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sábado, 14 de setembro de 2013

“Só me tornei médico graças ao processo revolucionário de Cuba”, diz médico brasileiro



Por Iuri Müller e Samir Oliveira do Sul 21

O nome de Marcos Tiaraju Correa da Silva foi escolhido de forma coletiva, mediante votação em uma assembleia com quase 10 mil pessoas. O cenário desta decisão era a ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na fazenda Annoni, no norte do Rio Grande do Sul, no dia 1° de novembro de 1985.

“Marcos”, porque tratava-se do nascimento da primeira criança em uma ocupação do movimento. “Tiaraju”, em homenagem ao indígena Guarani Sepé Tiaraju, que liderou seu povo em uma guerra contra os colonizadores na América do Sul. Filho da histórica militante Roseli Nunes, Marcos Tiaraju nasceu, como ele mesmo define, “embaixo da lona preta”.

Marcos Tiaraju nasceu sem terra, mas permaneceu anos politicamente afastado desta condição. Muito tempo depois, retomou o contato com MST e passou a militar na organização. Em 2006, foi estudar Medicina em Cuba, retornando ao Brasil em setembro de 2012. Atualmente, trabalha em três postos de saúde da rede municipal de Nova Santa Rita, município de 20 mil habitantes, a 21 quilômetros de Porto Alegre, que possui quatro assentamentos do MST.

Nesta entrevista ao Sul21, Marcos Tiaraju fala sobre o ensino da Medicina em Cuba e o programa Mais Médicos do governo federal brasileiro. Para ele, a iniciativa “vai fazer uma grande diferença para aquelas famílias que não tem acesso a médicos durante os 365 dias do ano”.

Podes começar contando um pouco sobre a tua história. Tu foste a primeira criança a nascer em uma ocupação do MST. Tu nasceste no território que, naquela época, pertencia à fazenda Annoni, é isso?


Isso. Foi no Rio Grande do Sul que a luta do MST se iniciou de forma mais organizada e unificada, particularmente na região Norte do estado. Na história da luta agrária do país, o território conhecido como a antiga fazenda Annoni é conhecido como berço da luta pela terra. Era uma propriedade que concentrava aproximadamente 10 mil hectares e estava nas mãos de um latifundiário que não a utilizava para produzir. A primeira grande ocupação deste território ocorreu em 1985. E eu nasci no dia 1 de novembro daquele ano, durante a ocupação. Já nasci embaixo da lona preta, como parte de uma classe social excluída de um dos bens mais importantes, que é a terra.

Como foi a adesão da tua família ao MST? Tua mãe, Roseli Nunes, foi uma militante histórica para o movimento.

Minha família era similar a todas que se organizavam em torno desta luta. Era uma família pobre, com filhos para criar, sem acesso à alimentação, ao trabalho e à terra. Minha mãe assumiu um papel protagônico. Era uma mulher, mãe de dois filhos – antes de eu nascer -, que ingressou na luta e assumiu um papel de liderança. Ela dizia que a reforma agrária ajudaria a transformar a sociedade. Era uma camponesa sem um grau elevado de estudo, mas possuía a consciência social de que era necessário lutar. Queria mostrar para a sociedade porque a luta pela terra se desenvolvia e sabia exatamente de quem cobrar: o Estado brasileiro. A Constituição reconhece que toda a terra que não cumpre sua função social deve ser destinada para fins de reforma agrária.

Como foi esse período inicial na ocupação da fazenda Annoni?

Na época, como a luta pela terra estava em efervescência, muitas pessoas foram até a região da fazenda Annoni documentar o que acontecia. Uma delas foi a Tete Moraes, uma cineasta do Rio de Janeiro. Em uma ocasião, ela estava filmando uma manifestação em que as famílias bloqueavam uma rodovia e um caminhão investiu contra o grupo e acabou matando a minha mãe. Isso ocorreu em março de 1987. Então ela acabou sendo homenageada pelo documentário, que se chama “Terra para Rose”.

Tua família permaneceu na ocupação depois deste episódio?


Meu pai tinha três filhos para cuidar e acabou não resistindo. Ficamos mais alguns anos no acampamento e depois fomos morar na cidade de Rondinha. Meu pai trabalhava como pintor de casas. No verão havia trabalho, mas no inverno, com a umidade e as chuvas, não havia como fazer pintura. Vivíamos em uma realidade de bastante pobreza. Muitas vezes, para nos alimentarmos, íamos para o lixo de um supermercado recolher as mercadorias vencidas. Minha irmã, desde os 11 anos, começou a trabalhar como doméstica. Cresci nesta realidade, com muitos questionamentos na cabeça e muita angústia. Eu não compreendia porque a vida tinha que ser daquela forma.

Com essa mudança, não houve mais contato com o MST?


Até os 14 anos, não tive mais contato com a história do MST e da minha mãe. Com a minha própria história. Na minha casa não se comentava sobre isso. Lembro que tinha uma bandeira do MST. Era algo que meu pai guardava com muito carinho. Mas eu não sabia o que significava e não perguntava sobre a minha mãe. Nunca tive coragem de perguntar e meu pai nunca teve coragem de comentar. Foi um processo muito duro para ele: ter lutado por terra, não ter conquistado nenhum pedaço de terra e ainda ter perdido a esposa e ficado com três filhos para criar. Até que, dez anos depois do primeiro documentário, a Tete Moraes voltou à região para fazer outro filme. Ela queria verificar o que havia acontecido com as famílias que tinham participado da ocupação da fazenda Annoni.

Ela reencontrou vocês?


Sim. Ela encontrou nossa família em Rondinha e o documentário acabou homenageando novamente minha mãe com o título “O sonho de Rose”. Esse documentário fez ressurgir um debate dentro do MST de que era necessário fazer se tornar realidade o sonho de Rose e dar um pedaço de terra para que a sua família pudesse viver em condições melhores. Então, entre 1999 e 2000, minha família acabou conquistando um lote de terra em um assentamento em Viamão. É neste momento que minha história se modifica. Comecei a ter contato novamente com a história do MST, a compreender o que era um assentamento e de onde vinham as famílias assentadas. Também comecei a conhecer a história da minha mãe. Aprendi a admirar a história da minha família, do MST e do compromisso social que existe por trás da luta pela terra.

Foi quando te tornaste, efetivamente, militante do movimento?


Aí comecei a militar, participar de ocupações, marchas e manifestações. Neste contexto, fui adquirindo consciência de classe. Fui me assumindo como sem terra por consciência social, já que nasci como um excluído da terra. Dentro do MST, comecei a compreender e resolver as angústias que eu tinha quando era mais novo. Compreendi que a história da minha família não era única e singular. Era uma história que se repetia milhões de vezes no Brasil. Compreendi que, para modificar essa situação, é necessário se organizar, lutar, ocupar terras, bater em governos.

Como ocorreu o convite para ir estudar Medicina em Cuba?

Dentro desse processo de crescimento de consciência social, em 2005, durante uma marcha de Goiânia para Brasília, acabei sendo convidado para estudar medicina em Cuba. A Revolução Cubana sempre teve como prioridade, para si e para o mundo, a melhoria na área da saúde. Sempre foram organizadas missões humanitárias de médicos cubanos para países pobres. Em um determinado momento, Cuba se dá conta de é necessário formar médicos nas próprias comunidades para onde suas missões humanitárias se destinam. Então o governo criou a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM), com a intenção de formar jovens pobres que, concluído o curso, retornem para as suas comunidades. Neste processo, ofereceram uma bolsa para mim e para outros jovens brasileiros de movimentos sociais e partidos políticos.

Tu já tinhas interesse em estudar Medicina?


Nunca tinha pensado em estudar Medicina. Até porque, geralmente, nossa cabeça pensa onde nossos pés pisam. Qual o sonho do filho de um pequeno agricultor sem terra? É trabalhar na terra. Não acredito que exista vocação ou destino. O que determina essas coisas é o status social da família que precede o indivíduo. Eu nunca havia sonhado em fazer Medicina, mas já havia compreendido que para modificar a sociedade não bastava só lutar, só estar organizado e protestar. Era preciso buscar o conhecimento, a educação e elementos que ajudassem a compreender o funcionamento da sociedade e, através disso, assumir uma posição social e dizer: “é a este grupo que eu pertenço, é por esse grupo que eu vou lutar e é por essas melhorias que dedicarei a minha vida”. Eu queria estudar, me dedicar a algo e buscar conhecimento para ajudar na luta da reforma agrária e, de forma geral, ajudar a transformar a sociedade brasileira. Então, tendo essa compreensão, tive menos de 24h para decidir se estudaria Medicina ou não. Em 2005 acabou não saindo a viagem. Fui para Cuba em abril de 2006.

Em Cuba, tu encontraste a sociedade que pensavas em construir?

Em muitos aspectos, encontrei uma sociedade muito mais avançada do que a nossa. Sonhamos com um sistema de saúde público, gratuito, universal e equitativo. Lá em Cuba isso já existe. Toda a saúde é gratuita. A cada três quadras existe um médico de família, que vive na própria comunidade. Em Cuba não existem hospitais superlotados porque 80% dos problemas de saúde são resolvidos na atenção básica pelo médico da comunidade.

Como é o ensino da Medicina em Cuba?


Durante dois anos, ficamos alojados na ELAM e temos aulas relacionadas às ciências básicas da Medicina: bioquímica, anatomia, fisiologia, microbiologia… Já no primeiro ano somos colocados em contato com os consultórios dos médicos de família. Então podíamos visualizar para que sistema o médico é preparado. Desde muito cedo íamos despertando para essa necessidade de que um país que respeita seu sistema de saúde deve apostar na atenção básica. A partir do terceiro ano do curso começamos a ter contato com os hospitais cubanos. Saímos da ELAM e somos distribuídos pelas províncias do país. Neste processo, damos mais ênfase ao interrogatório médico – a anamnese – e à relação  médico-paciente, reforçando o exame físico de qualidade. Boa parte do diagnóstico final depende de uma boa anamnese e de um bom exame físico. Os exames complementares muitas vezes não são necessários.

Com a ida aos hospitais, há um distanciamento da atenção básica?


Mesmo a partir do terceiro ano mantivemos contato com a atenção básica. Havia uma matéria chamada MGI – Medicina Geral Integral. É aquele médico que sai do ambiente hospitalar e vai para a comunidade fazer visita às famílias. É uma prática que abarca os diferentes aspectos da comunidade: o biológico, o psicológico e o social. Não basta diagnosticar uma doença e prescrever um medicamento. É preciso conhecer a comunidade em que vive o indivíduo. É preciso compreender a história do paciente. Quem se forma como médico na sociedade cubana assume um papel social; não se vê somente como um profissional, mas como parte integrante de um todo que, de acordo com a sua formação, vai aportar para o avanço da sociedade desde a sua área. É um indivíduo que preza pela defesa da vida em primeiro lugar.

Ao final do curso, tu te formas em alguma especialidade?

No final da formação, somos reconhecidos como médico geral integral – o que, no Brasil, chamamos de clínico geral. É uma formação generalista que não abarca nenhuma especialidade e, ao mesmo tempo, é o médico que consegue intervir em várias frentes, desde a infância até a pessoa idosa. Claro, essa intervenção se dá até um certo nível. Se a situação é mais complexa, é necessário um atendimento mais especializado. Em Cuba não se nega isso. Inclusive em Cuba existem vários especialistas de ponta, de qualidade.

Depois que tu te formaste, como foi o retorno ao Brasil?


Depois que eu me formei, em 2012, cheguei no Brasil e tive que passar pelo processo de revalidação do diploma. Desde 1998, todo médico que se forma no exterior não pode chegar no país e começar a trabalhar. Até 2010, cada universidade desenvolvia seu próprio processo de revalidação do diploma. Em 2010, o governo federal vem tentando unificar esse processo no exame nacional de revalidação, que é o Revalida. Foi a esse exame que me apresentei em 2012. Ele consta de duas etapas: uma teórica e uma prática. A teórica é dividida em questões objetivas e discursivas. Desta etapa consegui ser aprovado. A segunda etapa é realizada em Brasília, no Hospital das Forças Armadas. São apresentados dez casos clínicos para serem resolvidos, cada um, em 10 minutos. É preciso ter uma porcentagem de acerto de 60%. Existe um tribunal que avalia e o processo é todo filmado.

Qual é a tua posição sobre esta prova? É um processo justo?

O conteúdo da prova e o grau de dificuldade são o que de fato se espera de um médico generalista. Mas a elaboração da prova é injusta, no sentido de que são 110 questões para serem resolvidas em cinco horas. Nenhum médico consegue atender, com qualidade, 110 pacientes em cinco horas. São dois minutos por questão. Nenhum médico consegue atender um paciente, realizar um interrogatório, um exame físico, solicitar exames complementares, fechar um diagnóstico e prescrever um tratamento em dois minutos. Por mais que as questões estejam dentro da capacidade de resolução dos profissionais formados no exterior, a forma como elas são elaboradas cria muita dificuldade.

A prova precisaria ser diferente?


Não somos contrários à realização da prova. Sabemos que temos capacidade para ser aprovados nesse exame. Mas deve ser uma prova justa. O Conselho Federal de Medicina vive utilizando os índices de reprovação para dizer que os médicos formados no exterior não estão preparados para exercer a Medicina no Brasil. Gostaria de ver qual seria o grau de aprovação se esta prova fosse feita por médicos formados no Brasil.

Como foi o processo de escolha do teu futuro local de trabalho?

Depois de passar na prova, começamos um processo de discussão interna no MST. Fui para Cuba na condição de militante do movimento que retornaria depois com o compromisso de atuar nas áreas de maior necessidade. Debatemos isso com o MST, junto com outro companheiro que se formou comigo, durante três meses. Visitamos várias comunidades e assentamentos. Vendo as diferentes condições, acabamos decidindo coletivamente que iríamos trabalhar no município de Nova Santa Rita. É um município onde existem quatro assentamentos do MST e onde boa parte da população vive na zona rural e ainda é desassistida em termos de atenção médica. Desde abril deste ano estamos desenvolvendo o trabalho lá. Ainda estamos em uma fase inicial. O município não tem nenhuma equipe de saúde da família, tem quatro postos de saúde, não tem hospital. A cidade carece não só de atenção médica, mas de organização do sistema municipal de saúde.

Como tu avalias a eficácia do programa Mais Médicos no teu trabalho, por exemplo? Em cidades como Nova Santa Rita?

Acredito que o programa Mais Médicos é um momento onde se passa a ver de fato a saúde do povo como prioridade. A iniciativa surge com a ideia de interiorizar os médicos, levá-los aos municípios onde não existe atenção médica. Geralmente os médicos, quando se formam, não querem se distanciar dos grandes centros urbanos. Isso ocorre por vários fatores: querem seguir estudando, não querem morar no interior ou querem manter um padrão de vida com o qual já estão acostumados. Eu apoio o programa Mais Médicos porque é um avanço social. Vai fazer uma grande diferença para aquelas famílias que não tem acesso a médicos durante os 365 dias do ano.

Uma das críticas ao programa é o fato de que somente a presença de um médico não resolve muitos outros problemas da área da saúde, como condições de trabalho e estrutura, por exemplo.


É claro que o médico, sozinho, não consegue resolver os problemas da saúde brasileira. Esse médico precisa de uma equipe que dê suporte ao seu trabalho, de condições estruturais e do apoio dos demais níveis da área da saúde. Mas não podemos dizer que, se não tiver tudo isso, o programa Mais Médicos se torna sem serventia. O programa vai resolver muitas coisas, sim, principalmente do ponto de vista mais imediato. Vai fazer uma enorme diferença para as pessoas que não possuem atenção médica em suas comunidades. O que precisamos fazer é, ao longo do tempo, criarmos as condições que faltam para que os médicos tenham o suporte necessário ao seu trabalho. É preciso dar o primeiro passo, e esse primeiro passo é a ida do médico para a comunidade.

Como tu vês as reações mais exacerbadas ao programa? Um médico cubano e negro foi vaiado e chamado de escravo por colegas brasileiros.


É muito contraditório que um profissional que jurou defender a vida negue auxílio a um colega só porque ele é de outro país. Será que esses médicos brasileiros que fizeram isso estão cumprindo o juramento que assumiram? Será que estão cumprindo a função social da Medicina ou estão defendendo interesses pessoais e corporativos? Comentários como esses são vergonhosos. Acredito que quem diz uma coisa dessas não deve ter estudado história. A sociedade cubana, no que diz respeito a direitos trabalhistas, é muito mais avançada do que a nossa. Esses profissionais não vêm como escravos. Eles vêm ao Brasil porque assumiram para si o compromisso humanitário da Medicina.

Em outra ocasião, uma jornalista disse que as médicas cubanas têm “cara de empregada doméstica”.

São comentários racistas e xenófobos. A sociedade se mostrou contrária a isso. Quer dizer, então, que, para ser médico neste país, é preciso ser loiro e ter olhos azuis? Morenos, negros, mulatos e pessoas que vêm de uma classe social menos favorecida não podem ser médicos? Imagina o meu caso, então: não sou loiro, não tenho olhos azuis e não estou dentro dos padrões estéticos que o mundo prega. Além de tudo, sou sem terra. Eu só me tornei médico na sociedade brasileira graças ao processo revolucionário cubano. Os médicos cubanos não vêm para ferir o interesse de ninguém, mas para ajudar os interesses do povo brasileiro que necessita de atenção médica. Os médicos brasileiros que não estão apoiando os colegas estrangeiros deveriam repensar se de fato são médicos. Será que esse indivíduo que não quer ajudar os colegas a resolver o problema de saúde do Brasil é, de fato, um médico? Será que ele assumiu um compromisso social com aquilo que estudou?

Como tu vês a falta de interesse em se trabalhar com saúde da família no Brasil?

A Medicina de família ainda no Brasil não foi encarada como uma prioridade. Não existe um incentivo durante a formação para que os profissionais atuem como médico de família. Já ouvi de bons colegas brasileiros que, durante a faculdade, é dito que trabalhar com saúde da família não dá status. Como se ser médico fosse defender um status. Os alunos são incentivados pelos professores a trabalhar em super especialidades, porque é o que dá dinheiro, status e faz crescer o nome do indivíduo.

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