David Oliveira de Souza
Bem-vindos, médicos
cubanos. Vocês serão muito importantes para o Brasil. A falta de médicos
em áreas remotas e periféricas tem deixado nossa população em situação
difícil. Não se preocupem com a hostilidade de parte de nossos colegas.
Ela será amplamente compensada pela acolhida calorosa nas comunidades
das quais vocês vieram cuidar.
A sua chegada responde a
um imperativo humanitário que não pode esperar. Em Sergipe, por
exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar da capital para o
interior. Ainda assim, há centenas de postos de trabalho ociosos, mesmo
em unidades de saúde equipadas e em boas condições.
Caros colegas de Cuba, é
correto que nós médicos brasileiros lutemos por carreira de Estado,
melhor estrutura de trabalho e mais financiamento para a saúde. É
compreensível que muitos optemos por viver em grandes centros urbanos, e
não em áreas rurais sem os mesmos atrativos. É aceitável que parte de
nós não deseje transitar nas periferias inseguras e sem saneamento. O
que não é justo é tentar impedir que vocês e outros colegas brasileiros
que podem e desejam cuidar dessas pessoas façam isso. Essa postura nos
diminui como corporação, causa vergonha e enfraquece nossas bandeiras
junto à sociedade.
Talvez vocês já saibam
que a principal causa de morte no Brasil são as doenças do aparelho
circulatório. Temos um alto índice de internações hospitalares sensíveis
à atenção primária, ou seja, que poderiam ter sido evitadas por um
atendimento simples caso houvesse médico no posto de saúde.
Será bom vê-los
diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de pressão e exames
básicos pais e mães de família hipertensos ou diabéticos e evitar,
assim, que deixem seus filhos precocemente por derrame ou por infarto.
Será bom vê-los
prevenindo a sífilis congênita, causa de graves sequelas em tantos bebês
brasileiros somente porque suas mães não tiveram acesso a um médico que
as tratasse com a secular penicilina.
Será bom ver o alívio
que mães ribeirinhas ou das favelas sentirão ao vê-los prescrever
antibiótico a seus filhos após diagnosticar uma pneumonia. O mesmo vale
para gastroenterites, crises de asma e tantos diagnósticos para os quais
bastam o médico e seu estetoscópio.
Não se pode negar que
vocês também enfrentarão problemas. A chamada "atenção especializada de
média complexidade" é um grande gargalo na saúde pública brasileira. A
depender do local onde estejam, a dificuldade de se conseguir exame de
imagem, cirurgias eletivas e consultas com especialista para casos mais
complicados será imensa. Que isso não seja razão para desânimo. A
presença de vocês criará demandas antes inexistentes e os governos serão
mais pressionados pelas populações.
Para os que ainda não
falam o português com perfeição, um consolo. Um médico paulistano ou
carioca em certos locais do Nordeste também terá problemas. Vai precisar
aprender que quando alguém diz que está com a testa "xuxando" tem, na
verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda que um peito "afulviando"
nada mais é do que asia. O útero é chamado de "dona do corpo". A dor em
pontada é uma dor "abiudando" (derivado de abelha).
Já atuei como médico
estrangeiro em diversos países e vi muitas vezes a expressão de alívio
no rosto de pessoas para as quais eu não sabia dizer sequer bom dia
--situação muito diferente da de vocês, já que nossos idiomas são
similares.
O mais recente argumento
contra sua vinda ao nosso país é o fato de que estariam sendo
explorados. Falou-se até em trabalho escravo. A Organização
Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência, seria
cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o governo brasileiro.
Seus rostos sorridentes
nos aeroportos negam com veemência essas hipóteses. Em nome de nosso
povo e de boa parte de nossos médicos, só me resta dizer com convicção:
Um abraço fraterno e muchas gracias.
DAVID OLIVEIRA DE SOUZA,
38, é médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital
Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil
(2007-2010)
Parabéns, é emocionante este relato humano, extrapolando a miopia do corporativismo reinante por aqueles que, embora conhecendo os problemas e as dificuldades, preferem o brado do discurso restrito, apelativo e desumano.
ResponderExcluir