Venicio A. de Lima *
Bernardo Kucinski e eu já argumentamos que apesar das eventuais divergências, no Brasil, a grande mídia trabalha como se existisse um único editor.
A filial brasileira da Thomson Reuters – “a maior agência internacional de notícias e multimídia do mundo”, com sede em New York, Estados Unidos – divulgou recentemente uma matéria sob o título “China orienta imprensa contra "pontos de vista errados".
O texto foi reproduzido no Estadão e, posteriormente, em
dezenas de jornais, portais e blogs Brasil afora [basta colocar o título
da matéria no Google para verificar].
Trata-se de diretriz do Partido Comunista Chinês, sob orientação do novo presidente Xi Jinping, que determinou “à
imprensa estatal que pare de noticiar ‘pontos de vista errados’, e que
em vez disso cubra histórias positivas, que promovam ‘valores
socialistas’.” De acordo com as novas diretrizes, comenta a
Reuters, busca-se reforçar "os valores socialistas centrais" e os meios
de comunicação devem "manter resolutamente a correta orientação da
opinião pública". A matéria informa ainda que, segundo as recomendações,
"os órgãos noticiosos e editoriais e quem trabalha no setor devem
fortalecer a autorregulamentação e aumentar com seriedade seu senso de
responsabilidade e a capacidade de promover os valores socialistas
centrais”.
Parágrafos omitidos
Curiosamente a Reuters Brasil, o Estadão e todos os demais, sem
qualquer explicação para o leitor brasileiro, reproduziram apenas seis
(6) dos onze (11) parágrafos da matéria original, divulgada pela própria
Reuters.
Nos parágrafos omitidos as diretrizes do Partido Comunista Chinês, divulgadas pela agencia oficial Xinhua, explicitam que “os
valores socialistas centrais” incluem “ideais sublimes como democracia,
igualdade e estado de direito, mas também as posições orientadoras
marxistas na China de hoje”.
China vs. Brasil
Sem entrar na questão sobre a natureza do regime chinês –
socialismo ou país de economia mista, dirigido por um partido único? – o
mais interessante, todavia, é comparar as orientações para a imprensa
“estatal” na China com o comportamento padrão da imprensa privada em
países capitalistas, como o Brasil.
Evidentemente não existe aqui um Partido Capitalista Brasileiro
distribuindo orientações para que a imprensa “pare de noticiar ‘pontos
de vista errados’, e que em vez disso cubra histórias positivas, que
promovam ‘valores capitalistas’. Ou lembrando que os meios de
comunicação devem "manter resolutamente a correta orientação da opinião
pública". Menos ainda, estabelecendo diretrizes para que "os órgãos
noticiosos e editoriais e quem trabalha no setor (fortaleça) a
autorregulamentação e (aumente) com seriedade seu senso de
responsabilidade e a capacidade de promover os valores capitalistas
centrais”. Ou, explicando que “os valores capitalistas centrais” incluem
“ideais sublimes como democracia, igualdade e estado de direito, mas
também as posições orientadoras capitalistas no Brasil de hoje”.
Na verdade, a grande imprensa brasileira já faz tudo isso, dia após
dia, sem que seja necessária qualquer orientação centralizada em um
partido institucionalizado formalmente.
Somos mais práticos. Aqui, simplesmente funciona assim.
Bernardo Kucinski e eu já argumentamos que apesar das eventuais
divergências existentes na disputa de mercados, no Brasil, a grande
mídia trabalha dentro de uma mesma lógica, como se existisse um único
editor, um supra editor (cf. Diálogos da Perplexidade; Editora Perseu
Abramo, 2009; pp. 97 segs.).
No Prefácio para o meu Regulação das Comunicações (Paulus, 2011), Kucinski escreveu: “a
mídia brasileira forma hoje um compacto político-ideológico em defesa
dos fundamentos do modelo econômico chamado neoliberal: privatizações,
terceirizações, flexibilização das leis trabalhistas e desregulação do
movimento de capitais. Também combate em uníssono as principais
políticas públicas dos governos Lula-Dilma, como o Bolsa Família, o
Plano Nacional de Direitos Humanos, as cotas nas universidades e a
política externa” (cf. p. 12).
Judith e Antonio
É verdade: as entidades empresariais que congregam os principais
meios de comunicação no Brasil – a ANJ, a ABERT e a ANER – também
orientam seus associados em defesa dos princípios “da livre iniciativa”
que conduzem as operações desse tipo de empresa comercial no
capitalismo.
Todavia, embora dirigentes dessas entidades já tenham reconhecido
publicamente que a grande imprensa funciona como um partido político,
não é necessário que se constitua e se registre no TSE um partido
político formal que emita orientações para a imprensa brasileira.
Como se sabe,Judith Brito, à época
presidente da ANJ, hoje diretora-superintendente do Grupo Folha e
coloboradora do Instituto Millenium, declarou em março de 2010:
“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser
limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da
responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios
de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste
país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de
oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o
governo” [cf. cf. "Ações contra tentativa de cercear a imprensa", O Globo, 19/3/2010, pág. 10].
Neste ponto Judith Brito e Antonio Gramsci (1891-1937) não poderiam
concordar mais. Na sua famosa passagem sobre os partidos políticos nos
Cadernos de Cárcere [1929-1935], o filósofo sardenho afirma:
“Será necessária a ação política (no sentido estrito) para que
se possa falar de “partido político”? (...) o Estado-Maior intelectual
do partido orgânico não pertence a nenhuma das frações, mas opera como
se fosse uma força dirigente superior aos partidos e às vezes
reconhecida como tal pelo público. Essa função pode ser estudada com
maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um
grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas) são também eles
“partidos”, “frações de partido” ou “funções de um determinado
partido”. Veja-se a função do Times na Inglaterra, a que teve o Corriere
della Sera na Itália e também a função da chamada “imprensa de
informação”, supostamente “apolítica”, e até a função da imprensa
esportiva e da imprensa técnica” [cf. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno; Civilização Brasileira, 1976, pp. 22-23).
No Brasil, tudo isso é tão comum, faz de tal maneira parte do
cotidiano da grande imprensa, que nenhum partido político precisou
orientar agência de notícias, jornal, portais e blogs para omitir que
entre as novas diretrizes recomendados pelo Partido Comunista Chinês
estão incluídos “ideais sublimes como democracia, igualdade e estado de
direito, mas também as posições orientadores marxista”.
Todos simplesmente fizeram. Tão rotineiramente que nem merece uma nova matéria da agência Reuters.
*
é professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e
autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de
Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010
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