Impasses
que marcaram movimentos de libertação nacional ressurgem na África do Sul.
Que está em jogo? Quais as alternativas?
Que está em jogo? Quais as alternativas?
Por Immanuel
Wallerstein | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: John Adams
O ícone
está morto. Longa vida a quê? O mundo assistiu, em dezembro de 2013, à incrível
celebração no funeral de Nelson Mandela. Os elogios eram inacabáveis. Mais
chefes de estado e de governo, passados e presentes, prestaram homenagem do que
em qualquer outro funeral na história. Houve, é claro, algumas vozes contrárias
entre os comentários, mas realmente muito poucas. Existia, certamente, uma boa
parte de hipocrisia na celebração, mas também houve expressões de dor genuínas,
e uma admiração verdadeira por alguém extraordinário. Foi o último viva
quem a África do Sul chamava de Tata Madiba.
Mas e
agora? A realidade para a África do Sul é que, qualquer que tenha sido o papel
de Mandela na luta contra o apartheid e depois, na (re)construção do país e na
passagem do poder político para outros, ele não pode mais desempenhá-lo. O país
está agora em suas próprias maõs, para melhor ou pior — sem a graça especial
concedida por um ícone vivo. Quais são seus conflitos internos presentes e sua
atual posição geopolítica? E o que podemos esperar que ela seja, nas próximas
décadas?
A
primeira coisa que podemos esperar é um contínuo, talvez rápido, declínio da
organização de Mandela, o Congresso Nacional Africano (CNA). O CNA foi a força
que liderou a luta contra o apartheid (embora não a única). Contra dificuldades
aparentemente enormes, a organização ganhou a batalha política. Alcançou sua
demanda principal, um sistema político baseado em um voto por pessoa. Nas
primeiras eleições da África do Sul sob sufrágio universal, Nelson Mandela foi
eleito presidente, em 1994, e o CNA ganhou mais de dois terços das cadeiras no
legislativo. Repetiu esta demonstração política de apoio nas duas eleições
presidenciais subsequentes de Thabo Mbeki e Jacob Zuma, assim como na maior
parte das eleições regionais e locais.
No
entanto, já está visivelmente em declínio. Por quê? A primeira explicação é que
todos os movimentos nacionais de libertação que ganharam poder após uma longa
luta tiveram um período inicial de apoio eleitoral enorme, seguido por um
declínio, frequentemente abrupto. Isso ocorre por três razões: (1) Expectativas
populares de melhoras drásticas, especialmente na esfera econômica, não foram
atendidas. Inclusive, em vários casos, a situação ficou pior, para um grande
número de pessoas. (2) Ao mesmo tempo, existe uma grande corrupção entre os
governantes eleitos e gente favorecida por eles, e há uma luta interna cada vez
maior entre os principais líderes. (3) Com o tempo, uma parcela cada vez maior
dos eleitores é jovem demais para ter memória direta da vida sob o regime
anterior.
No caso
da África do Sul, os problemas genéricos a todos os movimentos nacionais de
libertação misturam-se a uma história política particular. O CNA articulou-se
numa aliança política tripartite, que reunia também o Partido Comunista da
África do Sul (PCAS) e o Congresso dos Sindicatos da África do Sul (Cosatu, em
inglês). Ambas as organizações foram afetadas pelo declínio do CNA.
O PCAS
desempenha há muito tempo um papel político bem além de sua força eleitoral.
Isso levou-o a se aproximar muito da CNA, movido pelo medo óbvio de que
qualquer divisão significaria um desastre eleitoral, tornando-o politicamente
irrelevante. Certos membros do PCAS, ou ex-membros, tornaram-se alguns dos
principais proponentes de uma orientação neoliberal para o governo. Outros têm
reformulado suas aspirações socialistas, que agora veem como um projeto de
muito muito longo prazo.
A Cosatu,
diferente do PCAS, tem uma base numérica significativa. Mas é uma federação de
sindicatos, que têm interesses variados, e cujos líderes fazem diferentes
análises da situação política atual. Em versão resumida, os debates internos da
Cosatu dão-se porque alguns grandes sindicatos estão prontos para romper com o
CNA e estimular ativamente filiações partidárias alternativas. Outros clamam
exatamente pelo oposto. Isso divide os sindicatos entre si e no interior de
cada um. A Cosatu está a ponto de uma grande virada, envolvendo uma provável
ruptura orgânica interna. Se os sindicatos vão continuar, depois disso, a ser
um grande ator na cena da África do Sul na próxima década, é algo muito
incerto.
Por fim,
o próprio CNA está cada vez mais dividido. Houve dois rachas antes nisso, mas
nenhuma das organizações resultantes pareceu avançar eleitoralmente. Hoje, um
rompimento provavelmente teria consequências mais sérias. Há duas divisões
básicas dentro do CNA. Uma é étnica, entre os líderes, enraizados em um ou
outro dos maiores grupos – Xhosa e Zulu. A outra tem a ver com a segunda grande
conquista sul-africana com repercussão mundial, o caráter não racial do regime.
Existe agora uma grande facção que pede a rejeição do chamado “arco-íris” e da
declaração de uma precedência “africanista” para o partido. A questão mais
quente que isso envolve é a redistribuição da terra, ainda largamente nas mãos
dos fazendeiros brancos.
Além dos
conflitos internos, a África do Sul tem tido um papel relativamente importante
na cena mundial, e sua atividade geopolítica tem sido objeto de críticas
crescentes. O país é um dos cinco membros do BRICS (Brasil, Rússia, China,
Índia e África do Sul) – o menor e mais fraco economicamente deles. Há muito
debate na África do Sul sobre em que grau esta ligação permite aos outros,
principalmente a China, tirar proveito das riquezas sul-africanas.
A África
do Sul é ao mesmo tempo um peso-pesado no continente africano, e seu exército
cumpriu um papel ativo na “manutenção da paz” em vários países. A questão: isso
é subimperialismo, imperialismo direto que reflete os interesses econômicos da
África do Sul, ou, ao contrário, uma expressão virtuosa de autonomia regional e
solidariedade?
Por
último, assim como em boa parte do mundo, existe um grande e crescente
desemprego. E, como em grande parte do planeta, a reação política tem sido uma
crescente xenofobia, levando a ataques a moçambicanos e outros, que imigraram
em busca de melhora econômica.
De
diversas maneiras, a África do Sul é um barril de pólvora, prestes a explodir.
Ainda assim, do lado positivo, tem a Constituição mais progressista do mundo
(considerando, é claro, que seja respeitada). Ainda goza de uma das arenas de
debate político mais abertas e vivas. E tem um número impressionante de
movimentos sociais de base.
Daqui a
uma década, a África do Sul provavelmente parecerá muito diferente. A questão
é: vai estar melhor ou pior?
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