Matéria do Spiegel Internacional diz que quem predomina nas ruas nas manifestações da Ucrânia é o ultra-nacionalista e xenófobo Svoboda.
Berlim - Há muita cortina de fumaça na Ucrânia, e não apenas nas manifestações: também na mídia. Em primeiro lugar, porque é mesmo difícil discernir o que está de fato acontecendo, quais são as forças em jogo, quem lucra, quem perde, quais são as alternativas. Em segundo lugar porque há em muitos espaços da mídia do Ocidente uma tendência de ler os acontecimentos ainda em termos de Guerra Fria, aindaem termos de “mocinhos” versus “bandidos”.
Para uma leitura deste tipo, as coisas são mais ou menos simples. Trata-se do enfrentamento entre manifestantes que desejam uma Ucrânia livre, associada à Europa, que, para esta leitura, segue sendo o ‘modelo civilizatório’, liberta da corrupção. Do outro lado está o governo autoritário de Viktor Yanukovitch, apoiado pelo “pérfido” Putin que, como patrão político da Rússia, é, “naturalmente”, o vilão da história, chantageando a pobre Ucrânia desamparada com seus bilhões de rublos e seu gás inesgotável, necessário para aquecer o inverno rigoroso do país.
Na verdade, as coisas não são tão simples, ou melhor dizendo, tão simplórias.
Algumas recentes matérias vem pondo um pouco de luz neste tíunel aparentemente sem saída chamado Ucrânia. Refiro-me particularmente a duas: “Viktor Yanukovitch [o presidente]’s future may depend on oligarchs as much as protesters” (The Guardian, 28.01.2014, de Shaun Walker) e “The Right Wing’s Role in Ukranian Protests” (Spiegel International, 27.01.2014, da Redação).
Quando o comunismo espatifou-se na Ucrânia, o país quebrou. Tudo foi privatizado a toque de caixa. Mas, como sóe acontecer, muita gente lucrou, e lucrou muito, neste processo. Fortunas se fizeram da noite para o dia, algumas vezes, melhor dizendo, do dia para a noite, porque nem sempre, como também sóe acontecer, os procedimentos podiam vir à luz do dia. Formaram-se, como na Rússia de Yeltsin, alguns conglomerados financeiros, industriais e comerciais, em torno dos novos oligarcas subitamente enriquecidos, seis, para ser mais preciso, segundo o Guardian. Estes seis passaram a dar as cartas nos bastidores da política ucraniana.
Um deles, o mais poderoso, e rico, Rinat Akhmetov, tornou-se muito próximo do atual presidente, vindo que era da mesma região, no leste do país.
Por sua parte, Yanukovitch é de fato um político relativamente popular, e acabou eleito legitimamente para a presidência. Quando isto aconteceu, Yanukovitvch começou a cercar-se de uma nova geração de a princípio pequenos oligarcas, mas que foram crescendo, e são hoje os chamados “lobos”. Isto desagradou a velha oligarquia estabelecida. Para complicar a situação, três forças externas estão na dança: a União Europeia, a OTAN e a Rússia. A União Europeia, desde sua criação, está em processo de expansão – uma expansão meio descontrolada, como se vê pelo atual estado de crise em que boa parte dela – arrastando o todo – está metida. Uma fatia importante deste crescimento são os “mercados emergentes” das ruínas do comunismo. Por que não a Ucrânia?
Por outro lado, sob a liderança (em estilo czarista) de Putin, a Rússia vem recuperando a força política e diplomática perdida, e a Ucrânia é peça-chave nesta recuperação, seja pela extensa fronteira que compartilha com ela, seja pela cobertura do Mar Negro logo abaixo, cujo controle, evidentemente a OTAN cobiça , coisa que Moscou não pode admitir.
Dito isto, pode-se ver que de fato uma grande parte do destino do atual governo ucraniano depende do que Moscou e Bruxelas fizerem ou deixarem de fazer, e da conveniência deste governo para os oligarcas por detrás, a quem, disputas internas à parte, interessa tanto o dinheiro (15 bilhões de euros para um país virtualmente quebrado) russo e seu gás, quanto as finanças europeias cujo ímpeto, também como soe acontecer, é restringir gastos públicos, sobretudo na área social, diminuir salários e aposentadorias, cortar o poder dos sindicatos, etc., na receita por demais conhecida.
Mas há também a praça, onde as manifestações se sucedem, sem que arrefeçam até o momento. Pela matéria do Spiegel, pode-se discernir três grandes forças principais animando as manifestações: o Partido da Pátria-Mãe (ou Pai, na versão original), ligado à ex-lider Yulia Timoshenko, hoje presa, o Partido Udar, do principal líder da oposição, Vitaly Klitschko, e – aí vem a complicação maior – o Partido Svoboda (Liberdade), liderado por Igor Myroshnychenko, de extrema-direita. Todos estes três partidos têm representantes no Parlamento.
Mas o que a matéria do Spiegel explora é que de longe quem predomina nas mabifestações, que teriam arrefecido sem isto, é o ultra-nacionalista e xenófobo Svoboda. As ações e declarações dos membros e lideranças deste partido – inclusive de Myroshnychenko – rescendem a xenofobia, antissemitismo, ressentimento nacionalista (que na Europa é palavra associada sempre à direita), anti-homossexualismo, anti-minorias, além de práticas esdrúxulas, para dizer o mínimo, como já foi observado: recentemente jovens ligados ao partido distribuíam panfletos com trechos dos discursos de Goebbels, o homem forte da propaganda nazista. Além disto até recentemente o nome do Partido era “Social-Nacional”, numa alusão mais do que clara ao nome oficial do Partido de Hitler, o “Nacional-Socialista”.
Estes são os que se dizem “prontos para morrer” em nome da luta que estão levando. Para azar de todos, na hipótese de a oposição querer formar um governo sem Yanukovitch, ela terá forçosamente de incluir o Svoboda.
Ou seja, todos da oposição – e de quebra a União Europeia – estão flertando com o perigo.
No momento, é difícil discernir alguma nova configuração política que rompa com os poderes dos oligarcas – novos ou menos novos – e crie uma outra força mais democrática do que aquelas em jogo. No curto prazo o que de melhor pode acontecer é a formação de uma articulação política entre Yanukovych e os dois partidos de oposição, Udar e Pátria-Mãe (ou Pai), isolando ou pelo menos neutralizando o Svoboda. Também que Moscou mantenha o empréstimo prometido e a promessa de cobrar menos pelo gás que fornece ao país, e que a presença da União Europeia no jogo (o que também, de momento, é inevitável) seja suficientemente contrabalançada para trazer o menor estrago possível, com seus ‘planos de austeridade’, à política de recuperação da Ucrânia, quando esta for possível.
Fonte: Carta Maior
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