Um europeísmo de esquerda só pode ser um combate contra o
europeísmo convicto do bloco central que governa a Europa. Em nome da
Europa e dos seus povos.
Escrevi em 2004, com o Miguel Portas, o seguinte: “Quando da Europa se poderia esperar um impulso ao Estado de bem-estar, foi à Europa que se foi buscar legitimação para a miniaturização do Estado social na segurança social, no ensino ou na saúde; quando da Europa seria razoável esperar um reforço das garantias sociais e o respaldo a uma relação pactuada entre capital e trabalho, foi à Europa que se foi buscar a flexiliberalização das relações laborais e sociais; quando da Europa se admitiria um influxo de cosmopolitismo nos códigos civilizacionais, foi a ela que o conservadorismo nacional foi buscar argumentário para tentar travar a transformação do quotidiano em matéria de hábitos e horizontes”.
Quase dez anos depois, quando a Comissão Europeia se mostra mais fundamentalista que o próprio FMI na imposição das políticas de austeridade aos países membros sob intervenção estrangeira, só vejo razões para lembrar o que então escrevemos e agravar a inquietação que nos fez procurar um europeísmo crítico de esquerda. Como então, digo agora que um europeísmo de esquerda só pode ser um combate contra o “europeísmo convicto” do bloco central que governa a Europa. Em nome da Europa e dos seus povos. Neste texto exploro algumas das causas de ser assim e alguns dos caminhos principais dessa busca.
1. A EUROPA ESQUECEU-SE DO QUE É A PAZ
O discurso, repetido até à exaustão, que enaltece a União Europeia como suporte de uma condição de paz na Europa com uma duração inédita assume como certas duas hipóteses que se dispensa de comprovar. A primeira é a de que há paz porque há integração econômica. É uma velha tese, cara aos triunfadores da expansão dos mercados, de acordo com a qual os parceiros de negócio não fazem guerra entre si. A segunda é a de que há paz porque há integração política. É uma tese não menos velha, repetida pelos que alcançam posição preponderante nas instituições políticas, para a qual a co-responsabilização política dissuade a vertigem da guerra.
Este discurso e as suas duas hipóteses vivem das aparências. Iludem os impactos desestruturadores profundos que ambas as integrações têm sobre a democracia e sobre a estrutura social. A integração dos mercados na Europa tem sido não apenas seletiva e desigual – a integração dos mercados de mercadorias, de serviços e de capitais não tem qualquer correspondência na integração do mercado de trabalho – como tem sido responsável pela fragilização dos tecidos produtivos locais das periferias internas da União Europeia (mais do que isso, vive dela e quere-a deliberadamente) e pelo esvaziamento acelerado das estruturas e políticas de efetivação dos direitos sociais. Por outro lado, na voragem desta integração fica patente o fim da ilusória coabitação entre democracia e liberalismo. A força da integração dos mercados é também a sua força política, feita de fraqueza das instituições democráticas e da regulação por elas produzida. O strip-tease do Estado para gáudio dos voyeurs investidores-especuladores ocorre em simultâneo com o contínuo ganho de robustez da regulação amiga do mercado desregulado.
Algo a que a engenharia institucional federal se limita a ampliar a escala: o federalismo realmente existente, muito mais do que um desenho institucional compensador daquilo em que os Estados se revelam frágeis, é um exercício de composição de um poder forte para impor soluções fortes a favor da desregulação contra a resistência regulatória deliberadamente fraca dos Estados.
O discurso que associa a paz na Europa à integração económica e à integração política é, pois, um discurso de dissimulação, feito por quem está a ganhar com esta integração económica e com esta integração política para legitimar o seu domínio. É, além disso, um discurso historicamente ignorante. O que garantiu a longa paz na Europa não foi a União Europeia mas sim o modelo social de complemento do salário direto por serviços públicos e direitos sociais. A paz entre a França e a Alemanha foi muito mais fruto do horizonte de ascensão social que este modelo suscitou nos seus povos do que das reuniões de todos os dias em Bruxelas. Por outras palavras, foi a paz positiva que foi garante da paz negativa na Europa nas últimas cinco décadas. Algo que se fica a dever a uma relação de forças favorável a essa configuração do contrato social e a que o contexto ideológico e social da guerra fria está longe de ser indiferente. A Europa da paz foi a Europa assente num contrato social amplo à escala de cada Estado e numa preocupação com a coesão social e a justiça territorial à escala do conjunto da União.
2. O BLOCO CENTRAL EUROPEU ESVAZIOU A DEMOCRACIA NA EUROPA
A substancial alteração da relação de forças em que se havia forjado aquele conteúdo do contrato social em escala europeia, alteração em que foi absolutamente decisiva a capitulação dos partidos social-democratas e a sua cooptação pelo campo da hegemonia neoliberal, trouxe-nos aonde estamos. O “europeísmo convicto” da aliança entre a social-democracia e o liberalismo deixou aos povos da Europa o mais envenenado dos legados: pelo menos desde Maastricht, o custo do trabalho tornou-se na única variável realmente mobilizável pelos Estados nacionais para o ajustamento das economias nacionais, desprovidos que estão quer do controlo cambial quer da emissão de moeda ao mesmo tempo que são submetidos a um asfixiante colete de forças que é a imposição do dogma do equilíbrio orçamental combinada com um rotundo ‘não’ a quaisquer instrumentos europeus de compensação das fragilidades diferenciadas das economias nacionais (como um orçamento comunitário digno desse nome e apto a alimentar políticas de emprego ou de resposta a crises ou um regime de contração de dívida com assumido suporte europeu).
A resposta ardilosa, dada nesta década à crise funda do capitalismo financeirizado radicalizou enormemente as consequências dessa mudança social e ideológica. No bojo dessa resposta, a dívida de uns tornou-se o instrumento de poder de outros.
O Pacto Orçamental e a consagração de uma “regra de ouro” de um teto de 0.5% para os défices estruturais, a expressão mais recente – e mais grave – da aliança estratégica entre os partidos social-democratas e a direita europeia, veio selar essa estratégia de dissolução rápida do modelo social e da democracia inclusiva em escala europeia. Pelas mãos desse grande bloco central europeu, a intensificação da integração financeira seletiva passou a assumir como referência primeira a ilegalização do endividamento absolutamente imprescindível para o crescimento dos Estados economicamente mais débeis, adensando o estado de negação em que a direção política da União Europeia tem vivido relativamente aos motivos da crise e à sua resolução.
O euro é hoje o símbolo maior da tomada da democracia como refém dos mercados. Uma união monetária exige tanto práticas de coordenação e de harmonização económica como instrumentos comuns de resposta a pressões externas ou a desequilíbrios internos. A escolha do “europeísmo convicto” do bloco central foi abdicar irresponsavelmente destes e dar àqueles uma lógica punitiva. O resultado é um euro que serve de chantagem sobre os povos, encostados à escolha entre cumprir os ditames do empobrecimento do trabalho e do encurtamento das economias e serem atirados para fora da união. Ou seja, entre empobrecerem dentro do clube ou empobrecerem fora dele.
A arquitetura regulatória e institucional da governação econômica europeia construída pelo bloco central europeu nesta década anuncia o fim da universalidade dos serviços públicos e dos direitos sociais e impõe a sua substituição pela asiatização das relações sociais e por uma lógica de subalternização da política democrática às mãos do primado da livre circulação dos capitais como dogma primeiro da política europeia contemporânea. Na verdade, a constitucionalização do Estado mínimo diz tudo sobre os conteúdos políticos do “europeísmo convicto” do bloco central europeu e como eles diminuíram o espaço da democracia. Na Europa do Pacto Orçamental e do défice zero, aprovada em conjunto e com o turbo ligado pelo “arco da governação” europeia, o campo das escolhas passou a ser entre diminuir mais ou muito mais os serviços públicos de saúde ou de educação, entre cortar mais ou muito mais os salários e reformas, entre privatizar mais ou muito mais bens comuns.
Que o “europeísmo convicto” do grande bloco central europeu se materialize num reforço da disciplina punitiva das economias nacionais mais débeis e na centralidade por ela atribuída à perda de densidade quer da justiça social quer da democracia na Europa tem que ser uma baliza de primeira importância para a ação política de uma esquerda consequente. Ou seja, há de ser essencialmente por referência a essa forma não democrática, anti-social e blindada de construir a Europa que um europeísmo crítico de esquerda se há de definir. Porque esta Europa que usa a dívida para afundar os países e não quer ajudar os países a livrar-se da dívida é uma Europa que não serve para nada.
3. A EUROPA É UMA FINTA VOSSA
Esta mudança é agravada pelo renascimento de uma até agora não revelada polarização moral e política entre “virtuosos” do Norte e “preguiçosos” do Sul e pela aceitação institucional de um esquema de governação por diretório com uma gradual perda de centralidade das próprias instituições comunitárias de decisão.
Nessa visão das coisas assente na dicotomia entre virtuosos do Norte e preguiçosos e irresponsáveis do Sul só há uma saída: intervenções disciplinadoras dos primeiros sobre os segundos, em que o castigo do prevaricador indolente o purificará e trará ao redil dos puros. Essa cura chama-se austeridade e a doença chama-se Estado Social cujo primeiro sintoma é o endividamento. Para o neoliberalismo europeu o problema é a presença de “Estados falhados” num clube reservado a “boas governações”. A Europa virou clube med.
Nessa linguagem virtuosa dos “europeístas convictos” que têm governado a Europa vai transportada uma nova forma de dizer a relação de poder entre centro e periferia. A dívida das periferias “desgovernadas” e o crédito dos centros “responsáveis” são o dispositivo essencial dessa relação de poder. Nela, é às periferias que cabe a responsabilidade de demonstrar que, custe o que custar, estão dispostas a tudo fazer para não serem arrastadas para a condição de Estados falhados. Daí a sobre-exacerbação da virtude própria, daí o excesso de terapêutica voluntariamente assumido. A humilhação do servo faz-se levando-o a macaquear o seu senhor, enquanto este lhe estende a migalha.
Esta Europa que humilha os seus não vai a votos. Fosse e seria ela a humilhada. Mas é em nome dela que se cumprem os programas implícitos que os partidos do bloco central não apresentam mas cumprem. Uma Europa que, à sombra das troikas, amarra os partidos “com hipóteses de governar” ao cumprimento de um mesmo programa por ela fixado para proteção dos capitais que circulam e dos bancos que especulam, mandando às malvas os compromissos estabelecidos por esses partidos com os eleitorados nacionais, é uma Europa que despreza a democracia. E, mais que tudo, é um pretexto para a aplicação de políticas locais de agressão social.
4. O EUROPEISMO DE ESQUERDA É TEIMOSO. AINDA BEM
A mãe de todas as prioridades para um europeísmo crítico e de esquerda há de ser o resgate da democracia. Ora a democracia resgata-se onde há povo e cidadania e não inventando um povo e uma cidadania a martelo. Não há povo europeu. E da cidadania europeia só se pode dizer o mesmo que Gandhi disse da civilização ocidental: “seria uma excelente ideia”. A democracia resgata-se onde ela foi esvaziada, onde as escolhas têm atores que podem ser por elas responsabilizados. A hegemonia liberal na governação europeia torna mais prioritário que nunca o combate pelas democracias nacionais. Sem nostalgias soberanistas mas com uma agenda de ambição democrática.
A combinação cada vez mais clara e intensa entre neoliberalismo e autoritarismo na condução da política europeia mostra como está armadilhada a alternativa entre intergovernamentalidade e federalismo. A estratégia de quem tem mandado na Europa no quadro da presente ofensiva neoliberal tem sido a de combinar engenhosamente intergovernamentalidade onde deveria haver mais Europa e federalismo onde devia haver mais democracia. A nacionalização da crise e dos seus prejuízos e danos empurra mais facilmente os governos nacionais das periferias para o papel de simples feitores de um programa de rutura social e de punição do trabalho, na falta de uma Europa de coesão social através dos direitos sociais e dos serviços públicos. Mas a alternativa a esta intergovernamentalidade perversa não é o federalismo centralista. Aceitá-lo, como o faz, encantado, o “europeísmo convicto” do bloco central europeu, é ignorar a política concreta e a relação de forças que a disputa.
O
federalismo europeu não é um projeto abstrato, é um programa concreto
que está a ser implementado agora, ao sabor das vantagens dos
investidores bolsistas que querem ver os riscos que eles próprios
criaram nas periferias punidos e os juros negativos de Berlim ou
Helsínquia salvaguardados. Há evidentemente políticas europeias para lá
dos espaços nacionais que são imprescindíveis para travar esta deriva
desreguladora e castigadora da vida das pessoas: a mutualização das
dívidas materializada na emissão de títulos de dívida europeia, o
dimensionamento do orçamento comunitário que permita políticas de
resposta a crises ou a transformação do mandato do Banco Central Europeu
orientando-o para o financiamento de uma economia europeia apontada ao
crescimento e ao emprego.
Para isso é essencial a construção de uma convergência das periferias como resposta ao cordão sanitário imposto pelo centro em torno de cada economia nacional alvo de ataque especulativo (“nós não somos a Grécia”). Há pois Europa a construir, urgentemente. Mas o federalismo anunciado pelo “europeísmo convicto” do bloco central europeu está nos antípodas dessa construção. Porque põe autoritarismo onde é a democracia que precisa de ser acrescentada. E porque diminui a justiça na economia onde ela precisa de ser aumentada.
O europeísmo de esquerda bate-se pelo resgate da democracia porque ela é o garante do resgate dum contrato social em que o salário e os direitos sejam prioridades efetivas. No salário e nos direitos é ainda a democracia que se joga porque provadamente a exclusão social exclui da política. A austeridade e o empobrecimento estão a roubar povo às democracias na Europa e a impor-lhe soluções esdrúxulas em que a ilegitimidade democrática vem disfarçada de conveniência tecnocrática. Uma Europa democrática implica por isso não só uma rutura com as políticas da austeridade como um compromisso político claro com a criação de condições – na política fiscal, na política de coesão territorial, na política industrial ou no lugar estruturante a conferir ao investimento público reprodutivo – para que a defesa do salário e da universalidade de serviços públicos qualificados seja o foco do contrato europeu. E implica mais: implica a coragem e a lucidez de assumir com clareza o controlo público sobre o sistema financeiro – quando necessário e quando conveniente através de nacionalizações – para que os povos possam ter uma resposta estratégica agressiva contra a crise e reganhem o controlo que lhes assiste sobre os instrumentos de política económica.
Voltemos, enfim, à questão da paz. Quando Hollande, Milliband ou Cohn-Bendit se mostram mais favoráveis à intervenção militar na Síria que o próprio Obama, fica feita a prova de que o “europeísmo convicto” é habitado pelo vírus da nostalgia colonial. Esta Europa que olha o mundo com os olhos da mission civilizatrice que alimentou os impérios europeus no mundo – e que tem hoje na camuflagem humanitária dos negócios o aggiornamento da sua legitimação – é o avesso do que se exige a um europeísmo de esquerda. A autodeterminação (lembram-se?) é o núcleo da visão do mundo sufragada por um europeísmo de esquerda. Afinal de contas, é mesmo isso que defendemos para a Europa e para os seus povos.
O que a esquerda precisa, nas freguesias, no país e na Europa, é de vozes fortes contra a austeridade, em defesa do Estado Social, dos bens e serviços públicos, contra o “europeísmo convicto” que se preocupa mais com a elite financeira do que com as vítimas da austeridade. Diante desta indignidade tão radical, um europeísmo de esquerda só pode unir e radicalizar as lutas contra os resgates, as troikas, a austeridade, a dívida, o desemprego, a precariedade, a mercantilização dos serviços públicos. Para resgatar a vida das pessoas.
Para isso é essencial a construção de uma convergência das periferias como resposta ao cordão sanitário imposto pelo centro em torno de cada economia nacional alvo de ataque especulativo (“nós não somos a Grécia”). Há pois Europa a construir, urgentemente. Mas o federalismo anunciado pelo “europeísmo convicto” do bloco central europeu está nos antípodas dessa construção. Porque põe autoritarismo onde é a democracia que precisa de ser acrescentada. E porque diminui a justiça na economia onde ela precisa de ser aumentada.
O europeísmo de esquerda bate-se pelo resgate da democracia porque ela é o garante do resgate dum contrato social em que o salário e os direitos sejam prioridades efetivas. No salário e nos direitos é ainda a democracia que se joga porque provadamente a exclusão social exclui da política. A austeridade e o empobrecimento estão a roubar povo às democracias na Europa e a impor-lhe soluções esdrúxulas em que a ilegitimidade democrática vem disfarçada de conveniência tecnocrática. Uma Europa democrática implica por isso não só uma rutura com as políticas da austeridade como um compromisso político claro com a criação de condições – na política fiscal, na política de coesão territorial, na política industrial ou no lugar estruturante a conferir ao investimento público reprodutivo – para que a defesa do salário e da universalidade de serviços públicos qualificados seja o foco do contrato europeu. E implica mais: implica a coragem e a lucidez de assumir com clareza o controlo público sobre o sistema financeiro – quando necessário e quando conveniente através de nacionalizações – para que os povos possam ter uma resposta estratégica agressiva contra a crise e reganhem o controlo que lhes assiste sobre os instrumentos de política económica.
Voltemos, enfim, à questão da paz. Quando Hollande, Milliband ou Cohn-Bendit se mostram mais favoráveis à intervenção militar na Síria que o próprio Obama, fica feita a prova de que o “europeísmo convicto” é habitado pelo vírus da nostalgia colonial. Esta Europa que olha o mundo com os olhos da mission civilizatrice que alimentou os impérios europeus no mundo – e que tem hoje na camuflagem humanitária dos negócios o aggiornamento da sua legitimação – é o avesso do que se exige a um europeísmo de esquerda. A autodeterminação (lembram-se?) é o núcleo da visão do mundo sufragada por um europeísmo de esquerda. Afinal de contas, é mesmo isso que defendemos para a Europa e para os seus povos.
O que a esquerda precisa, nas freguesias, no país e na Europa, é de vozes fortes contra a austeridade, em defesa do Estado Social, dos bens e serviços públicos, contra o “europeísmo convicto” que se preocupa mais com a elite financeira do que com as vítimas da austeridade. Diante desta indignidade tão radical, um europeísmo de esquerda só pode unir e radicalizar as lutas contra os resgates, as troikas, a austeridade, a dívida, o desemprego, a precariedade, a mercantilização dos serviços públicos. Para resgatar a vida das pessoas.
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