A FAMÍLIA MONOGÂMICA
Friedrich Engels
A FAMÍLIA MONOGÂMICA. Nasce, conforme indicamos, da família sindiásmica, no
período de
transição
entre a fase média e a fase superior da barbárie; seu triunfo definitivo é um
dos sintomas da
civilização
nascente. Baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de
procriar filhos cuja
paternidade
seja indiscutível; e exige-se, essa paternidade, indiscutível porque os filhos,
na qualidade de
herdeiros
diretos, entrarão, um dia, na posse dos gens de seu pai. A família monogâmica
diferencia-se do
matrimônio
sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem
ser rompidos
por
vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e
repudiar sua mulher.
Ao
homem, igualmente, se concede o direito á infidelidade conjugal, sancionado ao
menos pelo costume ( o
Código
de Napoleão outorga-o expressamente, desde que ele não traga a concubina ao
domicílio conjugal), e
esse
direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa a evolução
da sociedade. Quando
a
mulher, par acaso, recorda as antigas práticas sexuais e intenta renová-las, é
castigada mais rigorosamente
do
que em qualquer outra época anterior.
Entre
os gregos, encontramos, com toda a sua severidade, a nova forma de família.
Enquanto a
situação
das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um período anterior,
em que as mulheres
ocupavam
uma posição mais livre e de maior consideração, nos tempos heróicos já vemos a
mulher
humilhada
pelo predomínio do homem e pela concorrência das escravas. Leia-se na Odisséia,
como
Telêmaco
interrompe sua mãe e lhe impõe silêncio. Em Homero, os vencedores aplacam seus
apetites
sexuais
nas jovens capturadas, escolhendo os chefes para si, por turno e segundo a sua
categoria, as mais
formosas;
e é sabido que toda a Ilíada gira em torno de uma disputa mantida entre Aquiles
e Agamenon por
causa
de uma escrava. Junto a cada herói, mais ou menos importante, Homero fala da
jovem cativa que vive
em
sua tenda e dorme em seu leito. Essas jovens eram, ainda, conduzidas ao país
natal dos heróis, á casa
conjugal,
conforme Agamenon fez com Cassandra em Ésquilo. Os filhos nascidos dessas
escravas recebem
uma
pequena parte da herança paterna e são considerados homens livres; assim,
Teucro, que é filho natural
de
Telamon, tem direito de usar o nome de seu pai.
Quanto
á mulher legítima, exige-se dela que tolere tudo isso e, por sua vez, guarde
uma castidade e
uma
fidelidade conjugal rigorosas. É certo que a mulher grega da época heróica é
mais respeitada que a do
período
civilizado; todavia, para o homem, não passa, afinal de contas, da mãe de seus
filhos legítimos, seus
herdeiros,
aquela que governa a casa e vigia as escravas - escravas que ele pode
transformar ( e transforma)
em
concubinas, à sua vontade. A existência da escravidão junto á monogamia, a
presença de jovens e belas
cativas
que pertencem, de corpo e alma, ao homem, é o que imprime desde a origem um
caráter específico á
monogamia
que é monogamia só para a mulher, e não para o homem. E, na atualidade,
conserva-se esse
caráter.
Quanto
aos gregos de uma época mais recente, devemos distinguir entre os dóricos e os
jônios. Os
primeiros,
dos quais Espanta é o exemplo clássico, sob muitos aspectos têm relações
conjugais muito mais
primitivas
que as pintadas por Homero. Em Esparta existe um matrimônio sindiásmico
modificado pelo
Estado
conforme as concepções ali dominantes e que conserva inúmeros vestígios do
matrimônio por grupos.
As
uniões estéreis são rompidas: o rei Anaxândrides (por volta do ano 650 antes de
nossa era) tomou uma
segunda
mulher, sem deixar a primeira, que era estéril, e mantinha dois domicílios
conjugais; por essa mesma
época,
o rei Ariston, tendo duas mulheres sem filhos, tomou outra, mas despediu uma
das duas primeiras.
Além
disso, vários irmãos podiam ter uma mulher comum; o homem que preferia a mulher
de seu amigo
podia
partilhá-la com ele; e era considerado decente pôr a própria mulher à
disposição de um vigoroso
"garanhão"
(como diria Bismarck ), ainda que este não fosse um concidadão. De um trecho de
Plutarco, em
que
uma espartana envia a seu marido um amante que a perseguia com suas propostas,
pode-se, inclusive,
deduzir,
conforme Schömann, uma liberdade de costumes ainda maior. Por esta razão, era
coisa inaudita o
adultério
efetivo, a infidelidade da mulher às escondidas de seu marido. Por outro lado,
a escravidão
doméstica
era desconhecida em Esparta, pelo menos no seu apogeu; os servos ilotas viviam
separados, nas
terras
de seus senhores, e, por conseguinte, entre os cidadãos livres espartanos era
menor a tentação de se
divertirem
com as mulheres daqueles. Por todas essas razões, as mulheres tinham, em
Esparta, uma situação
de
maior respeito que entre os outros gregos. As casadas espartanas e a elite das
hetairas atenienses são as
únicas
mulheres das quais os antigos falam com consideração e das quais se deram ao
trabalho de recolher os
ditos.
Outra
coisa bem diversa se passava entre os jônios, para os quais é característico o
regime de Atenas.
As
donzelas aprendiam apenas a fiar, tecer e coser, e quando muito, a ler e a
escrever. Eram praticamente
cativas
e só lidavam com outras mulheres. Habitavam um aposento separado, situado no
alto ou atrás da casa;
os
homens, sobretudo os estranhos, não entravam ali com facilidade - e as mulheres
se retiravam quando
chegava
algum visitante. Não saíam, as mulheres, sem que as acompanhasse uma escrava;
dentro de casa,
eram
literalmente submetidas à vigilância; Aristófanes fala de cães molossos para
espantar adúlteros e, nas
cidades
asiáticas, para vigiar as mulheres, havia eunucos - os quais, desde os tempos
de Heródoto, eram
fabricados
em Quios para serem comerciados, e não serviam apenas aos bárbaros, a crer-se
em Wachsmuth.
Em
Eurípides, a mulher é designada como oikurema, isto é, algo destinado a cuidar
da casa (a palavra é
neutra)
e, além da procriação dos filhos, não passava de criada principal para o
ateniense. O homem tinha
seus
exercícios ginásticos e suas discussões públicas, coisas de que a mulher estava
excluída; costumava ter
escravas
à sua disposição e dispunha, na época florescente de Atenas, de uma prostituição
bastante extensa e,
em
todo caso, protegida pelo Estado. Aliás, foi precisamente com base nessa
prostituição que se
desenvolveram
aquelas mulheres gregas que se destacaram do nível geral da mulher do Mundo
Antigo por
seu
talento e gosto artístico, da mesma forma que as espartanas se sobressaíram por
seu caráter. Mas o fato de
que,
para se converter realmente em mulher, fosse preciso antes ser hetaira,
constitui a mais severa
condenação
à família ateniense.
Com
o tempo, essa família ateniense chegou a ser o tipo pelo qual modelaram suas
relações
domésticas
não apenas o resto dos jônios como, ainda, todos os gregos da metrópole e das
colônias.
Entretanto,
apesar do seqüestro e da vigilância, as gregas achavam muitas e freqüentes
ocasiões para enganar
os
seus maridos. Estes, que se teriam ruborizado de demonstrar o menor amor às
suas mulheres, divertiam-se
com
toda espécie de jogos amorosos com hetairas; mas o envilecimento das mulheres
refluiu sobre os
próprios
homens e também os envilece, levando-os às repugnantes práticas da pederastia e
a desonrarem seus
deuses
e a si próprios, pelo mito de Ganimedes.
Essa
foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e
desenvolvido da
antigüidade.
De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em
comum, já que os
casamentos,
antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma
de família
que
não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no
triunfo da propriedade
privada
sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos
proclamavam
abertamente
que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família
e a
procriação
de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. Quanto ao mais, p
casamento era para eles
uma
carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que
estavam obrigados a
cumprir.
Em Atenas, a lei não apenas impunha o matrimônio como, ainda, obrigava o marido
a um mínimo
determinado
do que se chama de obrigações conjugais.
A
monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma
reconciliação entre o
homem
e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo
contrário, ela surge sob a
forma
de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os
sexos, ignorado, até
então,
na pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por
mim, encontro a
seguinte
frase: "A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a
mulher para a procriação
dos
filhos”. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu
na história coincide com
o
desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a
primeira opressão de
classes,
com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande
progresso histórico,
mas,
ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas,
aquele período, que dura
até
nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e
o bem-estar e o
desenvolvimento
de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma
celular da
sociedade
civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos
antagonismos que atingem
seu
pleno desenvolvimento nessa sociedade.
A
antiga liberdade relativa de relações sexuais não desapareceu completamente com
o triunfo do
matrimônio
sindiásmico, nem mesmo com o da monogamia. "O antigo sistema conjugal,
reduzido a limites
mais
estreitos pela gradual desaparição dos grupos punaluanos, continuou
acompanhando a família que
evoluía
e ficou ligado a ela até os albores da civilização... ; desapareceu, por fim,
com a nova forma de
heterismo,
que acompanha o gênero humano até a plena civilização, qual uma sombra negra se
projetando
sobre
a família." Morgan entende por heterismo as relações extraconjugais -
existentes junto com a
monogamia
- dos homens com mulheres não casadas, relações que, como se sabe, florescem
sob as mais
variadas
formas durante toda a época da civilização e se transformam, cada vez mais, em
aberta prostituição.
Esse
heterismo descende, em linha reta, do matrimônio por grupos, do sacrifício
pessoal que as mulheres
faziam
para adquirir direito à castidade. A entrega por dinheiro foi, a princípio, um
ato religioso: era
praticada
no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do
templo. As hieródulas
de
Anaitis, na Armênia, de Afrodite em Corinto, tal como as bailarinas religiosas
agrega as aos templos da
Índia,
conhecidas pelo nome de bayaderas ( corruptela do português bailadeira), foram
as primeiras
prostitutas.
O sacrifício da entrega, no início, dever de todas as mulheres, passou a ser
exercido, mais tarde,
apenas
por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais. Em outros povos, o
heterismo provém da
liberdade
sexual concedida às jovens antes do matrimônio; assim, pois, é também um resto
do matrimônio
por
grupos, mas que chegou até nós por outros caminhos. Com a diferenciação na
propriedade, isto é, já na
fase
superior da barbárie, aparece, esporadicamente, o trabalho assalariado junto ao
trabalho dos escravos; e,
ao
mesmo tempo, como seu correlativo necessário, a prostituição profissional das
mulheres livres aparece
junto
à entrega forçada das escravas. Desse modo, pois, é dúbia a herança que o
matrimônio por grupos legou
à
civilização - e tudo que a civilização produz é também dúbio, ambíguo,
equívoco, contraditório: de um lado
a
monogamia, de outro, o heterismo, incluída a sua forma extrema, a prostituição.
O heterismo é uma
instituição
social como outra qualquer, e mantém a antiga liberdade sexual... em proveito
dos homens.
Embora
seja, de fato, não apenas tolerado, mas praticado livremente sobretudo pelas
classes dominantes, ele
é
condenado em palavras. E essa reprovação, na realidade, nunca se dirige contra
os homens que o praticam e
sim,
somente, contra as mulheres, que são desprezadas e repudiadas, para que se
proclame uma vez mais,
como
lei fundamental da sociedade, a supremacia absoluta do homem sobre o sexo
feminino.
Mas,
na própria monogamia, desenvolve-se uma segunda contradição. Junto do marido,
que
amenizava
a existência com o heterismo, acha-se a esposa abandonada. E não pode haver um
termo de uma
contradição
sem que lhe corresponda 0 outro, como não se pode ter nas mãos uma maçã
inteira, depois de se
ter
comido sua metade. Esta, no entanto, parece ter sido a opinião dos homens, até
que as mulheres lhes
puseram
outra coisa na cabeça. Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes
e
características,
até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido
torneado. Os
homens
haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram,
generosamente, de coroar
os
vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível,
chegou a ser uma instituição
social
inevitável, junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da
paternidade baseavase
agora,
como antes, no convencimento moral, e para resolver a contradição insolúvel o
Código de Napoleão
dispôs
em seu artigo 312: "L'enfam conçu pendam le mariage a pour père le
mari". ( "O filho concebido
durante
o matrimônio tem por pai o marido:”). É este o resultado final de três mil anos
de monomogia.
Assim,
pois, nos casos em que a família monogâmica reflete fielmente sua origem
histórica e
manifesta
com clareza o conflito entre o homem e a mulher, originado pelo domínio
exclusivo do primeiro,
teremos
um quadro em miniatura das contradições e antagonismos em meio aos quais se
move a sociedade,
dividida
em classes desde os primórdios da civilização, sem poder resolvê-los nem
superá-los. Naturalmente
que
só me refiro aqui aos casos de monogamia em que a vida conjugal transcorre
conforme as prescrições do
caráter
original desta instituição, mas na qual a mulher se rebela contra o domínio do
homem. Que não é em
todos
os casamentos que assim ocorre, sabe-o melhor do que ninguém o filisteu alemão,
que não sabe mandar
nem
em sua casa nem no Estado, e cuja mulher veste com plenos direitos as calças de
que não é digno. Mas,
nem
por isso, deixa de acreditar-se muito superior ao seu companheiro de
infortúnios da França, a quem
sucedem
coisas bem mais desagradáveis, com maior freqüência do que a ele mesmo.
Por
certo, a família monogâmica não se revestiu, em todos os lugares e épocas, da
forma clássica e
rígida
que teve entre os gregos. A mulher era mais livre e mais considerada entre os
romanos, os quais, na
qualidade
de futuros conquistadores do mundo, tinham das coisas um conceito mais amplo,
apesar de menos
refinado
que o dos gregos. O romano acreditava suficientemente garantida a fidelidade da
sua mulher pelo
direito
de vida e morte que tinha sobre ela. Além disso, a mulher, lá, podia romper o
vínculo matrimonial à
sua
vontade, tal como o homem. Mas o maior progresso no desenvolvimento da
monogamia realizou-se,
indubitavelmente,
com a entrada dos germanos na história; e assim foi porque, dada a sua pobreza,
parece
que,
naquele tempo, a monogamia ainda não se tinha desenvolvido plenamente entre
eles, desprendendo-se
do
casamento sindiásmico. Tiramos esta conclusão à base de três circunstâncias
mencionadas por Tácito: em
primeiro
lugar, juntamente com a santidade do matrimônio ("contentam-se com uma só
mulher, e as
mulheres
vivem cercadas por seu pudor"), a poligamia existia para os grandes e os
chefes de tribo - situação
análoga
à dos americanos, entre os quais existia o matrimônio sindiásmico. Em segundo
lugar, a passagem do
direito
materno ao direito paterno devia ter-se realizado recentemente, pois o irmão da
mãe (o parente
gentílico
mais próximo, segundo o matriarcado) quase era tido como um parente mais
próximo do que o
próprio
pai - o que também corresponde ao ponto de vista dos índios americanos, entre
os quais tinha Marx
encontrado,
como costumava dizer, a chave para compreender os nossos tempos primitivos. E,
em terceiro
lugar,
as mulheres, entre os germanos, gozavam da mais elevada consideração e exerciam
grande influência,
até
nos assuntos públicos - o que é diametralmente oposto à supremacia masculina da
monogamia. Todos
estes
são pontos nos quais os germanos estão quase inteiramente de acordo com os
espartanos, entre os quais,
conforme
vimos, também não tinha desaparecido de todo o matrimônio sindiásmico. Assim,
desse ponto de
vista,
igualmente, aparecia com os germanos um elemento inteiramente novo, que se
impôs em âmbito
mundial.
A nova monogamia que resultou da mistura dos povos, entre as ruínas do mundo
romano, revestiu a
supremacia
masculina de formas mais suaves e deu às mulheres uma posição muito mais
considerada e livre,
pelo
menos aparentemente, do que as que ela já tivera - na idade clássica. (raças a
isso foi possível, a partir da
monogamia
- em seu seio, a seu lado, ou contra ela, segundo as circunstâncias - , o maior
progresso moral
que
lhe devemos: o amor sexual individual moderno, anteriormente desconhecido no
mundo.
Mas,
devia-se este progresso, seguramente, à circunstância de viverem os germanos
ainda sob o
regime
da família sindiásmica, e de terem levado à monogamia, da forma que puderam, a
situação da mulher
correspondente
à da família sindiásmica; não se devia, de modo algum, à legendária e
maravilhosa pureza de
costumes
ingênita nos germanos, a qual se reduzia ao fato de que, na prática, o
matrimônio sindiásmico não
revela
as mesmas agudas contradições morais da monogamia. Pelo contrário, em suas
migrações,
particularmente
ao sudeste, em direção às estepes do Mar Negro, povoadas por nômades, os
germanos
sofreram
sensível decadência do ponto de vista moral, adquirindo desses nômades, além da
arte da equitação,
feios
vícios antinaturais, sobre os quais temos os testemunhos expressos de Amiano,
quanto aos taifalienses,
e
de Procópio, quanto aos hérulos.
Mas
se a monogamia foi, de todas as formas de família conhecidas, a única em que se
pôde
desenvolver
o amor sexual moderno, isso não quer dizer, de modo algum, que ele se tenha
desenvolvido de
maneira
exclusiva, ou ainda preponderante, sob forma de amor mútuo dos cônjuges. A
própria natureza da
monogamia,
solidamente baseada na supremacia do homem, exclui tal possibilidade. Em todas
as classes
históricas
ativas, isto é, em todas as classes dominantes, o matrimônio continuou sendo o
que tinha sido
desde
o matrimônio sindiásmico, coisa de conveniência, arranjada pelos pais. A
primeira forma do amor
sexual
aparecida na história, o amor sexual como paixão, e por certo como paixão
possível para qualquer
homem
(pelo menos das classes dominantes), como paixão que é a forma superior da
atração sexual (o que
constitui
precisamente seu caráter específico), essa primeira forma, o amor cavalheiresco
da Idade Média,
não
foi, de modo algum, amor conjugal. Longe disso, na sua forma clássica, entre os
provençais, voga a todo
pano
para o adultério, que é cantado por seus poetas. A flor da poesia amorosa
provençal são as albas ( em
alemão
Tagelieder - cantos do alvorecer). Pintam, com vivas cores, como o cavaleiro
deita com sua amada,
mulher
de outro, enquanto na rua permanece um vigia, que o chama quando começa a
clarear a madrugada
(alba),
para que possa escapar sem ser visto. A cena da separação é geralmente o ponto
culminante do poema.
Os
franceses do norte e os nossos valentes alemães adotaram este gênero de poesia
e, ao mesmo tempo, o
amor
cavalheiresco que lhe corresponde; o nosso antigo Wolfram von Eschenbach deixou
sobre este
sugestivo
tema três encantadores Tagelieder, que prefiro aos seus três longos poemas
épicos.
O
casamento burguês assume duas feições, em nossos dias. Nos países católicos,
agora, como antes,
os
pais são os que proporcionam ao jovem burguês a mulher que lhe convém, do que
resulta naturalmente o
mais
amplo desenvolvimento da contradição que a monogamia encerra: heterismo
exuberante por parte do
homem
e adultério exuberante por parte da mulher. E se a Igreja Católica aboliu o
divórcio, é provável que
seja
porque terá reconhecido que contra o adultério, como contra a morte, não há
remédio que valha. Nos
países
protestantes, ao contrário, a regra geral é conceder ao filho do burguês mais
ou menos liberdade para
procurar
mulher dentro da sua classe; por isso, o amor pode ser até certo ponto a base
do matrimônio, e assim
se
supõe sempre que seja, para guardar as aparências, o que está muito de acordo
com a hipocrisia
protestante.
O marido já não pratica o heterismo tão freqüentemente e a infidelidade da
mulher é mais rara,
mas,
como em todas as classes de matrimônio, os seres humanos continuam sendo o que
eram antes, e como
os
burgueses dos países protestantes são, em sua maioria, filisteus, essa
monogamia protestante vem a dar,
mesmo
tomando 0 termo médio dos melhores casos, em um aborrecimento mortal, sofrido
em comum, e que
se
chama felicidade doméstica. O melhor espelho destes dois tipos de matrimônio é
a novela: a novela
francesa,
para a maneira católica; a novela alemã, para a protestante. Em ambos os casos,
o homem
"consegue
o seu"; na novela alemã, o jovem consegue a moça; na novela francesa, o
marido ganha um par de
cornos.
Qual dos dois sai pior recompensado ? Nem sempre é possível dizê-lo. Por isso,
o clima de
aborrecimento
da novela alemã inspira aos leitores da burguesia francesa o mesmo horror que a
"imoralidade"
da novela francesa inspira ao filisteu alemão, embora nesses últimos tempos,
desde que
"Berlim
está se tornando uma grande capital", a novela alemã começou a tratar um
pouco menos timidamente
o
heterismo e o adultério, bem conhecidos ali há já bastante tempo.
Mas,
em ambos os casos, o matrimônio baseia-se na posição social dos contraentes e,
portanto, é
sempre
um matrimônio de conveniência. Também nos dois casos, esse matrimônio de
conveniência se
converte,
com freqüência, na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os
cônjuges, porém,
muito
mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã
habitual pelo fato de que não
aluga
o seu corpo por hora, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para
sempre, como uma
escrava.
E a todos os matrimônios de conveniência cai como uma luva a frase de Fourier:
"Assim como em
gramática
duas negações equivalem a uma afirmação, de igual maneira na moral conjugal
duas prostituições
equivalem
a uma virtude." Nas relações com a mulher, o amor sexual só pode ser, de
fato, uma regra entre as
classes
oprimidas, quer dizer, em nossos dias, o proletariado, estejam ou' não estejam
autorizadas
oficialmente
essas relações. Mas, desaparecem também, nesses casos, todos os fundamentos da
monogamia
clássica.
Faltam aqui, por completo, os gens de fortuna, para cuja conservação e
transmissão por herança
foram
instituídos, precisamente, a monogamia e o domínio do homem; e, por isso, aqui
também falta todo o
motivo
para estabelecer a supremacia masculina. Mais ainda, faltam até os meios de
consegui-lo: o direito
burguês,
que protege essa supremacia, só existe para as classes possuidoras e para
regular as relações destas
classes
com os proletários. Isso custa dinheiro e, por força da pobreza do operário,
não desempenha papel
algum
na atitude deste para com sua mulher. Neste caso, o papel decisivo cabe a
outras relações pessoais e
sociais.
Além disso, sobretudo desde que a grande indústria arrancou a mulher ao lar
para atirá-la ao mercado
de
trabalho e à fábrica, convertendo-a, freqüentemente, em sustentáculo da casa,
ficaram desprovidos de
qualquer
base os restos da supremacia do homem no lar proletário, excetuando-se, talvez,
certa brutalidade
no
trato com as mulheres, muito arraigada desde o estabelecimento da monogamia.
Assim, pois, a família do
proletário
já não é monogâmica no sentido estrito da palavra, nem mesmo com o amor mais
apaixonado e a
fidelidade
mais absoluta dos cônjuges, e apesar de todas as bênçãos espirituais e
temporais possíveis. Por
isso,
o heterismo e o adultério, eternos companheiros da monogamia, desempenham aqui
um papel quase
nulo;
a mulher reconquistou, na prática, o direito de divórcio e os esposos preferem
se separar quando já não
se
podem entender um com o outro. Resumindo: o matrimônio proletário é monogâmico
no sentido
etimológico
da palavra, mas de modo algum em seu sentido histórico.
Certamente
os nossos jurisconsultos acham que o progresso da legislação vai tirando cada
vez mais às
mulheres
qualquer razão de queixa. Os sistemas legislativos dos países civilizados
modernos vão
reconhecendo,
progressivamente, que, em primeiro lugar, o matrimônio, para ser válido, deve
ser i contrato
livremente
firmado por ambas as partes, e, em ;segundo lugar, que durante a sua vigência
as partes devem ter
mesmos
direitos e deveres. Se estas duas condições fossem umente postas em prática, as
mulheres teriam
tudo
aquilo e podem desejar.
Essa
argumentação - tipicamente jurídica - é exatamente mesma de que se valem os
republicanos
radicais
burgueses .rã dissipar os receios dos proletários. Supõe-se que o contrato de
trabalho seja livremente
firmado
por ambas as partes. Mas considera-se livremente firmado desde o momento em que
a lei estabelece
no
papel a igualdade de ambas as partes. A força que a diferença de situação de
classe dá a uma das partes, a
pressão
que esta força exerce sobre a outra, a situação econômica real de ambas; tudo
isso não interessa à lei.
Enquanto
dura o contrato de trabalho, continua a suposição de que as duas partes
desfrutam de direitos
iguais,
desde que uma ou outra não renuncie expressamente a eles. E, se a situação
econômica concreta do
operário
o obriga a renunciar até à última aparência de igualdade de direitos, a lei -
novamente - nada tem a
ver
com isso.
Quanto
ao matrimônio, mesmo a legislação mais progressista dá-se por inteiramente
satisfeita desde o
instante
em que os interessados fizeram inscrever formalmente em ata o seu livre
consentimento. O que se
passa
fora dos bastidores do tribunal, na vida real, e como se expressa este
consentimento, não são questões
que
cheguem a inquietar a lei ou o legislador. Entretanto, a mais simples
comparação entre as legislações de
países
diversos pode demonstrar ao jurista o que representa esse livre consentimento.
Nos países onde a lei
assegura
aos filhos uma parte da herança da fortuna paterna, e onde, por conseguinte,
eles não podem ser
deserdados
- na Alemanha, nos países que seguem o direito francês, etc. - os filhos
necessitam do
consentimento
dos pais para contrair matrimônio. Nos países onde se pratica o direito inglês,
de acordo com
o
qual o consentimento paterno não é uma condição legal para o casamento, os pais
gozam de absoluta
liberdade
de testar, e podem, caso queiram, deserdar os filhos. Está claro que, apesar
disso, e talvez por isso
mesmo,
a liberdade para contrair matrimônio, entre as classes que têm algo a herdar,
não é, de fato, nem um
pouquinho
maior na Inglaterra e na América do que na França e na Alemanha.
Não
é melhor o estado de coisas quanto à igualdade jurídica do homem e da mulher no
casamento. A
desigualdade
legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito
da opressão
econômica
da mulher. No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com seus
filhos, a direção
do
lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto
a busca de víveres, de que
ficavam
encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda
mais, com a família
individual
monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada
mais tinha a ver
com
ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se
em primeira criada, sem
mais
tomar parte na produção social. Só a grande indústria de nossos dias lhe abriu
de novo - embora apenas
para
a proletária - o caminho da produção social. Mas isso se fez de maneira tal
que, se a mulher cumpre os
seus
deveres no serviço privado da família, fica excluída do trabalho social e nada
pode ganhar; e, se quer
tomar
parte na indústria social e ganhar sua vida de maneira independente, lhe é
impossível cumprir com as
obrigações
domésticas. Da mesma forma que na fábrica, é isso que acontece à mulher em
todos os setores
profissionais,
inclusive na medicina e na advocacia. A família individual moderna baseia-se na
escravidão
doméstica,
franca ou dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas
moléculas são as
famílias
individuais.
Hoje,
na maioria dos casos, é o homem que tem que ganhar os meios de vida, alimentar
a família, pelo
menos
nas classes possuidoras; e isso lhe dá uma posição dominadora, que não exige
privilégios legais
especiais.
Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. No mundo
industrial,
entretanto,
o caráter específico da opressão econômica que pesa sobre o proletariado não se
manifesta em
todo
o seu rigor senão quando suprimidos todos os privilégios legais da classe dos
capitalistas e
juridicamente
estabelecida a plena igualdade das duas classes. A república democrática não
suprime o
antagonismo
entre as duas classes; pelo contrário, ela não faz senão proporcionar o terreno
no qual o combate
vai
ser decidido. De igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem
sobre a mulher na família
moderna,
assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva
entre ambos, não
se
manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem, por lei,
direitos absolutamente
iguais.
Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira
condição, a reincorporação
de
todo o sexo feminino á indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão
da família individual
enquanto
unidade econômica da sociedade.
Como
vimos, há três formas principais de matrimônio, que correspondem
aproximadamente aos três
estágios
fundamentais da evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio
por grupos, à
barbárie,
o matrimônio sindiásmico, e à civilização corresponde a monogamia com seus
complementos: o
adultério
e a prostituição. Entre o matrimônio sindiásmico e a monogamia, intercalam-se,
na fase superior da
barbárie,
a sujeição aos homens das mulheres escravas e a poligamia.
Segundo
ficou demonstrado por tudo que foi exposto, a peculiaridade do progresso
manifestado nessa
sucessão
de formas de matrimônio consiste em que se foi tirando cada vez mais às
mulheres ( mas não aos
homens)
a liberdade sexual do matrimônio por grupos. Com efeito, o matrimônio por
grupos continua
existindo,
ainda hoje, para os homens. Aquilo que para a mulher é um crime de graves
conseqüências legais e
sociais,
para o homem é algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha
moral 'que se carrega
com
satisfação. Quanto mais o heterismo antigo se modifica, porém, em nossa época,
pela produção
capitalista
de mercadorias á qual se adapta - mais se transforma em franca prostituição e
mais
desmoralizadora
se torna a sua influência. E, para dizer a verdade, desmoraliza muito mais aos
homens que
às
mulheres. A prostituição, entre as mulheres, degrada apenas as infelizes que
caem em suas garras, e
mesmo
a .estas num grau menor do que se costuma julgar. Em compensação, envilece o
caráter do sexo
masculino
inteiro.
Nessas
circunstâncias, é de se advertir que, em noventa por cento dos casos, o noivado
prolongado é
uma
verdadeira escola preparatória para a infidelidade conjugal.
Estamos
caminhando presentemente para uma revolução social, em que as atuais bases
econômicas da
monogamia
vão desaparecer, tão seguramente como vão desaparecer as da prostituição,
complemento
daquela.
A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos - as de
um homem - e
do
desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem,
excluídos os filhos de qualquer
outro.
Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim
que a monogamia
daquela
não constituiu o menor empecilho á poligamia, oculta ou descarada, deste. Mas a
revolução social
iminente,
transformando pelo menos a imensa maioria das riquezas duradouras hereditárias
- os meios de
produção
- em propriedade social, reduzirá ao mínimo todas essas preocupações de
transmissão por herança.
E
agora cabe a pergunta: tendo surgido de causas econômicas, a monogamia
desaparecerá quando
desaparecerem
essas causas ?
Poder-se-ia
responder, e não sem fundamento: longe de desaparecer, antes há de se realizar
plenamente
a partir desse momento. Porque com a transformação dos meios de produção em
propriedade
social
desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado, e, consequentemente, a
necessidade de se
prostituírem
algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a
prostituição e, em lugar
de
decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade - também para os homens.
Em
todo caso, modificar-se-á muito a posição dos homens. Mas, também, há de sofrer
profundas
transformações
a das mulheres, a de todas elas. Quando os meios de produção passarem a ser
propriedade
comum,
a família individual deixará de ser a unidade econômica da sociedade. A
economia doméstica
converter-se-á
em indústria social. O trato e a educação das crianças tornar-se-ão público; a
sociedade
cuidará,
com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais.
Desaparecerá, assim, o
temor
das "conseqüências", que é hoje o mais importante motivo social tanto
do ponto de vista moral como
do
ponto de vista econômico - que impede uma jovem solteira de se entregar
livremente ao homem que ama.
Não
bastará isso para que se desenvolvam, progressivamente, relações sexuais mais
livres, e também para
que
a opinião pública se torne menos rigorosa quanto à honra das virgens e à
desonra das mulheres ? E por
último:
não vimos que, no mundo moderno, a prostituição e a monogamia, ainda que
antagônicas, são
inseparáveis,
como pólos de uma mesma ordem social? Pode a prostituição desaparecer sem levar
consigo,
na
queda, a monogamia ?
É
agora que intervém um elemento novo, um elemento que existia no máximo em embrião,
quando
nasceu
a monogamia: o amor sexual individual.
Antes
da Idade Média, não se pode dizer que existisse amor sexual individual. É óbvio
que a beleza
pessoal,
a intimidade, as afinidades, etc. deviam despertar nos indivíduos de sexos
diferentes o desejo de
relações
sexuais; que, tanto para os homens como para as mulheres, não era de todo
indiferente com quem ter
as
relações mais íntimas. Mas daí ao amor sexual moderno ainda vai uma grande
distância. Em toda a
antigüidade,
são os pais que combinam os casamentos, em vez dos interessados; e estes
conformam-se,
tranqüilamente.
O pouco amor conjugal que a antigüidade conhece não é uma inclinação subjetiva,
e sim,
mais
concretamente, um dever objetivo; não é a base, e sim o complemento do
matrimônio. O amor, no
sentido
moderno da palavra, somente se apresenta na antigüidade fora da sociedade
oficial. Os pastores, cujas
alegrias
e penas de amor nos são cantadas por Teócrito ou Moscos, e por Longo no seu
Dafne e Cloé, não
passam
de simples escravos que não têm participação no Estado, esfera em que se move o
cidadão livre. Mas,
excluídos
os escravos, não encontramos relações amorosas senão como um produto da
decomposição do
mundo
antigo, quando este já está em pleno declínio; e são relações mantidas com
mulheres que também
vivem
fora da sociedade oficial, hetairas, isto é, estrangeiras ou libertas: em
Atenas, às vésperas de sua
queda,
e em Roma, sob os imperadores. Se havia ali relações amorosas entre cidadãos e
cidadãs livres, todas
eram
mero adultério. E o amor sexual, tal como nós o entendemos, era algo tão pouco
importante para o
velho
Anacreonte - o cantor clássico do amor na antigüidade -, que mesmo o sexo da
pessoa amada lhe era
completamente
indiferente.
Nosso
amor sexual difere essencialmente do simples desejo sexual, do ecos dos
antigos. Em primeiro
lugar,
porque supõe reciprocidade no ser amado, igualando, nesse particular, a mulher
e o homem, ao passo
que
no ecos antigo se fica longe de consultá-la sempre. Em segundo lugar, o amor
sexual atinge um grau de
intensidade
e de duração que transforma em grande desventura, talvez a maior de todas, para
os amantes, a
falta
de relações íntimas ou a separação; para que se possuam não recuam diante de
coisa alguma e arriscam
mesmo
suas vidas, o que não acontecia na antigüidade, senão em caso de adultério. E,
por fim, surge um
novo
critério moral para jurar as relações sexuais. Já não se pergunta apenas -
"São legítimas ou ilegítimas ?"
-
pergunta-se também: "São filhas do amor e de um afeto recíproco ?" É
evidente que, na prática feudal ou
burguesa,
esse critério não é mais respeitado do que qualquer outro critério moral; passa
por cima dele;
equivalente
aos demais, é reconhecido em teoria, no papel. E, por ora, não se pode pedir
mais.
A
Idade Média parte do ponto em que se deteve a Antigüidade, com seu amor sexual
em embrião, isto
é,
parte do adultério. Já descrevemos o amor cavalheiresco, que inspirou
Tagelieder. Deste amor, que tende a
destruir
o matrimônio, ao amor que lhe há de servir de base, há um longo caminho que a
cavalaria jamais
percorreu
até o fim. Mesmo quando passamos dos frívolos povos latinos aos virtuosos
alemães, vemos, no
poema
dos Nibelungos que Krimhilda, embora esteja secretamente apaixonada por
Siegfricd e este por ela,
quando
Gunther lhe anuncia que a prometeu a um cavaleiro cujo nome não diz, responde
apenas: "Não me
precisais
suplicar, farei aquilo que me ordenais; estou disposta, senhor, de boa-vontade,
a unir-me àquele que
me
dais por marido. Não ocorre, de modo algum, a Krimhilda a idéia de que seu amor
possa ser levado em
conta
naquele assunto. Gunther pede a mão de Brunilda e Etzel a de Krimhilda, sem
jamais as terem visto.
Do
mesmo modo, em Gutrun, Sigebant da Irlanda intenta casar-se com a norueguesa
Ute, Hetel de
Hegelingen
com Hilda da Irlanda e, finalmente, Siegfried de Morlândia, Hartmut da Ormânia
e Herwig da
Seelândia,
pedem, os três, a mão de Gutrun; e só aqui acontece que esta se pronuncia
livremente pelo último.
Normalmente,
a noiva do jovem príncipe é escolhida pelos pais dele, se ainda vivem, ou se
não pelo próprio
príncipe,
aconselhado pelos grandes senhores feudais cuja opinião tem muito peso nesses
casos. E certamente
não
pode ser de outro modo. Para o cavaleiro ou barão, como também para o príncipe,
o matrimônio é um ato
político,
uma questão de aumento do poder mediante novas alianças; o interesse da Casa é
que decide, não as
inclinações
do indivíduo. Como poderia, assim, caber ao amor a última palavra na
determinação dos
casamentos
?
O
mesmo acontece com os burgueses das corporações, nas cidades da Idade Média. Os
próprios
privilégios
que os protegem, as cláusulas dos regulamentos gremiais, as complicadas
fronteiras que os
separam
legalmente, ora de outras corporações, ora de seus companheiros da mesma
corporação, ou dos seus
oficiais
e aprendizes, tornavam bastante estreito o círculo em que podiam buscar esposas
adequadas. Nesse
complexo
sistema, evidentemente, não era o gosto pessoal e sim a conveniência de família
que determinava
qual
a mulher que mais convinha.
Na
maioria dos casos, portanto, e até o final da Idade Média, o matrimônio
continuou sendo o que
tinha
sido desde sua origem: um contrato não firmado pelas partes interessadas. A
princípio, vinha-se ao
mundo
já casado com todo um grupo de seres do outro sexo. Depois, na forma posterior
de matrimônio por
grupos,
é de se crer que as condições fossem análogas, mas com estreitamento
progressivo do círculo. No
matrimônio
sindiásmico, é regra que as mães combinem entre sio casamento de seus filhos;
também aqui, o
fator
decisivo é o desejo de que os novos laços de parentesco robusteçam a posição do
jovem par nas gens e
na
tribo. E., quando a propriedade privada se sobrepôs à propriedade coletiva,
quando os interesses da
transmissão
por herança fizeram nascer a preponderância do direito paterno e da monogamia,
o matrimônio
começou
a depender inteiramente de considerações econômicas. Desaparece a forma de
matrimônio por
compra,
mas, em essência, continua sendo praticado cada vez mais, e de modo que não só
a mulher tem seu
preço,
como também o homem, embora não segundo suas qualidades pessoais e sim conforme
a importância
de
seus gens. Na prática, e desde o princípio, se havia alguma coisa inconcebível
para as classes dominantes
era
que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do
matrimônio. Isto só se
passava
nos romances ou entre as classes oprimidas - que não se contavam para nada.
Tal
era a situação com que se encontrou a produção capitalista quando, a partir da
era dos
descobrimentos
geográficos, se pôs a conquistar o domínio do mundo através do comércio
universal e da
indústria
manufatureira. É de se supor que este modo de matrimônio lhe conviesse
excepcionalmente, e isso
era
realmente verdade. E, entretanto - a ironia da história do mundo é insondável -
seria precisamente o
capitalismo
que abriria nesse modo de matrimônio a brecha decisiva. Ao transformar todas as
coisas em
mercadorias,
a produção capitalista destruiu todas as antigas relações tradicionais e
substituiu os costumes
herdados
e os direitos históricos pela compra e venda, pelo "livre" contrato.
O jurisconsulto inglês H. S.
Maine
acreditou ter feito um descobrimento extraordinário ao dizer que nosso
progresso em relação às
épocas
anteriores consiste em que passamos from status to contract, isto é, de uma
ordem de coisas herdada
para
outra livremente consentida uma afirmação que, na medida em que é correta, já
se encontrava de há
muito
no Manifesto Comunista.
Mas,
para firmar contratos, é necessário que haja pessoas que possam dispor
livremente de si mesmas,
de
suas ações e de seus gens, e que se defrontem em igualdade de condições. Criar
essas pessoas "livres" e
"iguais"
foi exatamente uma das principais tarefas da produção capitalista. Apesar de
que, no começo, isto
não
se fez senão de uma maneira meio inconsciente e, além do mais, sob o disfarce
da religião, a partir da
Reforma
luterana e calvinista, ficou firmemente assentado o principio de que o homem
não é completamente
responsável
por suas ações senão quando as pratica com pleno livre arbítrio, e que é um
dever ético a
oposição
a tudo que o constrange prática de um ato imoral. Mas como pôr de acordo esse
princípio com as
práticas,
usuais até então, para contratar o casamento ?, uma questão de Direito, e
certamente a mais
importante
de todas, pois dispunha do corpo e da alma de dois seres humanos para toda a
vida. É verdade
que,
naquela época, o matrimônio era o acordo formal de duas vontades; sem o
"sim" dos interessados, nada
se
fazia. Sabia-se, contudo, muito bem, como se obtinha o "sim" e quais
eram os verdadeiros autores do
matrimônio.
Mas, uma vez que para todos os demais contratos se exigia a liberdade real para
decidir, por que
não
era exibida a liberdade neste contrato ? Os jovens que deviam ser unidos não
tinham também o direito de
dispor
livremente deles mesmos, de seu corpo e de seus órgãos ? Não se havia posto em
moda, graças á
cavalaria,
o amor sexual ?Contra o amor adúltero da cavalaria, não seria o amor conjugal a
verdadeira forma
burguesa
do amor? Mas, se o dever dos esposos era o amor recíproco, não seria dever dos
que se amavam o
de
não casarem senão um com o outro, e não com alguma outra pessoa qualquer? E
este direito dos que se
amavam
não seria superior ao direito do pai e da mãe, dos parentes e demais
"casamenteiros" tradicionais ?
Desde
o momento em que o direito á livre investigação pessoal penetrava na Igreja e
na religião, poderia
acaso
deter-se ante a intolerável pretensão da velha geração de dispor do corpo, da
alma, dos gens de fortuna,
da
ventura e da desventura da geração mais jovem ?
Forçosamente
essas questões deveriam surgir numa época em que se afrouxavam todos os antigos
vínculos
sociais e em que eram sacudidos os fundamentos de todas as concepções
tradicionais. A Terra havia
se
tornado rapidamente dez vezes maior; em lugar de apenas um quadrante do
hemisfério, o globo inteiro se
estendia
agora ante os olhos dos europeus ocidentais, que se apressaram a tomar posse
dos outros sete
quadrantes.
E, ao mesmo tempo que as antigas e estreitas fronteiras do país natal, caíam as
milenárias
barreiras
impostas ao pensamento da Idade Média. Um horizonte infinitamente mais extenso
se abria ante os
olhos
e o espírito do homem. Que importância podiam ter a reputação de honorabilidade
e os respeitáveis
privilégios
corporativos, transmitidos de geração em geração, para o jovem que era atraído
pelas riquezas das
Índias,
pelas minas de ouro e prata do México e do Potosi ? Aquela foi a época da
cavalaria andante da
burguesia;
porque também esta teve o seu romantismo e o seu delírio amoroso, mas numa base
burguesa e,
em
última análise, com objetivos burgueses.
Assim,
sucedeu que a burguesia nascente, sobretudo a dos países protestantes, onde se
sacudiu de uma
maneira
mais profunda a ordem de coisas existente, foi reconhecendo cada vez mais a
liberdade de contrato
para
o matrimônio e pôs em prática a sua teoria, da maneira que descrevemos. O
matrimônio continuou
sendo
um matrimônio de classe, mas no seio da classe concedeu-se aos interessados
certa liberdade de
escolha.
E, no papel, tanto na teoria moral como nas narrações poéticas, nada ficou tão
inquebrantavelmente
assentado
como a imoralidade de todo casamento não baseado num amor sexual recíproco e
num contrato de
cônjuges
efetivamente livres. Em resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o
matrimônio por
amor,
e não só como droit de I’homme, mas também, e por exceção, como um droit de la
femme.
Mas
este direito humano diferia em um ponto de todos os demais chamados direitos
humanos. Ao
passo
que estes, na prática, estavam reservados para a classe dominante - a burguesia
- e reduziam-se direta
ou
indiretamente a letra morta para a classe oprimida - o proletariado - , aqui se
confirma ainda uma vez a
ironia
da história. A classe dominante continuou submetida às influências econômicas
conhecidas e, somente
por
exceção, apresenta casos de casamento realizados verdadeiramente com toda a
liberdade; enquanto que
esses
Casamentos, como já vimos, constituem a regra nas classes oprimidas.
O
matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade quando, suprimidas a
produção capitalista e
as
condições, de propriedade criadas por ela, forem removidas todas as
considerações econômicas acessórias
que
ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o
matrimônio já não terá
outra
causa determinante que não a inclinação recíproca.
E,
desde que o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista - embora em
nossos dias esse
exclusivismo
só se realize plenamente sobre a mulher - o matrimônio baseado no amor sexual
será, por sua
própria
natureza, monogâmico. Vimos quanta razão tinha Bachofen em considerar o
progresso do
matrimônio
por grupos ao matrimônio por pares como obra devida sobretudo à mulher; apenas
a passagem
do
casamento sindiásmico à monogamia pode ser atribuída ao homem, e historicamente
consistiu, na
essência,
num rebaixamento da posição das mulheres e numa facilitação da infidelidade dos
homens. Por
isso,
quando chegarem a desaparecer as considerações econômicas em virtude das quais
as mulheres foram
obrigadas
a aceitar essa infidelidade masculina habitual - a preocupação pela própria
subsistência e, ainda
mais,
pelo futuro dos filhos - a igualdade alcançada pela mulher, a julgar por toda a
nossa experiência
anterior,
influirá muito mais no sentido de tornar os homens monógamos do que no de
tornar as mulheres
poliandras.
Mas
o que, sem sombra de dúvida, vai desaparecer da monogamia é o conjunto dos
caracteres que lhe
foram
impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem. Esses caracteres
são, em primeiro
lugar,
a preponderância do homem e, depois, a indissolubilidade do matrimônio. A
preponderância do
homem
no matrimônio é conseqüência evidentemente de sua preponderância econômica e
desaparecerá por
si
mesma com esta última. A indissolubilidade do matrimônio é conseqüência, em
parte, das condições
econômicas
que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em que, mal
compreendida
ainda,
a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião.
Atualmente,
já
está fendida por mil lados. Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só
pode ser moral o
matrimônio
onde o amor persiste. Mas a duração do acesso de amor sexual é muito variável,
segundo os
indivíduos,
particularmente entre os homens; em virtude disso, quando o afeto desaparece ou
é substituído
por
um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício, tanto para ambas as
partes como para a
sociedade.
Apenas deverá poupar-se ao casal o ter que passar pelo lodaçal inútil de um
processo de divórcio.
Assim,
pois, o que podemos conjecturar hoje acerca da regularização das relações
sexuais após a
iminente
supressão da produção capitalista é, no fundamental, de ordem negativa, e fica
limitado
principalmente
ao que deve desaparecer. Mas o que sobreviverá ? Isso se verá quando uma nova
geração
tenha
crescido: uma geração de homens que nunca se tenham encontrado em situação de
comprar, à custa de
dinheiro,
nem com a ajuda de qualquer outra força social, a conquista de uma mulher; e
uma geração de
mulheres
que nunca se tenham visto em situação de se entregar a um homem em virtude de
outras
considerações
que não as de um amor real, nem de se recusar a seus amados com receio das
conseqüências
econômicas
que isso lhes pudesse trazer. E, quando essas gerações aparecerem, não darão um
vintém por
tudo
que nós hoje pensamos que elas deveriam fazer. Estabelecerão suas próprias
normas de conduta e, em
consonância
com elas, criarão uma opinião pública para julgar a conduta de cada um. E ponto
final.
Voltemos,
todavia, a Morgan, de quem nos afastamos muito. O estudo histórico das
instituições
sociais
que se desenvolveram durante o período da civilização excede os limites de seu
livro. Por isso, ele se
ocupa
muito pouco dos destinos da monogamia durante este período. Também ele vê na
evolução da família
monogâmica
um progresso, uma aproximação da plena igualdade de direitos entre ambos os
sexos, sem
considerar,
entretanto, que esse objetivo tenha sido alcançado. Mas - diz - "se se
reconhece o fato de que a
família
tenha atravessado sucessivamente quatro formas e se encontra atualmente na
quinta forma, coloca-se
a
questão de saber se esta forma pode ser duradoura no futuro. A única coisa que
se pode responder é que a
família
deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na
medida em que a
sociedade
se modifique; como sucedeu até agora. A família é produto do sistema social e
refletirá o estado de
cultura
desse sistema. Tendo a família monogâmica melhorado a partir dos começos da
civilização e, de uma
maneira
muito notável, nos tempos modernos, é lícito pelo menos supor que seja capaz de
continuar seu
aperfeiçoamento
até que chegue à igualdade entre os dois sexos. Se, num futuro remoto, a
família
monogâmica
não mais atender às exigências sociais, é impossível predizer a natureza da
família que a
suceder".
Próximo capitulo: A gens Iroquesa
.
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