Publicado no jornal AVERDADE
Qual
boletim de sindicato, de movimento popular, jornal ou outras
publicações de esquerda não citaram o “Analfabeto Político”; não
mencionaram que ninguém chama de violentas as margens que oprimem o rio;
não alertaram para o individualismo e o comodismo de quem não se
preocupa que alguém lhe tire uma rosa do jardim, que sequestrem o
vizinho porque não tem nada a ver com isso, até que seja tarde demais;
“Há homens que lutam a vida toda…”. Às vezes, sim, às vezes, não,
escreve-se o nome de quem elaborou esses pensamentos tão profundos e
eternos.
A mesma Alemanha que gerou Hitler para a
destruição da Humanidade, produziu seu antídoto sintetizado pelo
filósofo que não veio para interpretar, mas para transformar o mundo
(Karl Marx) e no campo da cultura, pelo genial Eugen Bertholt Friedrich
Brecht. Ele nasceu no dia 10 de fevereiro de 1898, em Augsburg, extremo
sul da Alemanha. Mudou-se para Berlim no final da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918). Viveu na juventude toda a efervescência e acirradas
lutas de classes da República de Weimar.
Poucos e Frutíferos Anos
As perdas humanas e territoriais que a
Rússia teve na Primeira Guerra Mundial foram compensadas pelo avanço que
significou a Revolução Bolchevique (1917). Já o povo alemão, nada
ganhou. Derrotada, a Alemanha teve de assinar o Tratado de Versalhes em
condições humilhantes. Com o rabo entre as pernas, o Império (II Reich)
saiu de cena e cedeu lugar à República, fundada na cidade de Weimar.
Nas condições em que surgiu, tendo de
assinar a rendição, sem provocar alterações no sistema econômico
(capitalista), o povo não entendeu a República como uma conquista.
Consideravam-na fraca, elemento que seria muito bem explorado pelos
nazistas para obter a adesão popular a um regime totalitarista que
acenava com a perspectiva de uma nação forte, dominadora, e anunciava a
superioridade da raça ariana e o resgate do seu poderio. O fim do regime
republicano ocorre em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao Governo e
ao poder.
Mas foram anos intensos em que,
influenciado pela Revolução Russa, o povo alemão viveu lutas memoráveis,
inclusive uma tentativa de tomada do poder à bolchevique, com a
Revolução Espartaquista (1919)(1). No campo da cultura, a efervescência
dos anos 20 do século passado não teve precedente nem consequente.
Brecht, que já iniciara sua produção
teatral no interior, bebe das fontes revolucionárias, representadas na
Alemanha por Erwin Piscator, por meio do qual conhece, assimila e se
aprofunda na teoria e na prática da Proletkult (Cultura Proletária)
russa (1917-1926). Inspiram-no Emilevitch e Victor Chklovski , com sua
teoria do estranhamento.
Isto é, tirar o convencional do palco,
causar estranheza para provocar a reflexão. O público deixa de ser mero
espectador para participar de todo o processo da produção teatral:
montagem, ensaios, encenação, debates posteriores, sempre contribuindo,
questionando, intervindo. O Construtivismo negava a arte pela arte, arte
como simples entretenimento ou produto de mercado. O teatro épico se
contrapõe ao teatro dramático, de origem grega, cuja definição se faz
por ninguém mais, ninguém menos que Aristóteles, em sua Poética:
“…conduz o espectador a uma ilusão da realidade e redução da percepção
crítica”.(2) No teatro épico revolucionário a diferença não está apenas
na objetividade do conteúdo, mas também na forma, dialeticamente
relacionados: o proletariado vai para o palco (conteúdo) e o palco vem
para o meio do proletariado (forma. A criação também se tornou
prioritariamente coletiva; a esta prática, Brecht não aderiu
inteiramente, dada a sua genialidade como autor.
Brecht não foi apenas dramaturgo. Foi
poeta, pensador e pôs a mão no cinema. Nesses aspectos, as influências
também são grandiosas e revolucionárias: o grande poeta Maiakovski (3), o
não menos festejado cineasta Sergei Eisestein e as técnicas de colagem
de Picasso (4)adaptadas para o teatro e o cinema(5).
Nos anos 20, o rádio era, ainda, uma
experiência embrionária. Brecht previu sua importância como instrumento
de educação, mobilização, formação de opinião do povo. Escreveu a TEORIA
DO RÁDIO, à qual a esquerda não deu muita importância, infelizmente,
porque Hitler soube utilizá-la magistralmente.
Com a subida de Hitler e do nazismo ao
poder, qualquer sopro de criação, qualquer movimento de massa à esquerda
foi esmagado sem dó nem piedade. Além de artista revolucionário,
Bertolt Brecht se filiara ao Partido Comunista da Alemanha no final dos
anos 20. Antes de ser massacrado pela bota opressora, exilou-se. Longe
do movimento de massas, dedicou-se à reflexão sobre o teatro e a arte em
geral, escreveu poemas e produziu peças. Nestas, sem abrir mão da
objetividade revolucionária, deu ênfase também ao comportamento, aos
sentimentos humanos, sem esconder que eles provêm da vida social. Foram
as peças desse período que o tornaram conhecido mundialmente. Entre
outras, A Mãe, O Casamento do Pequeno-Burguês, O Círculo de Giz
Caucasiano, Os Fuzis da Senhora Carrar.
Passou pela Áustria, Suíça, Dinamarca,
Finlândia, Suécia, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos. Em 1947, dois
anos após o término da Segunda Guerra Mundial, retorna à Alemanha,
vivendo na parte oriental, que passou a compor o bloco socialista. Aí,
fundou a Companhia Teatral Berlim Ensemble, que encenava,
principalmente, suas peças, e publicou suas Obras Completas. Recebeu o
Prêmio Stalin da Paz em 1954. Faleceu no dia 14 de agosto de 1956, aos
58 anos de idade.
Brecht no Brasil
A influência brechtiana no Brasil
remonta aos anos 40 e teve seu auge nos anos que antecederam ao golpe de
estado de 1964, com o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, o Teatro
de Arena, o Teatro do Oprimido, o Cinema Novo. Autores como Dias Gomes,
Augusto Boal, IdibalPiveta, Glauber Rocha, Zé Celso Martinez têm maior
ou menor referência em Brecht.
No período da ditadura, se a expressão é
bem mais difícil, a referência continua forte e reflui nos anos 80/90.
Ocorre que a redemocratização trouxe a ilusão de volta e a crença,
tantas vezes refutada pela História, de que a via institucional é capaz
de promover a transformação da sociedade. Assim, em vez de mobilizar,
organizar e desenvolver a consciência de classe, a grande maioria da
esquerda passa a preocupar-se com a conquista do voto. Esta guinada foi
influenciada também pelo fim do bloco socialista soviético. A burguesia
cantou vitória e afirmou: a História terminou.
Demorou pouco para a História seguir seu
curso e para a Teoria Marxista comprovar seu caráter científico:
enquanto houver divisão de classes, a luta será o motor da História. O
capitalismo cava a própria cova, enredado em suas contradições
insolúveis. A crise se instalou na periferia, atingiu o centro e não
vislumbra solução dentro do sistema, e o povo oprimido saiu da
acomodação tanto lá como aqui.
Mas nem todo mundo se rendeu (ou se
vendeu) ao canto da sereia burguesa. Em 1997, nasce em São Paulo a
Companhia do Latão7, com a proposta de resgatar Brecht, sem dogmatismo,
pois isto seria trair a teoria brechteana. Em 1998, é celebrado o
centenário de nascimento do grande dramaturgo e poeta, com encenação de
peças, debates, conferências e outras atividades.
A proposta de um teatro, de uma arte,
que não seja mero entretenimento para o “respeitável público” é mais
atual do que nunca. É preciso que seja retomada não apenas como
expressão da vida do povo, mas como meio de transformação a partir da
reflexão, da participação, da organização.
A peça Ensaio sobre o Latão, encenada
pela Companhia do Latão, termina com o Diretor falando: “…Queremos
espectadores despertos capazes de sonhar em pleno dia…”. É dizer, não
sonhar o sonho impossível, que acontece muitas vezes durante o nosso
sono. Mas sonhar acordado, com os pés no chão, aquele sonho mobilizador
de que falava Lenin, parodiando o poeta Pisarev. O sonho que não se
sonha só, mas é um sonho coletivo, que nega a realidade em que vivemos,
supera o comodismo e nos mobiliza em vista da sociedade sem classes que
enxergamos numa revolucionária visão do futuro.
José Levino é historiador
Notas1. Sobre a Revolução Espartaquista, leia A Verdade, nº 59, no artigo da pg. 12, dedicado a Rosa Luxemburgo.
2. Citado por Camila HespanholPeruchi em Companhia do Latão, uma experiência com teatro dialético no Brasil – projeto de iniciação científica – Universidade Estadual de Maringá (PR).
3. Sobre Maiakovski, leia artigo em A Verdade, nº 149.
4. Sobre Pablo Picasso, leia A Verdade, nº 90.
5. Brecht, entre documentários e filmes de menor repercussão, produziu KuhleWampe, filme sobre a vida e os anseios da classe operária.
Louvor do Revolucionário
Bertolt Brecht
Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?
Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.
Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.
Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.
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