passa a investir na produção de
acessórios para o grande capital internacional, tornando-se
primeiramente reféns em termos econômicos deste último (únicos ou
majoritários clientes) e consequentemente seus sócios políticos. Isto é
mais visível no que diz respeito às indústrias de autopeças que
produziam para as grandes montadoras, mas aconteceu nas diversas áreas
da produção.
Ou seja, amplos setores do
capital nacional, que deveriam se constituir em importante (e
fundamental) base social, política e econômica para o programa Jango,
acabam por se tornar base social, política e econômica do grande capital
internacional e suas maquinações.
Na historiografia
brasileira, e mesmo para os cidadãos em geral (inclusive grandes setores
da nossa esquerda), o Governo JK é considerado“Os anos dourados”.
O grande problema, porém, é que nem tudo o que reluz, é ouro.
2. A classe trabalhadora urbana
Bem mais que o
projeto/programa Vargas, a distribuição de renda era um ponto da maior
importância para o Governo do presidente Goulart. Melhor dito, a questão
da distribuição de renda era um ponto estrutural do programa Goulart: o
desenvolvimento da produção que se propunha exigia mercado de consumo
interno.
A classe operária, os
assalariados urbanos e rurais, o campesinato e todos os setores
populares eram entendidos como base social, econômica e política,
fundamental para as reformas pretendidas.
No entanto, para se constituírem em sujeito político, era indispensável que essas classes estivessem organizadas.
E este foi o grande nó da questão – que até hoje, apesar da Constituição de 1988, não foi totalmente desatado.
Os trabalhadores urbanos já
vinham num processo de organização em sindicatos, mas sindicatos nos
moldes da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, conforme ditada pelo
presidente Vargas no 1º de Maio de 1943 (Estado Novo). Acontece que a
CLT – como sabemos –, através da Carta Sindical (documento que define as
condições e formato para que o Estado reconheça uma organização de
trabalhadores como um sindicato). Ao mesmo tempo, a CLT decide que as
finanças dos sindicatos devem se originar do Imposto Sindical, recolhido
(desconto de um dia de trabalho/ano de todos os assalariados) pelo
Ministério do Trabalho, cujo montante total da coleta distribui pelos
diversos sindicatos.
Ao lado disto, reza ainda o
documento de 1943, que as categorias de trabalhadores só podem se
organizar verticalmente (químicos com químicos; jornalistas com
jornalistas; bancários com bancários; comerciários com comerciários; e
assim por diante), proibindo, portanto, qualquer possibilidade de
construção de central sindical.
A CLT impõe ainda uma série
de outras normas – como, por exemplo, a não coincidência de data base
das diversas categorias de trabalhadores para as campanhas salariais –
sempre com o objetivo de manter os sindicatos sob o controle estatal, e
de dividir e enfraquecer as lutas dos trabalhadores.
Apesar de tudo isto, será durante o Governo do Presidente Goulart que
teremos a experiência do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT, que
assume este nome durante o IV
Congresso Sindical Nacional dos Trabalhadores (1962), em São Paulo,
congregando organizações oficiais como a Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria (CNTI), a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Estabelecimentos de Crédito (Contec) e a Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos
(CNTTMFA), além de organizações paralelas, como a Comissão Permanente
das Organizações Sindicais (CPOS), o Pacto de Unidade e Ação (PUA) e o
Fórum Social de Debates (FSD).
Embora o CGT tenha
desempenhado um ativo papel, o fato é que, cerca de dois anos depois de
sua fundação, a sacrossanta aliança da maioria dos comandos militares, o
grande capital internacional e seus associados nacionais, amplos
setores das camadas médias urbanas e a Casa Branca e seus serviços de
inteligência depõem o presidente João Goulart.
Mas, além da CLT e todos os
seus mecanismos, outro fator crucial para a transformação da classe
trabalhadora urbana em sujeito político capaz de enfrentar os golpistas e
resistir, foi a política populista dos partidos e organizações
interessadas nas reformas, em particular do Partido Trabalhista
Brasileiro – PTB (partido do presidente João Goulart), e do Partido
Comunista Brasileiro – PCB.
Usamos a expressão
“populista”,para nos referir a um tipo de política que organizava os
trabalhadores em torno das sedes dos sindicatos e das lideranças e
dirigentes, não emprestando qualquer atenção ou importância à
organização no interior das empresas, e tratando de uma forma menor e
rebaixada, a importância das organizações dos trabalhadores em seus
bairros – seus locais de moradia.
Ou seja, juntando-se os ditames da CLT com o que chamamos de populismo o que teremos será a ocupaçãolegal
(pois prevista pela CLT em vigor) das sedes dos sindicatos pelas forças
golpistas, e prisões, perseguições e mesmo assassinatos dos seus
dirigentes. Assim, sem qualquer outro tipo de organização, a classe
trabalhadora urbana rapidamente se esgarça, tornando-se incapaz de
assumir seu papel de sujeito político e, portanto, sem qualquer condição
de resistir
3. Trabalhadores rurais e campesinato
O presidente Goulart foi o
único chefe de Estado e Governo brasileiro a peitar a questão da Reforma
Agrária – território sagrado para nossas elites: fossem os grandes
latifundiários dos anos 1960, seja, hoje, o agronegócio – com todos os
seus sócios, aliados e parceiros de rapinagem.
Será em seu Governo que
assistiremos a extensão dos direitos dos trabalhadores urbanos para o
campo; a criação de cerca de 1 200 sindicatos rurais e a fundação da
CONTAG –Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura,
considerada até hoje a mais importante iniciativa trabalhista no campo
brasileiro.
Ao lado disto, temos diversos movimentos camponeses atuando, tanto de orientação de esquerda quanto da direita.
Entender a importância do
campo para o programa de reformas e os percalços vividos por esta classe
antes e durante o golpe exige uma narrativa mais ampla, que será objeto
de outro artigo desta série, com a qual pretendemos nos preparar para
entender (sobretudo os leitores mais jovens) o golpe que no próximo ano
completará meio século.
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