No regime de matrimônio por
grupos, ou talvez antes, já se
formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o. homem
tinha uma mulher principal (ainda
não se pode dizer que fosse uma favorita) entre suas numerosas esposas,
e era para ela o esposo principal
entre todos os outros. Esta circunstância contribuiu bastante para a
confusão produzida na mente dos
missionários, que vêem no matrimônio por grupos ora uma comunidade
promíscua das mulheres, ora um
adultério arbitrário. A medida, porém, que evoluíam as gens e iam-se
fazendo mais numerosas as classes de
"irmãos" e "irmãs", entre os quais agora era
impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no
costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela gens á proibição do
matrimônio entre, parentes
consanguíneos levou as coisas ainda mais longe. Assim, vemos que entre
os iroqueses e entre a maior parte
dos índios da fase inferior da barbárie, está proibido o matrimônio
entre todos os parentes reconhecidos pelo
seu sistema, no qual há algumas centenas de parentescos diferentes. Com
esta crescente complicação das
proibições de casamento, tornaram-se cada vez mais impossíveis as
uniões por grupos, que foram
substituídas pela família sindiásmica. Neste estágio, um homem vive com
uma mulher, mas de maneira tal
que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito
dos homens, embora a poligamia seja
raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a
mais rigorosa fidelidade das
mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas
cruelmente castigado. O vínculo
conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra
parte, e depois, como antes, os filhos
pertencem exclusivamente à mãe.
Nessa exclusão, cada vez maior, que afeta os parentes consanguíneos do
laço conjugal, a seleção
natural continua a produzir seus efeitos. Segundo Morgan, o
"matrimônio entre gens não consanguíneos
engendra uma raça mais forte, tanto física como mentalmente;
mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os
novos crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreendiam as
capacidades de ambas as tribos".
As tribos que haviam adotado o regime das gens estavam chamadas, pois,
a predominar sobre as mais
atrasadas, ou a arrastá-las com seu exemplo.
A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste
numa redução constante do
círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos,
círculo que originariamente abarcava a
tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos,
depois dos parentes distantes e, por
fim até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na
prática qualquer matrimônio por
grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por
vínculos ainda frágeis - essa molécula com
cuja dissociação acaba o matrimônio em geral. Isso prova quão pouco tem
a ver a origem da monogamia com
o amor sexual individual, na atual acepção da palavra. Prova-o ainda
melhor a prática de todos os povos que
se acham nesta fase de seu desenvolvimento. Enquanto nas anteriores
formas de família os homens nunca
passavam por dificuldades para encontrar mulheres, e tinham até mais do
que precisavam, agora as mulheres
escasseavam e era necessário procurá-las. Por isso começam, com o
matrimônio sindiásmico, o rapto e a
compra de mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada além de
sintomas de uma transformação muito
mais profunda que se havia efetuado. Mac Lennan, esse escocês pedante,
transformou, por arte de sua
fantasia, tais sintomas, que não passam de simples métodos de adquirir
mulheres, em diferentes classes de
famílias, sob a forma de "matrimônio por rapto", e
"matrimônio por compra". Além do mais, entre os índios
da América e em outras tribos (no mesmo estágio), o arranjo de um
matrimônio não concerne aos
interessados, aos quais muitas vezes nem se consulta, e sim a suas
mães. Comumente, desse modo, ficam
comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento
só ficam sabendo quando chega
o momento do enlace. Antes do casamento, o noivo dá presentes aos
parentes gentílicos da noiva (quer dizer:
aos parentes desta por parte de mãe, excluídos os parentes por parte de
pai e o próprio pai) e esses presentes
são considerados como o preço pelo qual o homem compra a jovem núbil
que lhe cedem. O matrimônio é
dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges. Em numerosas tribos,
contudo, como, por exemplo, entre os
iroqueses, formou-se, pouco a pouco, uma opinião pública hostil a essas
separações; em caso de disputas
entre os cônjuges, intervinham os parentes gentílicos de cada parte e
só se esta mediação não surtisse efeito é
que se levava a cabo o rompimento, permanecendo o filho com a mulher e
ficando cada uma das partes livre
para casar novamente.
A família sindiásmica, demasiado débil e instável por si mesma para
fazer sentir a necessidade ou
simplesmente o desejo de um lar particular, não suprime, em absoluto, o
lar comunista que nos apresenta a
época precedente. Mas lar comunista significa predomínio da mulher na
casa; tal como o reconhecimento
exclusivo de uma mãe própria, na impossibilidade de conhecer com
certeza o verdadeiro pai; significa alto
apreço pelas mulheres, isto é, pelas mães. Uma das idéias mais absurdas
que nos transmitiu a filosofia do
século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do
homem. Entre todos os selvagens e
em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em
parte) superior da barbárie, a mulher
não só é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi
durante muitos anos missionário entre
os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da mulher, ainda
no matrimônio sindiásmico: "A respeito
de suas famílias, na época em que ainda viviam nas antigas
casas-grandes (domicílios comunistas de muitas
famílias) . . . predominava sempre lá um clã (uma gens) e as mulheres
arranjavam maridos em outros clãs
(gens) . . . Habitualmente as mulheres mandavam na casa; as provisões
eram comuns, mas - ai do pobre
marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer
sua parte ao fundo de provisões da
comunidade ! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa,
podia, a qualquer momento, ver-se
obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil tentar
opor resistência, porque a casa se convertia
para ele num inferno; não havia remédio senão o de voltar ao seu
próprio clã (gens) ou, o que costumava
acontecer com freqüência, contrair novos matrimônio em outro. As
mulheres constituíam a grande força
dentro dos clãs (gens) e, mesmo, em todos os lugares. Elas não
vacilavam, quando a ocasião exigia, em
destituir um chefe e rebaixá-lo á condição de mero guerreiro." A
economia doméstica comunista, em que a
maioria das mulheres, se não a totalidade, é de uma mesma gens, ao
passo que os homens pertencem a outras
gens diferentes, é a base efetiva daquela preponderância das mulheres
que, nos tempos primitivos, esteve
difundida por toda parte - fenômeno cujo descobrimento constitui o
terceiro mérito de Bachofen. Posso
acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do
trabalho excessivo com que se
sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão,
de modo algum, em contradição com
o que acabo de dizer. A divisão do trabalho entre os dois sexos depende
de outras causas que nada têm a ver
com a posição da mulher na sociedade. Povos nos quais as mulheres se
vêem obrigadas a trabalhar muito
mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, têm
freqüentemente muito mais consideração real
por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de
aparentes homenagens, estranha a todo
trabalho efetivo, tem uma posição social bem inferior à mulher bárbara,
que trabalha duramente, e, no seio do
seu povo, vê-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau
= senhora) e o é de fato por sua
própria posição.
Novas investigações acerca dos povos do noroeste e sobretudo no sul da
América, que ainda se acham
na fase superior do estado selvagem, deverão dizer-nos se o matrimônio
sindiásmico substituiu ou não por
completo hoje, na América, o matrimônio por grupos. Quanto aos
sul-americanos, são referidos tão variados
exemplos de licença sexual que se torna difícil admitir o
desaparecimento completo do antigo matrimônio
por grupos. Em todo caso, ainda não desapareceram todos os seus
vestígios. Pelo menos, em quarenta tribos
da América do Norte, o homem que se casa com a moça mais idosa tem
direito a tomar igualmente como
mulheres a todas as irmãs da mesma, logo que cheguem à idade própria.
Isto é um vestígio da comunidade de
maridos para todo um grupo de irmãs. Dos habitantes da península da
Califórnia ( fase superior do estado
selvagem), conta Bancroft que têm certas festividades em que se reúnem
várias "tribos" para praticar o
intercurso sexual mais promíscuo. Com toda a evidência são gens, que,
nessas festas, conservam uma baga
reminiscência do tempo em que as mulheres de uma gens tinham por
maridos comuns todos os homens de
outra, e reciprocamente. O mesmo costume impera ainda na Austrália. Em
alguns povos, acontece que os
anciãos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes praticam, em proveito
próprio, a comunidade de mulheres e
monopolizam a maior parte delas; em compensação, porém, durante certas
festas e grandes assembléias
populares, são obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir
que suas mulheres se divirtam com os
homens jovens. Westermarck dá uma série de exemplos de saturnais desse
gênero, nas quais ressurge, por
pouco tempo, a antiga liberdade de intercurso sexual: entre os hos, os
santalas, os pandchas e os cotaros, na
índia, em alguns povos africanos, etc. Westermarck deduz, de maneira
assaz estranha, que estes fatos não
constituem restos do matrimônio por grupos - cuja existência ele nega -
e sim restos do período do cio, que os
homens primitivos tiveram em comum com os animais.
Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen: o da grande difusão
da forma de transição
do matrimônio por grupos ao matrimônio sindiásmico. Aquilo que Bachofen
representa como uma penitência
pela transgressão de antigos mandamentos dos deuses, uma penitência
imposta à mulher para ela comprar seu
direito à castidade, não passa, em resumo, de uma expressão mística do
resgate mediante o qual a mulher se
liberta da antiga comunidade de maridos e adquire para si o direito de
não se entregara mais de um homem.
Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante um determinado
período: as mulheres babilônicas
estavam obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Milita,
outros povos da Ásia Menor
enviavam suas filhas ao templo de Ananis, onde, durante anos inteiros,
elas deveriam praticar o amor livre
com os favoritos que escolhessem, antes de lhes ser concedida permissão
para casarem-se; em quase todos os
povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges há práticas
análogas, disfarçadas em costumes religiosos.
O sacrifício de expiação, que desempenha o papel do resgate, torna-se,
com o tempo, cada vez mais
ligeiro - como nota Bachofen: "A oferenda, repetida a cada ano,
cede lugar a um sacrifício feito uma única
vez; ao heterismo das matronas, segue-se o das jovens solteiras;
verifica-se a prática antes do matrimônio, ao
invés de durante o mesmo; e em lugar de abandonar-se a todos, sem ter o
direito de escolher, a mulher já não
se entrega senão a certas pessoas." (Direito Materno, pág. xix. )
Em outros povos não existe esse disfarce religioso; entre alguns deles
- os trácios, os celtas, etc., na
antiguidade, em grande número de aborígines da Índia, nos povos
malaios, nos ilhéus da Oceania e entre
muitos índios americanos, hoje as jovens gozam de maior liberdade
sexual até contraírem matrimônio. Assim
acontece, sobretudo, na América do Sul, conforme podem atestá-lo
quantos hajam penetrado um pouco em
seu interior. De uma rica família de origem índia, refere Agassiz
(Viagem pelo Brasil, Boston, 1886, pág.
226) que, tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai,
supondo que seria o marido de sua mãe,
oficial do exército em campanha contra o Paraguai; mas a mãe lhe
respondeu, com um sorriso: "Não tem pai,
é filha da fortuna". "As mulheres índias ou mestiças falam
sempre neste tom, sem considerar vergonhoso ou
censurável, de seus filhos ilegítimos; e essa é a regra, ao passo que o
contrário parece ser a exceção. Os
filhos[ . . . ], amiúde conhecem apenas sua mãe, porque todos os
cuidados e todas as responsabilidades
recaem sobre ela; nada sabem a respeito do pai, nem parece possa
ocorrer á mulher a idéia de que ela ou seus
filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa." O que aqui
parece assombroso ao homem civilizado é
simplesmente a regra no matriarcado e no matrimônio por grupos.
Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, ou os convidados à
celebração das bodas, exercem,
durante o casamento mesmo, o direito á noiva, por costume imemorial, e
ao noivo só chega a vez por último,
depois de todos; isso se dava nas ilhas Baleares e entre os augilas
africanos, na antiguidade, e ocorre ainda
hoje entre os báreas, na Abissínia. Há povos, ainda, em que um
personagem oficial, chefe da tribo ou da
gens, cacique, xamã, sacerdote ou príncipe, aquele que representa a
coletividade, é quem exerce com a
mulher que se casa o direito da primeira noite (bus primae noctis.)
Apesar de todos os esforços neoromânticos
para coonestá-lo, esse jus primae noctis continua existindo, em nossos
dias, como uma relíquia do
matrimônio por grupos, entre a maioria dos habitantes do território do
Alasca ( Bancroft: Tribos Nativas, I,
pág. 81), entre os tanus do norte do México ( op. cit., pág. 584 ) e
entre outros povos; e existiu durante toda a
Idade Média, pelo menos nos países de origem céltica, onde nasceu
diretamente do matrimônio por grupos;
em Aragão, por exemplo. Enquanto em Castela o camponês nunca foi servo,
em Aragão reinou a servidão
mais abjeta até a sentença ou édito arbitrai de Fernando, o Católico,
em 1486, documento onde se diz:
"Julgamos e determinamos que os senhores (senyors, barões)
supraditos tampouco poderão passar a primeira
noite com a mulher que haja tomado de um camponês, nem poderão,
igualmente, durante a noite das núpcias,
depois que a mulher se tenha deitado na cama, passar a perna por cima
da cama ou da mulher, em sinal de
sua soberania. Nem poderão os supraditos senhores servir-se das filhas
ou filhos dos camponeses contra a
vontade deles, com ou sem pagamento." ( Citado, segundo o texto
original em catalão, por Sugenheim. A
Servidão, São Petersburgo, 1861, pág. 35).
Afora isso, Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do
que ele chama de
"heterismo" ou "Sumpfzeugung" à monogamia
realizou-se essencialmente graças às mulheres. Quanto mais
as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente primitivo e
selvático, por forçado desenvolvimento
das condições econômicas e, paralelamente, por força da decomposição do
antigo comunismo, e da
densidade cada vez maior da população, tanto mais envilecedoras e
opressivas devem ter parecido essas
relações para as mulheres, que com maior força deviam ansiar pelo
direito à castidade, como libertação, pelo
direito ao matrimônio, temporário ou definitivo, com um só homem. Esse
progresso não podia ser devido ao
homem, pela simples razão, que dispensa outras, de que jamais, ainda em
nossa época, lhe passou pela
cabeça a idéia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matrimônio
por grupos. Só depois de efetuada pela
mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos
homens introduzirem a estrita
monogamia - na verdade, somente para as mulheres.
A família sindiásmica aparece no limite entre o estado selvagem e a
barbárie, no mais das vezes
durante a fase superior do primeiro, apenas em certos lugares durante a
fase inferior da segunda. É a forma de
família característica da barbárie, como o matrimônio por grupos é a do
estado selvagem e a monogamia é a
da civilização. Para que a família sindiásmica evoluísse até chegar a
uma monogamia estável, foram
necessárias causas diversas daquelas cuja ação temos estudado até
agora. Na família sindiásmica já o grupo
havia ficado reduzido à sua última unidade, à sua molécula biatômica:
um homem e uma mulher. A seleção
natural realizara sua obra, reduzindo cada vez mais a comunidade dos
matrimônios; nada mais havia a fazer
nesse sentido. Portanto, se não tivessem entrado em jogo novas forças
impulsionadoras de ordem social, não
teria havido qualquer razão para queda família sindiásmica surgisse
outra forma de família. Mas tais forças
impulsionadoras entraram em jogo.
Deixemos agora a América, terra clássica da família sindiásmica. Não há
indícios que nos permitam
afirmar que nela se tenha desenvolvido alguma forma superior de
família, que nela tenha existido a
monogamia estável, em qualquer tempo ou lugar, antes do descobrimento e
da conquista. O contrário
aconteceu no Velho Mundo.
Aqui, a domesticação de animais e a criação do gado haviam aberto
mananciais de riqueza até então
desconhecidos, criando relações sociais inteiramente novas. Até a fase
inferior da barbárie, a riqueza
duradoura limitava-se pouco mais ou menos à habitação, às vestes, aos
adornos primitivos e aos utensílios
necessários para a obtenção e preparação dos alimentos: o barco, as
armas, os objetos caseiros mais simples.
O alimento devia ser conseguido todo dia, novamente. Agora, com suas
manadas de cavalos, camelos, asnos,
bois, carneiros, cabras e porcos, os povos pastores, que iam ganhando
terreno ( os ários, no indiano País dos
Cinco Rios e no vale do Ganges, assim como nas estepes de Oxus e
Jaxartes, na ocasião esplendidamente
irrigadas, e os semitas no Tigre e no Eufrates), haviam adquirido
riquezas que precisavam apenas de
vigilância e dos cuidados mais primitivos para reproduzir-se em
proporção cada vez maior e fornecer
abundantíssima alimentação de carne e leite. Desde então, foram
relegados a segundo plano todos os meios
anteriormente utilizados; a caça, que em outros tempos era uma
necessidade, transformou-se em passatempo.
A quem, no entanto, pertenceria essa riqueza nova ? Não há dúvida de
que, na sua origem, pertenceu à
gens. Mas bem cedo deve ter-se desenvolvido a propriedade privada dos
rebanhos. É bem difícil dizer se o
autor do chamado primeiro livro de Moisés considerava o patriarca
Abraão proprietário de seus rebanhos por
direito próprio, por ser o chefe de uma comunidade familiar, ou em
virtude de seu caráter de chefe hereditário
de uma gens. Seja como for, o certo é que não devemos imaginá-lo como
proprietário, no sentido moderno da
palavra. É indubitável, também, que, nos umbrais da história
autenticada já encontramos em toda parte os
rebanhos como propriedade particular dos chefes de família, com n mesmo
título que os produtos artístico da
barbárie, os utensílios de metal, os objetos de luxo e, finalmente, o
gado humano: os escravos.
A escravidão já tinha sido inventada. O escravo não tinha valor algum
para os bárbaros da fase
inferior. Por isso os índios americanos relativamente aos seus inimigos
vencidos agiam de maneira bastante
diferente da usada na fase superior. A tribo vencedora matava os homens
derrotados, ou adotava-os como
irmãos; as mulheres eram tomadas como esposas, ou, juntamente com seus
filhos sobreviventes, adotadas de
qualquer outra forma. Nessa fase, a força de trabalho do homem ainda
não produz excedente apreciável sobre
os gastos de sua manutenção. Ao introduzirem-se, porém, a criação do
gado, a elaboração dos metais, a arte
do tecido e, por fim, a agricultura, as coisas ganharam outra
fisionomia. Principalmente depois Sue os
rebanhos passaram definitivamente á propriedade da família, deu-se com
a força de trabalho o mesmo que
havia sucedido com as mulheres, antes tão fáceis de obter e que agora
já tinham seu valor de troca e eram
compradas. A família não se multiplicava com tanta rapidez quanto o
gado. Agora eram necessárias mais
pessoas para os cuidados com a criação; podia ser utilizado para isso o
prisioneiro de guerra que, além do
mais, poderia multiplicar-se tal como o gado.
Convertidas todas essas riquezas em propriedade particular das
famílias, e aumentadas depois
rapidamente, assestaram um rude golpe na sociedade alicerçada no
matrimônio sindiásmico e na gens
baseada no matriarcado. O matrimônio sindiásmico havia introduzido na
família um elemento novo. junto á
verdadeira mãe tinha posto o verdadeiro pai, provavelmente mais
autêntico que muitos "pais" de nossos dias.
De acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia ao homem
procurar a alimentação e os
instrumentos de trabalho necessários para isso; consequentemente, era,
por direito, o proprietário dos
referidos instrumentos, e em caso de separação levava-os consigo, da
mesma forma que a mulher conservava
os seus utensílios domésticos. Assim, segundo os costumes daquela
sociedade, o homem era igualmente
proprietário do novo manancial de alimentação, o gado, e, mais adiante,
do novo instrumento de trabalho, o
escravo. Mas, consoante o uso daquela mesma sociedade, seus filhos não
podiam herdar dele, pois, quanto a
este ponto, as coisas se passavam da maneira a seguir exposta.
Com base no direito materno, isto é, enquanto a descendência só se
contava por linha feminina, e
segundo a primitiva lei de herança imperante na gens, os membros dessa
mesma gens herdavam, no
principio, do seu parente gentílico falecido. Seus gens deveriam ficar,
pois, dentro da gens. Devido á sua
pouca importância, esses gens passavam, na prática, desde os tempos
mais remotos, aos parentes gentílicos
mais próximos, isto é, aos consangüíneos por linha materna. Entretanto,
os filhos de um homem falecido não
pertenciam á gens daquele, mas á de sua mãe; ao princípio, herdavam da
mãe, como os demais
consangüíneos desta; depois, provavelmente, foram seus primeiros
herdeiros, mas não podiam sê-lo de seu
pai, porque não pertenciam á gens do mesmo, na qual deveriam ficar os
seus gens. Desse modo, pela morte
do proprietário de rebanhos, esses passavam em primeiro lugar aos seus
irmãos e irmãs, e aos filhos destes ou
aos descendentes das irmãs de sua mãe; quanto aos seus próprios filhos,
viam-se eles deserdados.
Dessa forma, pois, as riquezas, á medida que iam aumentando, davam, por
um lado, ao homem uma
posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado,
faziam com que nascesse nele a idéia
de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos,
a ordem da herança estabelecida. Mas
isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação
segundo o direito materno. Esse direito
teria que ser abolido, e o foi. E isto não foi tão difícil quanto hoje
nos parece. Tal revolução. - uma das mais
profundas que a humanidade já conheceu - não teve necessidade de tocar
em nenhum dos membros vivos da
gens. Todos os membros da gens puderam continuar sendo o que até então
haviam sido. Bastou decidir
simplesmente que, de futuro, os descendentes de um membro masculino
permaneceriam na gens, mas os
descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando à gens de seu
pai. Assim, foram abolidos a
filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos
pela filiação masculina e o direito
hereditário paterno. Não sabemos a respeito de como e quando se
produziu essa revolução entre os povos
cultos, pois isso remonta aos tempos pré-históricos. Mas os dados
reunidos, sobretudo por Bachofen, acerca
dos numerosos vestígios do direito materno, demonstram plenamente que
tal revolução ocorreu; e com que
facilidade, verificamo-lo em muitas tribos índias onde acaba de
efetuar-se, ou se está realizando, em parte
pelo influxo do incremento das riquezas e modificações no gênero de
vida (migração dos bosques para os
prados), em parte pela influência moral da civilização e dos
missionários. De oito tribos do Missouri, seis
estão regidas pela linhagem e ordem de herança masculinas, duas pelas
femininas. Entre os schawnees, os
miamies e os delawares adotou-se o costume de dar aos filhos um nome
pertencente à gens paterna, para
fazê-los passar a esta, a fim de poderem herdar de seu pai.
"Casuística inata nos homens a de mudar as coisas
mudando-lhes os nomes 1 E achar saídas para romper com a tradição sem
sair dela, sempre que um interesse
direto dá o impulso suficiente para isso" (Marx). Resultou daí uma
espantosa confusão, que só podia ser
remediada - e parcialmente o foi - com a passagem ao patriarcado.
"Esta parece ser a transição mais natural"
(Marx). Quanto ao que os especialistas em Direito Comparado podem
dizer-nos sobre o modo como se deu
essa transição entre os povos civilizados do Mundo Antigo - quase tudo
são hipóteses -, veja-se Kovalévski,
Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Propriedade, Estocolmo,
1890.
O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo
feminino em todo o mundo.
O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se
degradada, convertida em servidora, em
escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa
baixa condição da mulher,
manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda
mais, entre os dos tempos clássicos, tem
sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até
revestida de formas de maior suavidade,
mas de maneira alguma suprimida.
O primeiro efeito do poder exclusivo dos homens, desde o momento em que
se instaurou, observamo-lo
na forma intermediária da família patriarcal, que surgiu naquela
ocasião. O que caracteriza essa família,
acima de tudo, não é a poligamia, da qual logo falaremos, e sim a
"organização de certo número de
indivíduos, livres e não livres, numa família submetida ao poder
paterno de seu chefe. Na forma semítica,
esse chefe de família vive em plena poligamia, os escravos têm uma
mulher e filhos, e o objetivo da
organização inteira é o de cuidar do gado numa determinada área."
Os traços essenciais são a incorporação
dos escravos e o domínio paterno; por isso a família romana é o tipo
perfeito dessa fôrma de família. Em sua
origem, a palavra família não significa o ideal - mistura de
sentimentalismo e dissensões domésticas do
filisteu de nossa época; - a princípio, entre os romanos, não se
aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus
filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico
e família é o conjunto dos escravos
pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família "id
est patrimonium" ( isto é, herança) era
transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos
para designar um novo organismo
social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo
número de escravos, com o pátrio poder
romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. "A palavra
não é, pois, mais antiga que o férreo sistema
familiar das tribos latinas que nasceu ao introduzirem-se a agricultura
e a escravidão legal, depois da cisão
entre os gregos e latinos arianos." E Marx acrescenta: "A
família moderna contém, em germe, não apenas a
escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo,
está relacionada com os serviços da
agricultura. Encerra, em miniatura, todos os antagonismos que se
desenvolvem, mais adiante, na sociedade e
em seu Estado."
Esta forma de família assinala a passagem do matrimônio sindiásmico á
monogamia. Para assegurar a
fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos,
aquela é entregue, sem reservas, ao poder
do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu
direito.
Com a família patriarcal, entramos no domínio da História escrita, onde
a ciência do Direito
Comparado nos pode prestar grande auxílio. Efetivamente, essa ciência
nos permitiu aqui fazer importantes
progressos. A Máxím Kovalévski (Quadro das Origens e da Evolução da
Família e da Propriedade,
Estocolmo, 1890, págs. 60/100), devemos a idéia de que a comunidade
familiar patriarcal (patriarchalische
Hausgenossenchaft), conforme ainda existe entre os sérvios e os
búlgaros com o nome de zádruga (que pode
traduzir-se mais ou menos por confraternidade) ou bratswo (fraternidade)
e, sob uma forma modificada, entre
os orientais, constituiu o estágio de transição entre a família de
direito materno - fruto do matrimônio por
grupos - e a monogamia moderna. Isso parece provado, pelo menos quanto
aos povos civilizados de Mundo
Antigo, os árias e os semitas.
A zádruga dos eslavos do sul constitui o melhor exemplo ainda existente
de uma comunidade familiar
dessa espécie. Abrange muitas gerações de descendentes de um mesmo pai,
os quais vivem juntos, com suas
mulheres, sob um mesmo teto; cultivam suas terras em comum,
alimentam-se e vestem-se de um fundo
comum e possuem coletivamente a sobra dos produtos. A comunidade está
sujeita à administração superior
do dono da casa (domàcin), que a representa ante o mundo exterior, tem
o direito de alienar as coisas de
menor valor, movimenta as finanças, é responsável por elas, tal como
pela boa marcha dos negócios. É eleito,
e para isso não precisa ser o de mais idade. As mulheres e o trabalho
das mesmas estão sob a direção da dona
da casa (domàcica), que costuma ser a mulher do domàcin. Esta,
igualmente, tem voz - e amiúde decisiva -
na escolha de maridos para as jovens solteiras. Porém o poder supremo
pertence ao conselho de família, á
assembléia de todos os adultos da comunidade, homens e mulheres.
Perante esta assembléia, o chefe de
família presta contas, e é ela que resolve as questões importantes,
ministra justiça entre todos os membros da
comunidade, decide sobre as compras e vendas mais importantes,
sobretudo as de terras, etc.
Não faz mais de dez anos que se comprovou, na Rússia, a existência de
grandes comunidades
familiares desse gênero; e hoje todo o mundo reconhece que elas têm,
nos costumes populares russos, raízes
tão profundas quanto a obschina ou comunidade rural. Figuram no mais
antigo código russo a Pravda de
Yaroslav - com o mesmo nome (verv) com que aparecem nas leis da
Dalmácia; e nas fontes históricas
tchecas e polonesas também podemos encontrar referências a elas.
Igualmente entre os germanos, segundo Heusler (Instituições do Direito
Alemão), a unidade
econômica primitiva não é a família isolada, no sentido moderno da
palavra, e sim uma "comunidade
familiar" (Hausgenossenschaft) que se compõe de várias gerações
com suas respectivas famílias e que inclui
freqüentemente indivíduos não livres. A família romana refere-se,
também, a essa espécie de comunidade, e,
por causa disso, o poder absoluto do pai sobre os demais membros da
família, por certo privados inteiramente
de direitos quanto a ele, tem sido posto muito em dúvida ultimamente.
Comunidades familiares assim devem
ter existido entre os celtas da Irlanda; subsistiram na França, no
Nivernais, coro o nome de parçonneries, até
a Revolução Francesa - e ainda não se extinguiram no Franco-Condado.
Nos arredores de Louans (Saone e
Loire), vêem-se grandes casarões de camponeses com uma sala comum,
central, muito alta, que chega até a
cumeeira do telhado; em torno se encontram os dormitórios, aos quais se
sobe por escadas de seis a oito
degraus; nesses casarões moram diversas gerações da mesma família.
A comunidade familiar, com cultivo do solo em comum, já era mencionada,
na índia, por Nearco, ao
tempo de Alexandre Magno, e ainda existe no Panjabe e em todo o
noroeste do país. O próprio Kovalévski
pôde encontrá-la no Cáucaso. Na Argélia ainda existe, nas Cabilas.
Diz-se que existiu até na América;
esforços são feitos para identificá-la com as "calpullis" no
antigo México, descritas por 7urita; por outro
lado, Cunow ( Ausland, 1890, números 42/44 ) , demonstrou, com bastante
clareza, que, na época da
conquista, existia no Peru uma espécie de marca ( que, curiosamente,
ali também se chamava marca), com
partilha periódica das terras cultiváveis e, consequentemente, cultivo
individual.
Em todo caso, a comunidade familiar patriarcal, com posse e cultivo do
solo em comum, adquire
agora uma significação bem diferente da que tinha antes. Já não podemos
duvidar do grande papel de
transição que desempenhou, entre os civilizados e outros povos na
antiguidade, no período entre a família de
direito materno e a família monogâmica. Adiante falaremos a respeito de
outra conclusão de Kovalévski, a
saber: que a comunidade familiar foi igualmente o estágio de transição
que precedeu a marca ou comunidade
rural, com cultivo individual do solo e partilha a princípio periódica
e depois definitiva - dos campos e
pastos.
Quanto à vida em família no seio de tais comunidades familiares,
deve-se ressaltar que, pelo menos na
Rússia, os donos da casa têm fama de abusar muito de sua situação, no
que concerne às mulheres mais jovens
da comunidade, principalmente suas noras, com as quais muitas vezes
formam um harém; as canções
populares russas são bastante eloqüentes a respeito.
Antes de passar à monogamia - à qual o fim do matriarcado imprime um
rápido desenvolvimento -
devemos dizer algumas palavras sobre a poligamia e a poliandria. Estas
duas formas de matrimônio só
podem ser exceções, artigos de luxo da história, digamo-lo, a não ser
que se verifiquem simultaneamente, em
um mesmo país, o que, como sabemos,
não ocorre. Pois bem: como os homens excluídos da poligamia não se
podiam consolar com as mulheres
deixadas de lado pela poliandria, e como o número de homens e mulheres,
independentemente das
instituições sociais, tem sido sempre quase igual, até nossos dias, nenhuma
dessas
duas formas de matrimônio se
generalizou. Na realidade, a poligamia de um homem era, evidentemente, um
produto da escravidão e
limitava-se a alguns poucos casos excepcionais. Na família patriarcal semítica,
o
próprio patriarca e, no máximo,
alguns de seus filhos vivem como polígamos, contentando-se
obrigatoriamente os demais com
uma só mulher. Assim sucede, ainda hoje, em todo o Oriente: a poligamia é
um privilégio dos ricos e dos
poderosos, e as mulheres são recrutadas sobretudo na compra de escravas; a
massa do povo é monógama. Uma
exceção parecida é a da poliandria na India e no Tibete, nascida do
matrimônio por grupos e cuja
interessante origem fica por ser estudada mais a fundo. Na prática, parece bem
mais tolerante que o ciumento
regime dos haréns muçulmanos. Entre os narres da índia, pelo menos, três,
quatro ou mais homens têm uma
mulher em comum; mas cada um deles pode ter, em conjunto com outros
homens, uma segunda, uma
terceira, uma quarta mulher, ou mais. E surpreendente que Mac Lennan, ao
descrevê-los, não tenha
descoberto uma nova categoria de matrimônio o matrimônio por clubes - nesses
clubes conjugais, de vários dos
quais um homem pode fazer parte. Por certo, o sistema de clubes conjugais
nada tem a ver com a poliandria
efetiva; ao contrário, como já o notou Giraud-Teulon, é uma forma particular
(spezialisierte) do matrimônio
por grupos; os homens vivem na poligamia, e as mulheres na poliandria.
Próximo capitulo: A FAMÍLIA MONOGÂMICA
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