Friedrich Engels
Aos amigos e camaradas, nem todos tiveram oportunidade de ler A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE E DO ESTADO, uma obra importante de Friedrich Engels. Uma obra que possibilita conhecer o processo da evolução da humanidade, o processo histórico e econômico desde o período primitivo, até a fase da formação do estado e, conseqüentemente, o processo de formação da família até o estagio monogâmico, que prevalece até hoje. Dividi, a meu critério, a obra em capítulos para facilitar e não tornar cansativa sua leitura.
Aos amigos e camaradas, nem todos tiveram oportunidade de ler A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE E DO ESTADO, uma obra importante de Friedrich Engels. Uma obra que possibilita conhecer o processo da evolução da humanidade, o processo histórico e econômico desde o período primitivo, até a fase da formação do estado e, conseqüentemente, o processo de formação da família até o estagio monogâmico, que prevalece até hoje. Dividi, a meu critério, a obra em capítulos para facilitar e não tornar cansativa sua leitura.
I - ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE
CULTURA
Morgan foi o primeiro que, com
conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na
pré-história da humanidade, e sua
classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de
dados muito mais considerável nos
obrigue a modificá-la., Das três épocas principais - estado selvagem,
barbárie e civilização - ele só se
ocupa, naturalmente, das duas primeiras e da passagem à terceira. Subdivide
cada uma das duas nas fases
inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos
meios de existência; porque, diz,
"a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de
superioridade e domínio do homem
sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um
domínio quase absoluto da produção
de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade
coincidem, de modo mais ou menos
direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência". O
desenvolvimento da família.
realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a
delimitação dos períodos.
1- Estado selvagem
1-FASE INFERIOR. Infância do gênero
humano. Os homens permaneciam, ainda, nos . bosques tropicais ou
subtropicais e viviam, pelo menos
parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir, em
meio às grandes feras selvagens. Os
frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento; o principal progresso
desse período é a formação da
linguagem articulada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico
estava nessa fase primitiva de
evolução. E, embora esse período tenha durado, provavelmente, muitos
milênios, não podemos demonstrar
sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitimos
que o homem procede do reino
animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado transitório.
2-FASE MÉDIA. Começa com o emprego
dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e
outros animais aquáticos ) na
alimentação e com o uso do fogo, Os dois fenômenos são comentares, porque o
peixe só pode ser plenamente
empregado como alimento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém,
os homens fizeram-se independentes
do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas amares,
puderam,- ainda no estado selvagem,
espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos
instrumentos de pedra sem polimento
da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos,
pertencem todos, ou a maioria
deles, a esse período e se encontram espalhados por todos os continentes,
constituindo uma prova dessas
migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos
descobrimentos, ligados à posse do
fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos,
como as raízes e os tubérculos
farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça,
que, com a invenção das primeiras
armas - a clava e a lança - chegou a ser um ali
mento suplementar ocasional. Povos
exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos
que tenham vivido apenas da caça,
jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos.
Como conseqüência da incerteza
quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a
antropofagia, para subsistir por
muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em
nossos dias, os australianos e
diversos polinésios.
3- FASE SUPERIOR. Começa com a
invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vem
a ser um alimento regular e a caça
uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já
constituíam um instrumento bastante
complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e
faculdades mentais desenvolvidas,
bem como 0 conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se
comparamos os povos que conhecem o
arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica ( com a qual, segundo
Morgan, começa a passagem à
barbárie), encontramos já alguns indícios de residência fixa em aldeias e certa
habilidade na produção de meios de
subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido a mão (sem tear)
com fibras de cortiça, cestos de
cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na
maioria dos casos, o fogo e o
machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só
tronco de árvore e, em certas
regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos
esses progressos são encontrados,
por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a
flecha, mas não a cerâmica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o
que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização:
a arma decisiva.
I - A Barbárie
1- FASE INFERIOR. Inicia-se com a
introdução da cerâmica. É possível demonstrar que, em muitos casos,
provavelmente em todos os lugares,
nasceu do costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a
fim de torná-los refratários ao
fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem
necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o
curso do desenvolvimento como um fenômeno absolutamente
geral, válido em determinado
período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie,
chegamos a uma época em que se
começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois
grandes continentes. O traço
característico do período da barbárie é a domesticação criação de animais e o
cultivo de plantas. Pois bem: o
continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais
domesticáveis e todos os cereais
próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só
tinha um mamífero domesticável, a
lhama,-- e, mesmo assim, apenas numa parte do sul - e um só dos cereais
cultiváveis, mas o melhor, o milho.
Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento
a população de cada hemisfério se
desenvolve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre
as várias fases são diferentes em
cada um dos dois casos, irrigação e com p emprego do tijolo cru (secado ao
Sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa
região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até
a conquista da América pelos
europeus.
Entre os índios da fase inferior da
barbárie ( figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi)
existia, já na época de seu
descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de
outras
plantas de horta, que constituíam
parte muito essencial de sua alimentação; eles viviam em casas de madeira,
em aldeias protegidas por
paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia,
achavam-se, ainda, na fase superior
do estado selvagem e não conheciam a cerâmica nem ó mais simples
cultivo de plantas. .Ao contrário,
os índios dos chamados pueblos" no Novo México, os mexicanos, os
centro-americanos e os peruanos da
época da conquista; achavam-se na fase média da barbárie; viviam em
casas de adobe ou pedra em forma de
fortalezas; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e
outros vegetais comestíveis,
diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de
alimentação; e tinham até
domesticado alguns animais: os mexicanos, o peru e outras aves; os peruanos, a
lhama. Sabiam, além disso,
trabalhar os metais, exceto o ferro; - por isso ainda não podiam prescindir de
suas
armas e instrumentos de pedra. A
conquista espanhola cortou completamente todo desenvolvimento
autônomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie
começou com a domesticação de animais para o fornecimento de
leite e carne, enquanto que,
segundo parece, o cultivo de plantas permaneceu desconhecido ali até bem
adiantada esta fase. A domesticação
de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem
ter sido a causa de que os arianos
e semitas se afastassem dos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos
da Europa e os da Ásia designam os
animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas
cultivadas são quase sempre
diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos
lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do
Tibre e do Eufrates; os arianos,
nos campos da Índia, de Oxus e Jaxartes, do Don e do Dniepr. Foi, pelo visto,
nessas terras ricas em pastos que,
pela. primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às
gerações posteriores que os povos
pastores procediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço
do gênero humano, eram quase
inabitáveis para os seus selvagens avós e até para os homens da fase inferior
da barbárie. E, ao contrário, desde
que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes
ocorreria a idéia de abandonarem
voluntariamente as pradarias onde viviam seus antepassados. Nem mesmo
quando foram impelidos para o Norte
e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos se retirar para as
regiões florestais do oeste da Ásia
e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, -
lhes permitisse alimentar seus
rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de
cereais nascesse aqui,
primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só
mais
tarde tivesse importância para a
alimentação do homem.
Talvez a evolução superior dos
arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite em sua
alimentação e, particularmente,
pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças.
Com efeito, os índios
"pueblos" do Novo México, que se veem reduzidos a uma alimentação
quase
exclusivamente vegetal, têm o
cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais
carne e mais peixe. Em todo caso,
nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que não sobrevive
senão como um rito religioso, ou
como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.
FASE SUPERIOR. Inicia-se com a
fundição do minério de ferro, e passa à fase da civilização com a
invenção a escrita alfabética e seu
emprego para registros literários. Essa fase, que, como dissemos, só existiu
de maneira independente no
hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos progressos
da
produção. A ela pertencem os gregos
da época heroica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de
Roma, os germanos de Tácito, os
normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos
aqui, pela primeira vez, o arado de ferro. puxado por animais, o que
torna possível lavrar a terra em
grande escala. - a agricultura - e produz, dentro das condições então
existentes, um aumento praticamente
quase ilimitado dos meios de existência; em relação com isso, também
observamos a derrubada dos bosques
e sua transformação em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível
em grande escala sem a pá e o
machado de ferro. Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que
se instala, densamente, em pequenas
áreas. .Antes do cultivo dos campos somente circunstâncias
excepcionais teriam podido reunir
meio milhão de homens sob uma direção central - e é de se crer que isso
jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos,
principalmente na Ilíada, encontramos a época mais florescente da fase
superior da barbárie. A principal
herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização é constituída
dos instrumentos de ferro
aperfeiçoados, dos foles de forja, do moinho a mão, da roda de olaria, da
preparação do azeite e o vinho, do
trabalho de metais elevado à categoria de arte, de carretas e carros de
guerra, da construção de barcos com
pranchas e vigas, dos princípios de arquitetura como arte, das cidades
amuralhadas com torres e ameias,
das epopeias homéricas e de toda a mitologia. Se compararmos com isso as
descrições feitas por César, e até
por Tácito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de cultura da
qual os gregos de Homero se
dispunham a passar para um estágio mais elevado, veremos como foi
esplêndido o desenvolvimento da
produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da
humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até os
começos da civilização - quadro que
acabo de esboçar, seguindo Morgan - já é bastante rico em traços
característicos novos e, sobretudo,
indiscutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto,
parecerá obscuro e incompleto se o
compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, ao fim
de nossa viagem; só então será
possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e
o forte contraste entre as duas.
Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte:
Estado Selvagem. - Período em que
predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser
utilizados; as produções
artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação.
Barbárie. - Período em que aparecem
a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção
da natureza por meio do trabalho
humano. Civilização - Período em que o homem continua aprendendo a
elaborar os produtos naturais,
período da indústria propriamente dita e da arte.
II – A FAMILIA
Morgan, que passou a maior parte de
sua vida entre os iroqueses - ainda hoje estabelecidos no Estado
de Nova York - e foi adotado por
uma de suas tribos ( a dos senekas ) encontrou um sistema de
consangüinidade, vigente entre
eles, que entrava em contradição com seus reais vínculos de família. Reinava
ali aquela, espécie de matrimônio
facilmente dissolúvel por ambas as partes, que Morgan chamava "família
sindiásmica". A descendência
de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma dúvida
podia surgir quanto às pessoas a
quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho, filha, irmão ou irmã. Mas, o
uso atual desses nomes constituía
uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas aos seus
próprios, mas, ainda, aos de seus
irmãos, os quais, por sua vez, o chamam pai. Os filhos de suas irmãs; pelo
contrário, ele os trata como
sobrinhos e sobrinhas, e é chamado de tio por eles. Inversamente, a iroquesa
chama filhos e filhas os de suas
irmãs, da mesma forma que os próprios, e aqueles, como estes, chamam-na
mãe. Mas chama sobrinhos e
sobrinhas os filhos de seus irmãos, os quais a chamam de tia. Do mesmo modo,
os filhos de irmãos tratam-se,
entre si, de irmãos e irmãs, e o mesmo fazem os filhos de irmãs. Os filhos de
uma mulher e os de seu irmão
chamam-se reciprocamente primos e primas. E não são simples nomes, mas a
expressão das ideias que se tem do
próximo e do distante, do igual ou do desigual no parentesco
consanguíneo; ideias que servem de
base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e capaz de
expressai muitas centenas de
diferentes relações de parentesco de um único indivíduo. Mais ainda: esse
sistema se acha em vigor não apenas
entre todos os índios da América ( até agora não foram encontradas
exceções), como também existe,
quase sem nenhuma modificação, entre os aborígines da índia, as tribos
dravidianas do Dekan e as tribos
gauras do Indostão. As expressões de parentesco dos tamilas do sul da índia
e dos senekas-iroqueses do Estado
de Nova York ainda hoje coincidem em mais de duzentas relações de
parentesco diferentes. E, nessas
tribos da índia, como entre os índios da América, as relações de parentesco
resultantes da vigente forma de
família estão em contradição com o sistema de parentesco.
Como explicar esse fenômeno ? Se
tomamos em consideração o papel decisivo da consanguinidade no
regime social de todos os povos
selvagens e bárbaros, á importância de tão difundido sistema não pode ser
explicada com mero palavreado. Um
sistema que prevalece em toda a América, que existe na Ásia em povos
de raças completamente diferentes,
e do qual se encontram formas mais ou menos modificadas por toda parte
na África e na Austrália, precisa
ser explicado historicamente - e não com frases ocas, como quis fazer, por
exemplo, Mac Lennan. As designações
"pai", "filho", "irmão", "irmã", não
são simples títulos honoríficos,
mas, ao contrario, implicam em
sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, e cujo conjunto forma
uma parte essencial do regime
social desses povos. E a explicação foi encontrada. Nas ilhas Sandwich (
Havaí ), ainda havia, na primeira
metade deste século, uma forma de família em que existiam os mesmos pais
e mães, irmãos e irmãs, filhos e
filhas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas do sistema de parentesco dos índios
americanos e dos aborígines da
índia. Mas - coisa estranha - o sistema de parentesco em vigor no Havaí
também não correspondia à forma de
família ali existente. Nesse país, todos os filhos de irmãos e irmãs, sem
exceção, são irmãos e irmãs entre
si e são considerados filhos comuns, não só de sua mãe e das irmãs dela, ou
de seu pai e dos irmãos dele, mas
também de todos os irmãos e irmãs de seus pais e de suas mães, sem
distinção. Portanto, se o sistema
americano de parentesco pressupõe uma forma de família mais primitiva -
que não existe mais na América, mas
que ainda encontramos no Havaí - o sistema havaiano, por seu lado, nos
indica uma forma de família ainda
mais rudimentar, que, se bem que não seja encontrada hoje em parte
alguma, deve ter existido, pois, do
contrário, não poderia ter nascido o sistema de parentesco que a ela,
corresponde. "A família",
diz Morgan, "é o elemento ativo; nunca permanece estacionaria, mas passa
de uma
forma inferior a uma forma
superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais
elevado. Os sistemas de parentesco,
elo contrário, são passivos só depois de longos intervalos, registram os
progressos feitos pela família, e
não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou
radicalmente." Karl Marx
acrescenta: "O mesmo acontece, em geral, com os sistemas políticos,
jurídicos,
religiosos e filosóficos:" Ao
passo que a família prossegue vivendo, o sistema de parentesco se fossiliza; e,
enquanto este continua de pé pela
força do costume, a família o ultrapassa. Contudo, pelo sistema de
parentesco que chegou
historicamente até nossos dias, podemos concluir que existiu uma forma de'
família a
ele correspondente e hoje extinta,
e podemos tirar essa conclusão com a mesma segurança com que Cuvier,
pelos ossos do esqueleto de um
animal achados perto de Paris, pôde concluir que pertenciam a um marsupial
e que os marsupiais, agora
extintos, ali viveram antigamente.
Os sistemas de parentesco e formas
de família, a que nos referimos, difere dos de hoje no seguinte:
cada filho tinha vários pais e
mães. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a família
havaiana, um irmão e uma irmã não
podem ser pai e mãe de um mesmo filho; o sistema de parentesco
havaiano, pelo contrário, pressupõe
uma família em que essa é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de
formas de família que estão em
contradição direta com as até agora admitidas como únicas válidas. A
concepção tradicional conhece
apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da
poliandria de uma mulher,
silenciando como convém ao filisteu moralizante - sobre ó fato de que na
prática
aquelas barreiras impostas pela
sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da
história primitiva revela-nos, ao
invés disso, um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e
suas mulheres a poliandria, e em
que, por consequência, os filhos de uns e outros tinham que ser
considerados comuns. É esse estado
de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de transformações,
resulta na monogamia. Essas
modificações são de tal ordem que o círculo compreendido na união conjugal
comum, e que era muito amplo em sua
origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, lado, que
predomina hoje.
Reconstituindo retrospectivamente a
história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria de
seus colegas, à conclusão de que
existiu uma época primitiva em que imperava, no seio da tribo, o comércio
sexual promíscuo, de modo que cada
mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas
as mulheres. No século passado, já
se havia feito menção a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral;
Bachofen foi o primeiro - e este é
um de seus maiores méritos - que o levou a sério e procurou seus vestígios
nas tradições históricas e religiosas.
Sabemos hoje que os vestígios descobertos por ele não conduzem a
nenhum estado social de
promiscuidade dos sexos e sim a uma forma muito posterior: o matrimônio por
grupos. Aquele estado social
primitivo, admitindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época tão
remota que não podemos esperar
encontrar provas diretas de sua existência, nem mesmo entre os fósseis
sociais, nos selvagens mais
atrasados. É precisamente de Bachofën o- mérito de ter posto no primeiro plano
o
estudo dessa questão.
Ultimamente, passou a ser moda
negar esse período inicial na vida sexual do homem. Pretendem
poupar à humanidade essa
"vergonha". E, para isso, apoiam-se não apenas na falta de provas
diretas, mas,
principalmente, no exemplo do resto
do reino animal. Neste, Letourneau (A Evolução do Matrimônio e da
Família, 1888 ) foi buscar
numerosos fatos, de acordo com os quais a promiscuidade sexual completa só é
própria das espécies mais
inferiores. Mas, de todos esses fatos só posso tirar uma conclusão: não provam
coisa alguma quanto ao homem e suas
primitivas condições de existência. A união por longo tempo entre os
vertebrados pode ser explicada, de
modo cabal, por .motivos fisiológicos; nas aves, por exemplo, deve-se à
necessidade de proteção á. fêmea
enquanto esta choca os ovos; os exemplos de fiel monogamia que se
encontram entre ás aves nada provam
quanto ao homem, pois o homem não descende da ave. E, se a estrita
monogamia é o ápice da virtude,
então a palma deve ser dada ,á tênia solitária que, em cada um dos seus
cinquenta a duzentos anéis, possui
um aparelho sexual masculino e feminino completo, e passa a vida inteira
coabitando consigo mesma em cada um
desses anéis reprodutores.
Mas, se nos limitarmos aos
mamíferos, neles encontramos todas as formas de vida sexual: a
promiscuidade, a união por grupos,
a poligamia, a monogamia; só falta a poliandria, à qual apenas os seres
humanos podiam chegar. Mesmo nossos
parentes mais próximos, os quadrúmanos, apresentam todas as
variedades possíveis de ligação
entre machos e fêmeas; e se nos restringirmos a limites ainda mais estreitos,
considerando exclusivamente as
quatro espécies de macacos antropomorfos, deles Letourneau só nos pode
dizer que vivem ora na monogamia
ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Giraud-Teulon,
declara que são monógamos. Ficam
longe de qualquer prova, também, as recentes assertivas de Westermarck
( A História do Matrimônio Humano,
1891) sobre a monogamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os
dados são de tal ordem que o
honrado Letourneau está de acordo em que "não há nos mamíferos relação
alguma entre o grau de
desenvolvimento intelectual e á forma de união sexual". E, Espinal ( As
Sociedades
Animais, 1877 ) diz, com franqueza:
"A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos observar
nos animais. Parece composta de
famílias, mas, já em sua origem, a família e a horda são antagônicas,
desenvolvem-se em razão inversa uma
da outra:
Pelo que acabamos de ver, nada de
positivo sabemos sobre a família e outros agrupamentos sociais
dos macacos antropomorfos; os dados
que possuímos contradizem-se frontalmente e não há por que estranhá-los.
Como são contraditórias, e
necessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente, as notícias
que temos das tribos humanas no
estado selvagem! Pois bem, as sociedades dos macacos são muito mais
difíceis de observar que as dos
homens. Por isso, enquanto não dispusermos de uma informação ampla,
devemos recusar qualquer conclusão
provinda de dados que não inspirem crédito.
Entretanto, o trecho de Espinal que
citamos nos dá melhor ponto de apoio para investigação. A horda
e a família, nos animais
superiores, não são complementos recíprocos e sim fenômenos antagônicos.
Espinal
descreve bem de que modo o ciúme
dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os
laços sociais da horda. "Onde
a família está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo raras
exceções. Pelo contrário, as hordas
constituem-se quase que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a
poligamia... Para que surja a
horda, é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo
tenha recobrado sua liberdade. É
por. isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os
pássaros... Por outro lado, é nos
mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas,
justamente porque o indivíduo neste
caso não é absorvido pela família... Assim, pois, a consciência coletiva
da horda não pode ter em sua origem
um inimigo maior do que a consciência coletiva da família. Não
hesitamos em dizê-lo: se se
desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato
de
que a ela se incorporaram famílias
profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibilidade de
que, precisamente por este motivo,
aquelas famílias pudessem mais adiante reconstituir-se sob condições
infinitamente mais
favoráveis." (Espinal, cap. 1, citado por Giraud-Teulon em Origens do
Matrimônio e da
Família, 1884, págs. 518/520).
Como vemos, as sociedades animais
têm certo valor para tirarmos conclusões concernentes às
sociedades humanas, mas somente num
sentido negativo. Pelo que é de nosso conhecimento, o vertebrado
superior apenas conhece duas formas
de família: a poligâmica e a monogâmica. Em ambos os casos só se
admite um macho adulto, um marido.
Os ciúmes do macho, a um só tempo laço e limite da família, opõemna
à horda; a horda, forma social mais
elevada, torna-se impossível em certas ocasiões, e em outras, relaxa-se
ou se dissolve durante o período do
cio; na melhor das hipóteses, seu desenvolvimento vê-se contido pelos
ciúmes dos machos. Isso é
suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são
coisas incompatíveis; que os homens
primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou não
tinham nenhuma moção de família ou,
quando muito, conheciam uma forma não encontrada entre animais.
Um animal tão sem meios de defesa
como aquele que se estava tornando homem pôde sobreviver em
pequeno número, inclusive numa
situação de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluída era
o casal, forma que Westermarck,
baseando-se em informações de caçadores, atribui ao gorila e ao chipanzé.
Mas, para sair da animalidade, para
realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um
elemento: substituir a falta de
poder defensivo do homem isolado pela. união de forças e pela ação comum da
horda. Partindo das condições
conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos, seria simplesmente
inexplicável a passagem à
humanidade; esses macacos dão-nos mais a impressão de linhas colaterais
desviadas e em vias de
extinguir-se, e que, no mínimo, se encontram em processo de decadência. Isso
basta
para se rechaçar todo paralelo
entre suas formas de família e as do homem primitivo.
A tolerância recíproca entre os machos
adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira
condição para que se pudessem
formar esses grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia
operar-se a transformação do animal
em homem. E, com efeito, que encontramos como forma mais antiga e
primitiva da família, cuja
existência indubitável nos demonstra a História, e que ainda hoje podemos
estudar
em certos lugares? O matrimônio por
grupos, a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e
grupos inteiros de mulheres
pertencem-se mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. Além
disso, numa fase posterior de
desenvolvimento, vamos nos deparar com a poliandria, forma excepcional, que
exclui, em medida ainda maior, os
ciúmes, e que, por isso, é desconhecida entre os animais. Todavia, como
as formas de matrimônio por grupos
que conhecemos são acompanhadas de condições tão peculiarmente
complicadas que nos indicam,
necessariamente, a existência de formas anteriores mais simples de relações
sexuais e assim, em última análise,
um período de promiscuidade correspondente á passagem da animalidade
á humanidade, - as referências aos
matrimônios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde
devíamos ter partido de uma vez
para sempre.
Que significam relações sexuais sem
entraves ? Significa que não existiam os limites proibitivos
vigentes hoje ou numa época
anterior para essas relações. já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo
pôde ser estabelecido
irrefutavelmente, foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu relativamente
tarde. O mesmo acontece com a ideia
de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e
mulher, como também, ainda hoje, em
muitos povos é lícito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft
(As Raças Nativas dos Estados da Costa
do Pacífico na América do Norte, 1875, tomo 1) testemunha a
existência dessas relações entre os
kadiakos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os
tinnehs do interior da América do
Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios
chipevas, os kukus do Chile, os
caribes, os karens da Indochina; e isso deixando de lado o que contam os
antigos gregos e romanos a respeito
dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, etc. Antes da invenção do
incesto (porque é uma invenção e
das mais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais
repugnante que entre outras pessoas
de gerações diferentes, coisa que ocorre em nossos dias até nos países
mais beatos, sem produzir grande
horror. Velhas "donzelas" de mais de setenta anos casam-se, se são
bastante ricas, com jovens de uns
trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de família mais primitivas que
conhecemos das concepções de
incesto que lhes correspondem ( concepções completamente diferentes das
nossas e muitas vezes em
contradição direta com elas), chegaremos a uma forma de relações carnais que só
pode ser chamada de promiscuidade
sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais
tarde pelo costume. Mas disso não
se deduz, de modo algum, que na prática cotidiana imperasse
inevitavelmente a promiscuidade. As
uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em absoluto, e
ocorrem, na maioria dos casos,
mesmo no matrimônio por grupos. E se Westermarck, o último a negar esse
estado primitivo, dá o nome de
matrimônio a todo caso em que os dois sexos convivem até o nascimento de
um pimpolho, pode-se dizer que tal
matrimônio podia muita bem verificar-se nas condições da
promiscuidade sexual sem
contradizê-la em nada, isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras
impostas
pelo costume às relações sexuais. É
verdade que Westermarck parte do ponto de vista de que "a
promiscuidade supõe a supressão das
inclinações individuais", de tal sorte que "sua forma por excelência
é a
prostituição". Parece-me, ao
contrário, que será impossível formar a menor ideia das condições primitivas
enquanto elas forem observadas
através da janela de um lupanar. Voltaremos a falar desse assunto quando
tratarmos do matrimônio por grupos.
Segundo Morgan, desse estado
primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se: e
avós, nos limites da família, são
maridos e mulheres entre si: o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer,
com os pais e mães; os filhos
destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e seus
filhos, isto é, os bisnetos dos
primeiros, o quarto círculo. Nessa forma de família, os ascendentes e
descendentes, os pais e filhos, são
os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres
(poderíamos dizer) do matrimônio.
Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus,
são todos, entre si, irmãos e
irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão
e irmã pressupõe, por si, nesse
período, a relação carnal mútua.
Exemplo típico de tal família
seriam descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações
sucessivas todos fossem entre si
irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros.
A família consangüínea desapareceu.
Nem mesmo os povos riais atrasados de que fala a história
apresentam qualquer exemplo seguro
dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o
sistema de parentesco havaiano,
ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de parentesco
consanguíneo que só puderam surgir
com essa forma de família; e somos levados d mesma conclusão por
todo o desenvolvimento ulterior da
família, que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário.
Próximo capítulo: A FAMÍLIA PUNALUANA
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