Nos últimos anos, a imprensa brasileira, em lugar de investigar, tornou-se muitas vezes, simplesmente, o porta-voz de órgãos policiais para investigações em fase de inquérito, inclusive mediante divulgação de gravações telefônicas legais e ilegais.
J. Carlos de Assis
Durante mais de metade do tempo em que
exerci, por quase quatro décadas, a profissão de jornalista, vivi sob
ditadura. O Congresso era irrelevante, o Judiciário era submisso ao
Executivo, não existia Ministério Público, TCU ou Controladoria Geral da
União independentes, a Polícia Federal só queria saber de prender
comunistas. A Imprensa era parcialmente livre. Por essa brecha entrei em
1983, antes portanto do fim da ditadura, para denunciar três grandes
escândalos financeiros vinculados ao esquema autoritário: Delfin-BNH,
Capemi-Tucuruí e Coroa Brastel.
Fui processado por um deles, Capemi-Tucuruí, em 1983, incurso na odiosa Lei de Segurança Nacional. Meu querido e falecido advogado, Evaristo de Moraes Filho, pediu e obteve de um juiz já bafejado pelos ares da abertura o direito de exceção da verdade. Para quem não sabe, trata-se do direito de provar que o que foi dito era verdadeiro, em confronto com o que previa a letra da LSN, que criminalizava a suposta intenção subjetiva da pessoa denunciada, independentemente de o objeto da denúncia ter sido a divulgação de um fato verdadeiro ou não.
O direito à exceção da verdade correspondeu a uma absolvição: o ministro-chefe do SNI e o ministro da Agricultura, meus denunciantes, desistiram da ação. Pessoalmente, teria preferido a continuidade do processo: estava totalmente preparado para a exceção da verdade. Não havia em minhas reportagens uma única linha que não pudesse provar. Elas tinham sido fruto, como nos casos da Delfin e da Coroa-Brastel, de uma investigação minuciosa, agora na contabilidade da Capemi, a qual, pelas minhas conclusões, havia sido pilhada num esquema de corrupção montado nas vizinhanças do Serviço Nacional de Informações.
Tudo isso é para dizer que, na condição de um dos pioneiros do jornalismo investigativo na área econômica no Brasil (antes o jornalismo investigativo se limitava à área policial), tenho bons motivos para considerar a liberdade de imprensa um dos pilares essenciais da democracia. Sem ela não há possibilidade de vigilância do cidadão sobre as ações de seus governantes. Sem ela não se forma opinião sobre candidatos a cargos públicos. Sem ela as eleições se tornam uma farsa. Os norte-americanos tiveram razão ao introduzir, pela Emenda 1 a sua Constituição, a proteção irrecorrível da liberdade de imprensa como um pilar de sua organização social e política. Liberdade de imprensa equivale à sagrada liberdade de opinião.
Entretanto, caveat: todo o radicalismo leva a situações extremas que podem pôr em risco, em determinadas circunstâncias, a própria ordem social. A brilhante arquitetura jurídica da república democrática de Weimar levou a Hitler. A liberdade de imprensa não pode ser uma prerrogativa de jornalistas levada a extremos por cima de direitos humanos, como o direito a não sofrer injúria, calúnia ou difamação. Ela deve ser, sim, uma prerrogativa dos cidadãos dentro da institucionalidade democrática, acima, quando for o caso, dos próprios jornalistas e profissionais de comunicação. Ou seja, a liberdade de imprensa é do povo, não de uma específica corporação.
Nos últimos anos, a imprensa brasileira, em lugar de investigar, tornou-se muitas vezes, simplesmente, o porta-voz de órgãos policiais para investigações em fase de inquérito, inclusive mediante divulgação de gravações telefônicas legais e ilegais. A própria Polícia Federal facilita essa distorção na medida em que dá acesso aos inquéritos aos órgãos de comunicação antes de concluído o processo investigativo. Não raro os suspeitos são expostos publicamente antes da denúncia formal e da condenação. Isso é uma agressão a direitos humanos, no suposto de que muitas dessas pessoas submetidas a inquéritos ou processos poderão ser inocentadas.
Não é difícil identificar a origem dessas distorções. Estamos pagando o preço de um longo processo autoritário. Os movimentos históricos progridem dialeticamente pela alternância de polos opostos, indo, no nosso caso, do extremo autoritarismo político para a extrema abertura. De uma posição subordinada ao Executivo, nos anos do autoritarismo, instituições como o Judiciário, Polícia Federal, TCU e Ministério Público buscam se afirmar no polo oposto da plena autonomia na democracia. Isso é saudável, mas deve ter um limite imposto não por leis, mas pela prudência.
Ações autônomas do TCU ou do Ministério Público, por exemplo, estão retardando o desenvolvimento de muitas obras públicas por razões, muitas vezes, injustificáveis. Está-se desenvolvendo um espírito de animosidade entre o Executivo e essas instituições que trazem grandes prejuízos á nação e ao desenvolvimento do País. Muitas vezes questões que poderiam ser resolvidas na base do entendimento direto entre as partes transformam-se em onerosos processos judiciais pagos, em última instância, pelo contribuinte e pelo cidadão, ou simplesmente pelo atraso das obras.
Por outro lado, não devemos ser ingênuos: por trás da interferência em obras em andamento conduzidas pelo Executivo não raro há interesses inconfessáveis de integrantes desonestos de órgãos controladores que se aproveitam de suas prerrogativas institucionais. Em outras casos, trata-se apenas de coisa tão trivial como vaidade: a necessidade de aparecer perante a opinião pública como campeão do interesse geral, representado este principalmente por organizações não governamentais que têm uma visão parcial das questões envolvidas e nenhuma responsabilidade sobre as consequências, por exemplo, da paralisação de obras. Enfim, não creio que seja possível regular tudo isso por lei. É necessário fundamentalmente bom senso, especialmente por parte da imprensa, que deveria atuar no sentido de estabelecer um código de ética próprio para isso, autorregulado, precavendo-se sobretudo da denúncia irresponsável ou vazia.
Fui processado por um deles, Capemi-Tucuruí, em 1983, incurso na odiosa Lei de Segurança Nacional. Meu querido e falecido advogado, Evaristo de Moraes Filho, pediu e obteve de um juiz já bafejado pelos ares da abertura o direito de exceção da verdade. Para quem não sabe, trata-se do direito de provar que o que foi dito era verdadeiro, em confronto com o que previa a letra da LSN, que criminalizava a suposta intenção subjetiva da pessoa denunciada, independentemente de o objeto da denúncia ter sido a divulgação de um fato verdadeiro ou não.
O direito à exceção da verdade correspondeu a uma absolvição: o ministro-chefe do SNI e o ministro da Agricultura, meus denunciantes, desistiram da ação. Pessoalmente, teria preferido a continuidade do processo: estava totalmente preparado para a exceção da verdade. Não havia em minhas reportagens uma única linha que não pudesse provar. Elas tinham sido fruto, como nos casos da Delfin e da Coroa-Brastel, de uma investigação minuciosa, agora na contabilidade da Capemi, a qual, pelas minhas conclusões, havia sido pilhada num esquema de corrupção montado nas vizinhanças do Serviço Nacional de Informações.
Tudo isso é para dizer que, na condição de um dos pioneiros do jornalismo investigativo na área econômica no Brasil (antes o jornalismo investigativo se limitava à área policial), tenho bons motivos para considerar a liberdade de imprensa um dos pilares essenciais da democracia. Sem ela não há possibilidade de vigilância do cidadão sobre as ações de seus governantes. Sem ela não se forma opinião sobre candidatos a cargos públicos. Sem ela as eleições se tornam uma farsa. Os norte-americanos tiveram razão ao introduzir, pela Emenda 1 a sua Constituição, a proteção irrecorrível da liberdade de imprensa como um pilar de sua organização social e política. Liberdade de imprensa equivale à sagrada liberdade de opinião.
Entretanto, caveat: todo o radicalismo leva a situações extremas que podem pôr em risco, em determinadas circunstâncias, a própria ordem social. A brilhante arquitetura jurídica da república democrática de Weimar levou a Hitler. A liberdade de imprensa não pode ser uma prerrogativa de jornalistas levada a extremos por cima de direitos humanos, como o direito a não sofrer injúria, calúnia ou difamação. Ela deve ser, sim, uma prerrogativa dos cidadãos dentro da institucionalidade democrática, acima, quando for o caso, dos próprios jornalistas e profissionais de comunicação. Ou seja, a liberdade de imprensa é do povo, não de uma específica corporação.
Nos últimos anos, a imprensa brasileira, em lugar de investigar, tornou-se muitas vezes, simplesmente, o porta-voz de órgãos policiais para investigações em fase de inquérito, inclusive mediante divulgação de gravações telefônicas legais e ilegais. A própria Polícia Federal facilita essa distorção na medida em que dá acesso aos inquéritos aos órgãos de comunicação antes de concluído o processo investigativo. Não raro os suspeitos são expostos publicamente antes da denúncia formal e da condenação. Isso é uma agressão a direitos humanos, no suposto de que muitas dessas pessoas submetidas a inquéritos ou processos poderão ser inocentadas.
Não é difícil identificar a origem dessas distorções. Estamos pagando o preço de um longo processo autoritário. Os movimentos históricos progridem dialeticamente pela alternância de polos opostos, indo, no nosso caso, do extremo autoritarismo político para a extrema abertura. De uma posição subordinada ao Executivo, nos anos do autoritarismo, instituições como o Judiciário, Polícia Federal, TCU e Ministério Público buscam se afirmar no polo oposto da plena autonomia na democracia. Isso é saudável, mas deve ter um limite imposto não por leis, mas pela prudência.
Ações autônomas do TCU ou do Ministério Público, por exemplo, estão retardando o desenvolvimento de muitas obras públicas por razões, muitas vezes, injustificáveis. Está-se desenvolvendo um espírito de animosidade entre o Executivo e essas instituições que trazem grandes prejuízos á nação e ao desenvolvimento do País. Muitas vezes questões que poderiam ser resolvidas na base do entendimento direto entre as partes transformam-se em onerosos processos judiciais pagos, em última instância, pelo contribuinte e pelo cidadão, ou simplesmente pelo atraso das obras.
Por outro lado, não devemos ser ingênuos: por trás da interferência em obras em andamento conduzidas pelo Executivo não raro há interesses inconfessáveis de integrantes desonestos de órgãos controladores que se aproveitam de suas prerrogativas institucionais. Em outras casos, trata-se apenas de coisa tão trivial como vaidade: a necessidade de aparecer perante a opinião pública como campeão do interesse geral, representado este principalmente por organizações não governamentais que têm uma visão parcial das questões envolvidas e nenhuma responsabilidade sobre as consequências, por exemplo, da paralisação de obras. Enfim, não creio que seja possível regular tudo isso por lei. É necessário fundamentalmente bom senso, especialmente por parte da imprensa, que deveria atuar no sentido de estabelecer um código de ética próprio para isso, autorregulado, precavendo-se sobretudo da denúncia irresponsável ou vazia.
(*) Economista e professor da UEPB,
presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio
Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed.
Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos
do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.
Carta Maior
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