Convocada pelo MPL, manifestação desta semana foca corrupção no Metrô-SP e pode questionar relações entre poder econômico e política
Por Tadeu Breda
Na próxima quarta-feira, 14 de agosto, os paulistanos, quem sabe todos os brasileiros, terão mais uma oportunidade de dar um chacoalhão na classe política tradicional. Para este dia está marcado um protesto contra o “propinoduto tucano”, alcunha com que se convencionou denominar ao recém-divulgado esquema de corrupção envolvendo três administrações do PSDB à frente do governo do estado (Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra) e grandes empresas do setor metroferroviário, como a alemã Siemens, a francesa Alstom, a japonesa Mitsui e a espanhola CAF.
Assim como nas manifestações pela redução da tarifa do transporte público, que sacudiram a capital no último mês de junho, é o Movimento Passe Livre quem está convocando a passeata. E, mais uma vez, os jovens que lutam pela tarifa zero contam com o apoio do Sindicato dos Metroviários de São Paulo e outras entidades sociais. O novo protesto é um prolongamento bastante lógico da mobilização impulsionada pelo MPL desde sua fundação, em 2005, e que há dois meses chegou ao ápice, com milhões de pessoas nas ruas da cidade – e com reflexos multitudinários pelo país afora.
Coerente com seu discurso político, o Passe Livre vem denunciando repetidamente o servilismo do Estado e Município de São Paulo aos interesses das empresas de transporte. São elas que, de acordo com o movimento, concentram a maior parte dos recursos financeiros destinados às linhas de ônibus, trem e metrô, enquanto o preço da passagem só faz aumentar e o poder público não se movimenta no sentido de defender os interesses da população, quando isso fere os interesses dos cartéis ou máfias que se formam entre os empresários do setor.
No caso do propinoduto tucano, assim como no da revogação da tarifa, é exatamente de cartéis que se trata. Há dois meses, eram empresas de ônibus que se juntaram para pressionar a prefeitura e garantir preços vantajosos a seus negócios, com violência, se for preciso. Agora, denúncias da própria Siemens ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) indicam que corporações estrangeiras se uniram, com as bênçãos do governo estadual, para burlar a concorrência e elevar o preço das licitações para a construção de novas linhas de metrô e para a reforma de trens em São Paulo.
Assim como acontece com o preço das tarifas, quem acaba pagando a conta é sempre o cidadão. E duas vezes: primeiro, no imposto, que vai para o Tesouro e acaba sendo mal gasto – ou roubado – pela má-fé de governantes mancomunados com empresas, e que preferem atender o benefício delas ao invés do direito da população; depois, na passagem que desembolsamos ao tomar a condução de cada dia. Ainda por cima, como todo mundo já sabe, somos obrigado a utilizar um serviço lento, sucateado e lotado. E aí passamos a pagar outro preço, que não é mais monetário, mas psíquico e social – ou infernal, como diria Marilena Chauí.
A manifestação de quarta-feira articula, mais uma vez, a defesa do transporte público com a denúncia de boa parte da podridão política paulistana – e brasileira. Por um lado, protestar contra o propinoduto tucano tem a ver com ir ao ponto nevrálgico do preço da tarifa, que, como o MPL não se cansa de repetir, está na concepção do transporte público como serviço voltado a gerar lucro, e não como um direito social inalienável do cidadão. Assim nos ônibus como nos trens e metrôs. Ou alguém acredita que o dinheiro adicional gasto pelo governo do estado para pagar os serviços superfaturados da Siemens, Alstom e CAF não incide sobre o cálculo do preço que será cobrado pela tarifa depois de finalizadas as obras?
Por outro lado, o propinoduto tucano é mais uma mostra de que o valor abusivo que cada um de nós paga diariamente para se locomover pelas metrópoles brasileiras está intimamente relacionado ao funcionamento do sistema político – e é apenas mais um exemplo do quão necessária e urgente se mostra uma reforma que institua, por exemplo, o financiamento público das campanhas eleitorais.
É amplamente sabido que no Brasil vigora uma velha equação: empresas doam ao candidato xis, que vence as eleições e, em troca do dinheiro que viabilizou sua vitória, defende os interesses de seus benfeitores no congresso, assembleias legislativas, câmaras de vereadores e palácios de governo. Eis o verdadeiro ninho da corrupção, que é estrutural, e não apenas obra da safadeza de fulano ou sicrano. Por isso, querer que a corrupção acabe apenas porque é errado, como prega o discurso moralista em voga, não passa de ingenuidade.
Eu não me surpreenderia em saber que Alstom, Siemens e CAF doaram para as campanhas tucanas de Covas, Alckmin e Serra em São Paulo. Nem em saber que doaram também para a campanha rival, no caso, petista ou malufista. Empresas que têm muita bala na agulha – e muitos interesses – doam para todos que tenham chances de ganhar. Assim, garantem seu favorecimento no governo de quem quer que seja. Também não me surpreenderia em saber que os vereadores paulistanos têm o rabo preso com as empresas de transporte da cidade.
Se se espalhar pelo país, como em junho, a nova manifestação convocada pelo MPL em São Paulo pode ser um passo firme na direção de um país efetivamente mais justo, porque está definindo seus alvos com mais precisão. Não digo que não conseguirão, mas, ao menos desta vez, a grande mídia, com Globo e Arnaldo Jabor adiante, não terão a mesma facilidade em se apropriar do slogan “Não é só por 20 centavos” e moldá-lo a seu bel-prazer, ignorando totalmente o discurso de quem havia convocado as manifestações. Caso a rebeldia volte a explodir, também não será tão fácil aos políticos bem instalados no poder matar no peito o descontentamento popular, tergiversar os gritos das ruas e manter tudo exatamente como está, o status quo intacto, sem nem mesmo precisar abdicar do sagrado recesso branco no meio do ano.
Absolutamente nada mudou no Brasil desde que tomamos as ruas: nenhum interesse foi ferido, nenhuma estrutura ruiu ou sequer balançou. A máquina da injustiça segue azeitada – e produzindo. Os otimistas dirão que o brasileiro entendeu que vale a pena protestar e ressuscitou a utopia no imaginário coletivo da nação – e é verdade, mas tudo continua exatamente como está.
No dia 14, os 20 centavos não estarão em pauta, mas sim estará seu significado original: a podridão político-empresarial que se apoderou da democracia brasileira em todos os níveis e em todos os grandes partidos, aproximando nossos representantes dos interesses das elites e afastando-os dos anseios da maioria da população. Na quarta-feira veremos se o tal gigante – aquele criado a ovomaltine e leite com pera – realmente acordou ou se a causa da justiça social no Brasil terá que ser defendida mais uma vez, como sempre foi, pelos insones anões que jamais se deixaram enganar pelo brilho da tevê. E que apanham da polícia sem ter quem lhes defenda.
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