O
revolucionário salvadorenho Jorge Schafik Handal (1930-2006), entre
tantas contribuições teóricas deixou um texto que é uma verdadeira aula
para os que pensam a política como arte da transformação social. Ao
analisar um episódio ocorrido às vésperas do golpe militar de 1973, ele
mostra como as maiores forças de esquerda perderam uma oportunidade
histórica que poderia ter alterado o desfecho que já se anunciava.
Em
29 de junho de 1973, enquanto o Alto Comando das Forças Armadas
Chilenas já conspirava com a CIA a preparação do golpe militar, um
pequeno grupo de oficiais fascistas, “fora do controle”, se precipita e
lança uma sublevação antes da hora. Este episódio ganhou o nome de Tancazo, por
utilizarem tanques. Foram rapidamente derrotados pelas tropas leais
comandadas pelo General Prats e pela população, criando um clima de
autoestima popular que se converteu no auge da luta popular daquele
processo histórico.
Sufocada
aquela sublevação, o General Prats alerta para o verdadeiro golpe em
andamento e exige o afastamento do Alto Comando conspirador. O texto de
Schafik mostra como nenhuma das forças de esquerda conseguiu interpretar
a importância do episódio, embora as forças da reação tenham rápido
entendido com precisão aquele momento.
Ele explica:
“Como atuaram as forças revolucionárias frente a esse fenômeno? Ninguém definitivamente defendeu o Prats
e a parte do exército que ele encabeçava. Uns o sacrificaram em
interesse de manobras políticas acreditando honradamente que estas
trariam a saída da crise; e, os outros, consideraram que a presença de
Prats no governo era “a presença da burguesia”, que o pacto com Prats era “a traição à revolução” e decidiram constituir-se na “oposição operária camponesa”. Quando a corrente de Prats
era forte e predominante, quando derrotou o “Tancazo” (junho/1973), as
massas intuíram a importância daquele momento para resolver
revolucionariamente o problema do poder; se lançaram à rua, como todos
sabemos, exigindo golpear profundamente a reação, fechar o parlamento,
depurar o exército, mas a direção daquele processo não tomou
resolutamente em suas mãos estas bandeiras. Não estou defendendo a idéia
de que tudo se resolveria no Chile organizando a luta em torno de Prat;
creio sim, que o aparecimento da corrente encabeçada por ele e a onda
de massas que seguiu à sua vitória sobre Tancazo foi o
mais próximo que houve durante o governo da Unidade Popular para a
solução do problema do poder para a revolução. Essa possibilidade
apareceu objetivamente e se constituiu assim numa prova para medir a
clareza das forças revolucionárias para a tese do marxismo-leninismo de
que “o problema do poder é o problema fundamental de toda revolução”.
Guardadas
as imensas proporções, uma vez que não estamos vivenciando nenhum
processo de natureza revolucionária é inevitável recordar este texto
quando olhamos para os fatos que aceleradamente ocorrem nestes dias.
Qual é o principal desafio político para esquerda na tática da luta eleitoral atualmente?
As
conquistas eleitorais que asseguraram a vitória do PT nas eleições
presidenciais de 2002, 2006 e 2010 e possibilitaram a conquista de
governos estaduais, senadores, deputados e prefeituras também para o PC
do B, PSOL e setores de esquerda em outras agremiações, esbarram, para
além da correlação de forças em limites concretos do Estado brasileiro.
Os
três principais limites estruturais, que aparecem nas análises de
várias organizações de esquerda podem ser resumidos nos seguintes:
1) Um Sistema Político que favorece o poder econômico. Das
muitas leituras que podem ser feitas sobre o chamado “mensalão”, uma é
evidente. O tratamento escandalosamente diferenciado dado ao “mensalão
mineiro do PSDB” e ao caso do PT contém um recado claro, se a esquerda
utilizar o expediente do “caixa 2” será duramente
criminalizada. O Sistema Político favorece, mesmo nas legendas de
esquerda, aqueles que através de um comportamento dócil conseguem obter
os recursos financeiros para custear as campanhas cada vez mais
milionárias. Um processo que converte qualquer governo progressista no
refém de interesses fisiológicos que asseguram a governabilidade.
2) A Concentração dos Meios de Comunicação.
Generalizou-se a correta compreensão de que os grandes meios de
comunicação atuam como o “partido político” dos grupos dominantes.
3) O Poder Judiciário.
Completamente impermeável á participação popular, exercem a linha de
frente na contenção das lutas populares, criminalizando, construindo uma
jurisprudência restritiva ao direito de greve, contendo lutas e
conquistas populares.
Pois bem, quando as massas ganham ás ruas, num processo que foi deflagrado
a partir de uma bandeira clara, precisa e progressista – a redução das
tarifas de transporte – assistimos uma intensa disputa política e
ideológica, patrocinada pela grande mídia e todas as forças
conservadoras pelos rumos do movimento.
Neste
momento, tenso, com mobilizações crescentes, com a direita apostando
todas as suas fichas em desgastar o governo Federal, a resposta da
Presidente Dilma é extremamente audaciosa. Anuncia
um Plebiscito para tratar da Reforma Política e sinaliza a convocação
de uma Assembleia Constituinte Específica sobre o sistema político!
Para
além das análises diferenciadas que as forças de esquerda possam fazer
da natureza e papel deste governo é forçoso reconhecer a audácia desta
proposta.
Embora
os setores médios que estiveram massificando os protestos sejam
especialmente sujeitos á propaganda conservadora da grande mídia era
evidente seu rechaço ao atual sistema político. Qualquer observador
identifica que as
mobilizações expressaram um forte sentimento de rejeição ao atual
sistema político. Generaliza-se a percepção de que há uma "blindagem" da
política aos verdadeiros interesses do povo brasileiro. Os partidos
políticos e os próprios políticos são vistos como parte de uma mesma
engrenagem subordinada aos interesses das elitese
a democracia representativa se apresenta aos olhos da juventude, como
um mecanismo que impede a democracia efetiva. Mesmo as bandeiras de
partidos de esquerda passam a ser vistos como símbolos da burocracia,
independentemente de seu histórico de lutas, elemento que possibilitou a
pequenos grupos de extrema direita ataca-las com a complacência da
maioria dos manifestantes.
É
neste contexto, neste estado de ânimo popular, que a Presidenta,
audaciosamente lança uma proposta política a um movimento de
reivindicações econômicas!
A direita não vacilou um só segundo. Imediatamente compreendeu o que estava em jogo e abriu todas as suas baterias.
O furibundo Ministro Gilmar Mendes deu a linha. “O
Brasil dormiu como se fosse Alemanha, Itália, Espanha, Portugal em
termos de estabilidade institucional e amanheceu parecido com a Bolívia
ou a Venezuela”, proclamou rapidamente.
Imediatamente
os articulistas da Rede Globo, Revista Veja etc, proclamaram: “Isso é Chavismo”. O Vice Presidente imediatamente reuniu-se com Dilma para
sinalizar os riscos de romper a aliança com o PMDB. Toda a oposição de
direita passou o dia esbravejando no Congresso. Inúmeros juristas
Constitucionalistas, tal qual múmias levantando das tumbas foram
imediatamente entrevistados para mostrar a “impossibilidade técnica”
desta proposta.
Dois
ministros petistas, cujo partido havia aprovado essa proposta meses
antes em seu Diretório Nacional saíram operando o recuo da Presidenta. O
conservadorismo não titubeou. Compreendeu os riscos, entendeu o que
está em jogo.
E as forças de Esquerda?
Atônitas
ainda com o impacto e expressão das manifestações, a letargia parece
ser a marca predominante na maioria das forças de esquerda.
Uma parte parece contentar-se com o “fato consumado”. Não dá mesmo, a própria Presidenta já recuou...
Outros, preocupados com a governabilidade, defendem o recuo e já aceitam até mesmo a trocar o Plebiscito por um mero referendo.
Já
os setores que se autoproclamam “oposição de esquerda”, enxergam no
episódio uma manobra governista para esvaziar as mobilizações pela pauta
econômica. É significativo o posicionamento do PSTU:
“A
Reforma Política que o governo Dilma propõe é uma tentativa clara de
desviar as verdadeiras reivindicações colocada pelas mobilizações que
sacodem o país. Nas ruas, a pauta é contra as injustiças sociais, por
menos dinheiro para Copa e mais para saúde, educação e transporte,
investimento público no serviço público, contra as privatizações e
combate à corrupção. Essa tentativa de reforma é uma resposta
conservadora que pode tornar a política brasileira ainda mais
antidemocrática, como o voto distrital e a cláusula de barreira que
afeta diretamente os partidos ideológicos, preservando as grandes
legendas de aluguel, como o PMDB de Sarney e Renan Calheiros. O
Plebiscito é uma cortina de fumaça. A verdadeira mudança será nas ruas.”
Evidente
que “a verdadeira mudança será nas ruas”. Mas, o que proporemos aos que
lutam nas ruas? Ficaremos apenas nas lutas econômicas, que são
legitimas e devem ser assumidas, quando uma proposta de luta política se
coloca?
Este é o debate que está em curso.
Vamos ignorar a possibilidade histórica de abrir uma possibilidade de luta contra o atual sistema político?
Deixaremos
que as forças de direita ganhem esse embate e determinem o recuo do
governo, enquanto seguiremos apenas nas lutas econômicas?
Não há como não se lembrar do texto de Schafik Handal....
Ainda estamos em tempo. O Cavalo selado ainda está passando. Ainda é possível interferir nesta luta!
A
bandeira de uma Constituinte Exclusiva do Sistema Político, a ser
submetida a um Plebiscito Nacional foi lançada. Podemos ignorá-la,
rejeitá-la, ou assumi-la. O reascenso da luta de massas apenas está
começando, muita água ainda vai rolar, mas a luta política tem ritmos e
momentos de alta velocidade. Saber agir neste momento é essencial.
Não nos esqueçamos, um só instante, que a questão central em toda a transformação é a questão do poder.
Ricardo Gebrim.
Sugerido por Miguel Gonçalves Trujillo Filho
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